Qohélet e Deus
Para quem lê o Qohélet, o que se destaca, numa primeira leitura, é o seu apelo hedonista a aproveitar a vida (como vimos, não se trata propriamente de um carpe diem), as injustiças da sociedade, os azares da vida e também algumas alegrias. Pode também parecer que ele, apesar de falar em Deus, seja um céptico ou ateu
No entanto, ele fala muito Deus, a segunda palavra mas repetida (32
vezes) logo a seguir a “ilusão”. Portanto, basta este pormenor para mostrar que
o Qohélet tem Deus em alta estima. É certo que Deus se apresenta como
incompreensível (3,11) “está no céu” e nós na terra: por isso, Qohélet não
consegue investigar Deus. No entanto, vai acrescentando considerações várias ao
longo do texto: é “o teu Criador” (12,1), é criador de todas as coisas (3,11;
7,13; 12,1), incluindo a felicidade e a desgraça (7,14); “criou os homens
rectos, mas eles procuraram maquinações sem fim” (7,29); pôs a eternidade (ou o
desejo de eternidade) no nosso coração (3,11), embora não haja unanimidade
quanto ao significado desta palavra; deu-nos a capacidade de investigar o
mundo, “uma tarefa bem ingrata” (1,13); dá-nos a comida, a bebida, o trabalho
(2,24; 3,13; …); põe-nos à prova para mostrar que os homens “só por si são
semelhantes aos animais” (3,18); julgará todos, os justos e os ímpios (3,17).
No meio de tudo isto, “a felicidade é para os que temem a Deus” (8,12). Daí o
seu repetido apelo “teme a Deus” (5,6; 7,8; 12,13), porque “aquele que teme a
Deus ultrapassa tudo” (7,18).
Mas há um outro argumento, estilístico, que mostra bem essa sua
“consideração por Deus”. Já referi que é bastante difícil identificar um plano
ou uma estrutura lógica do livro. Alguns até negam que exista qualquer tipo de
organização, considerando o livro um amontoado desorganizado de materiais
diversos.
Também referi que há uma frase que faz uma inclusão semita repetindo no princípio (1,2) e no final (12,8) a
mesma frase: “ilusão das ilusões, tudo é ilusão”. Pois a inclusão geralmente
apresenta uma “estrutura concêntrica”
ou especular (de espelho!), apresentando paralelamente ideias semelhantes como
num espelho e destacando a ideia central. Assim talvez se possa fazer esta
distribuição:
Título (1,1)
v. 1,2 (a) Ilusão das ilusões, tudo é
ilusão
vv. 1,4-11 (b) Cosmologia
vv. 1,12-3,15 (c)
Antropologia
vv. 3,16-4,16 (d)
Sociologia
vv. 4,17-5,6 (e)
Religião: “teme a Deus”
vv. 5,7-6,10 (d´)
Sociologia
vv. 6,11-9,6 (c´) Ideologia
vv. 9,7-12,7 (b´) Moral
v.12,8 (a´) Ilusão das
ilusões, tudo é ilusão
Epílogo (12,9-14)
(certamente acrescentado por um discípulo de Qohélet).
Sem entrar no paralelismo das várias secções (nem sempre fáceis de
detectar), queria analisar a parte central (4,17-5,6):
4,17Vigia os teus passos
quando vais à casa de Deus;
aproxima-te para
escutar: isto vale mais que o sacrifício dos insensatos,
pois eles não
sabem sequer fazer o mal.
5,1Não te precipites com a
tua boca
nem se apresse o
teu coração
a proferir
palavras diante de Deus,
porque Deus está
no céu e tu na terra.
Sejam, portanto,
poucas as tuas palavras.
2Porque
o sonho vem das muitas preocupações
E nas muitas
palavras se escutam do insensato.
3Quando
fizeres um voto a Deus, não demores a cumpri-lo;
porque não lhe
agradam os insensatos; o que prometeres cumpre-o.
4É
melhor não prometeres do que prometeres e não cumprires.
5Não
permitas que a tua boca te faça cair em pecado;
Nem digas depois
ao mensageiro (de Deus) que foi por inadvertências.
Não aconteça que
Deus se irrite com o que dizes e destrua as tuas obras.
6Muitos
preocupações trazem pesadelos e muitas palavras trazem ilusões.
