divórcio ou casamento eterno?...

2013-02-20

Sofrimento: uma questão universal


Alguns posts atrás, referia-me a dois aspectos que gostaria de retomar: o problema dos crentes e dos não crentes perante as contradições da vida e algumas palavras Bento XVI em Auschwitz. Ao primeiro, dediquei algumas ideias retiradas do Qohélet. Quanto ao segundo começo por recordar as palavras de Bento XVI (Auschwitz; 28.Maio.2006): “Tomar a palavra neste lugar de horror, de acúmulo de crimes contra Deus e contra o homem sem igual na história, é quase impossível e é particularmente difícil e oprimente para um cristão, para um Papa que provém da Alemanha. Num lugar como este faltam as palavras, no fundo pode permanecer apenas um silêncio aterrorizado um silêncio que é um grito interior a Deus: Senhor, por que silenciaste? Por que toleraste tudo isto? É nesta atitude de silêncio que nos inclinamos profundamente no nosso coração face à numerosa multidão de quantos sofreram e foram condenados à morte; todavia, este silêncio torna-se depois pedido em voz alta de perdão e de reconciliação, um grito ao Deus vivo para que jamais permita uma coisa semelhante.”
As palavras “toleraste” e “jamais permita uma coisa semelhante” deixam-me perplexo sobre a vontade de Deus, o seu papel na História e sobre a minha atitude na História e na minha relação para com Deus. Pois, para tolerar ou não, torna-se indispensável uma acção directa na história da humanidade. Para “jamais permitir” implica igualmente uma intervenção directa. Como? E, porque iria Deus mudar a “sua” vontade, só porque alguém lhe pede para mudar?

Atitudes “impróprias”
E aqui colocam-se, pelo menos, dois problemas: o da oração, especialmente do tipo petição, que deixarei para outro post, e a eterna questão do sofrimento e do mal em geral.
O sofrimento é realmente um (o) grande problema com que nos deparamos. É algo que não só nos mostra a nossa finitude como nos deixa sem grandes capacidades de resposta: a dor magoa, deixa-nos indispostos e dobrados sobre ela própria, no fundo, dói. A dor deixa-nos desconcertados: aos que sofrem e aos que vêem sofrer. Daí algumas reacções frequentes, mas que não podem aceitar-se sem mais. Eu pelo menos tenho dificuldade em aceitar. “Tem que ter paciência”, “deve resignar-se” são conselhos muito sugeridos. Como se fosse um crime, o sofredor revoltar-se, dizer “palavras feias”, que a prática ensina (e agora também, segundo parece, a própria ciência) que parecem tornar as dores mais suportáveis. Um bom modelo é Job, que não é tão paciente como se diz: “Desapareça a dia em que nasci e a noite em que foi dito ‘Foi concebido um varão!’. Converta-se esse dia em trevas! Deus lá do alto não se preocupe com ele…´” (Job 3,3ss). Quando o sofrimento cai sobre alguém de pouco valem as teorias. Porque o que fica, muitas vezes, é o protesto e a revolta e, às vezes, até a blasfémia. Isto não significa que não seja útil e oportuna a palavra amiga que ajude a passar a provação. Uma palavra que por vezes passa pelo silêncio respeitador. Os amigos de Job “ficaram sete dias e sete noites sem lhe dizer palavra, pois viram que a sua dor era demasiado grande” (Job 2,13).
Outra atitude que tenho muita dificuldade em aceitar é a do velho chavão, tirado da vida de alguns santos e multiplicado pela devoção popular: Se Deus te faz sofrer tanto é porque te ama muito”. O amor de Deus aparece medido pela quantidade do sofrimento que cada um sofre! Que Deus é este!? Voltamos às velhas imagens de Deus, embora por outra via.

Problema do mal uma questão universal
A pergunta sobre o mal ou do sofrimento é universal, porque atinge todos os homens e todas as mulheres de todos os tempos e lugares. É, aliás, uma pergunta que se colocou antes dos outros grandes problemas da filosofia. Nas literaturas mais antigas já encontramos esta pergunta.

Da cultura egípcia chegam dois textos sobre o sofrimento datados do século XX aC:
Diálogo de um desesperado com a sua alma: descreve o aborrecimento da vida causado pela desordem e pela falsidade da sociedade. Critica a falta de solidariedade dos amigos: “A quem posso falar hoje? Os companheiros são maus; os amigos de hoje não amam. A quem posso falar hoje? (comparar com Job 19,13-19). Os corações são rapaces, pois cada um se apodera dos bens do companheiro. Os homens honrados desapareceram, enquanto o violento tem acesso a qualquer lugar”. Apesar de a sua alma lhe apresentar argumentos para viver – coragem, gozo do momento presente e moderação dos desejos como fonte de serenidade – este Job egípcio faz um hino ao suicídio como meio de alcançar a felicidade: “A morte está hoje diante de mim como a cura para um doente, como a libertação para um prisioneiro. A morte está hoje diante de mim como um perfume de mirra, como um prazer vivido sob um guarda-sol num dia de calor tórrido. A morte está hoje diante de mim como o aroma da flor de lótus, como se sente o que está nos limiares da embriaguez. A morte está hoje diante de mim como a aproximação da chuva, como o regresso de uma expedição dos homens a suas casas. A morte está hoje diante de mim como o clarear do céu, como o homem que caça aves por lugares desconhecidos. A morte está hoje diante de mim como o desejo de um homem por ver a sua casa depois de ter passado muitos anos no cativeiro”.
Queixas de um camponês eloquente: com uma estrutura literária semelhante à do livro de Job descreve as lamentações de um camponês, explorado por um rico proprietário, queixando-se das injustiças de que é vítima. Tal como o infeliz Job, também o justo sofredor mesopotâmico sofre apesar de estar consciente da sua inocência: “Acabei por ser como um homem surdo… Em tempos vivia como um senhor mas agora converti-me num escravo (comparar com Job 29,2ss). O furor dos