Tu, pelo
contrário, teme a Deus.
A perícope central está totalmente dedicada ao problema religioso. A
preocupação específica religiosa é rara na sabedoria tradicional israelita e
normalmente de carácter profano. A repetição da palavra “insensato” mostra que
o problema se aborda de uma perspectiva mais sapiencial do que
ético-religiosos, destacando algumas as suas manifestações. Daí a sua divisão em
três partes como se vê pela repetição da palavra “insensatos” (três vezes:
4,17; 5,2.3) e pelas temáticas: sacrifícios, oração e promessas.
Sacrifícios (4.17)
Quando no templo se celebram sacrifícios (ou o culto em geral),
renovam-se, explícita ou implicitamente, os compromissos com Deus, torna-se
presente a Aliança com Deus e com as suas implicações na vida social: há uma
incompatibilidade entre um verdadeiro culto divino e a prática das justiças.
Este é um dos temas fundamentais dos profetas: não há culto verdadeiro
sem justiça social. Veja-se, por exemplo, Is 1,11-70. Enquanto o povo viver na
injustiça, todo o culto está viciado e até pode ser entendido por Deus, como
uma espécie de suborno, como um tentativa de o corromper: “Não procures
corrompê-lo (a Deus) com presentes, porque não os aceitará; nem te apoies num
sacrifício injusto” (Sir 35,11).
Deus não tem necessidade dos nossos sacrifícios até porque tudo o que
se lhe oferece nos sacrifícios foram dons seus que Ele nos deu. O que Ele quer
é um coração limpo e aberto, uma vida segundo a justiça: “Quero misericórdia e
não sacrifícios, conhecimento de Deus e não holocaustos” (Os 6,6). Conhecimento
de Deus que se exprime na comunhão com Ele e a sua vontade. Ou, na versão do
NT: “Nem todo o que diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no reino dos céus, mas sim
aquele que faz a vontade de meu pai que está nos céus” (Mt 7,21). Fazer a
vontade de Deus é viver segundo a justiça.
Portanto, se queremos ser justo, temos de cumprir a vontade de Deus;
se queremos cumprir a vontade de Deus, temos de a conhecer. Mas para a
conhecer, temos de seguir a proposta de Qohélet, ESCUTAR: “escutar vale mais
que o sacrifício”. Mas primeiro que tudo, há que criar espaços de silêncio e “solidão”
que permitam abafar o ruído de fundo quotidiano e mergulhar no fundo da
consciência onde nos encontramos “frente a frente” com Deus. Como Maria que ouviu
Deus no silêncio da sua casa. Ou como Paulo, no silêncio da estrada de Damasco.
Ou como Samuel, no silêncio da noite: “Fala, Senhor, o teu servo escuta” (1Sam
3,10). Mas Qohélet acrescenta um elemento novo: fala dos sacrifícios oferecidos
pelos insensatos, como se a insensatez dos insensatos afectasse a qualidade da
oferta. Realmente, Deus “não julga pelas aparências nem pelo que ouve dizer”
(Is. 11,3).
Não é que Deus recuse todos os sacrifícios e holocaustos. Há, no
entanto, uma hierarquia de verdades: “Deus prefere a prática do direito e da
justiça aos sacrifícios” (Prov 21,3). Também a parábola do samaritano clarifica
a mesma hierarquia.
Oração (5,1-2)
Qohélet recomenda a moderação nas nossas palavras com Deus: “não te
precipites; não te apresses”. Não é por muito falar que Deus nos atende melhor,
como se Deus não nos conhecesse bem, bem melhor do que nós, e precisássemos de
recordá-lo. Usar muitas palavras é próprio do insensato.
Que as “tuas palavras sejam contadas”. Isto é, nem de mais nem de
menos. Alguns Profetas vão mais longe: “silêncio na presença de Deus” (Hab
2,20; Sof 1,7).
Também Jesus faz essa mesma recomendação, mesmo antes de ensinar os
discípulos a orar: “Nas vossas orações não sejais como os pagãos, que usam de
vãs repetições, porque pensam que, por muito falar, serão atendidos. Não façais
como eles, porque o vosso Pai celeste sabe do que necessitais antes de vós lho
pedirdes” (Mt 6,7-8).
(Continua)
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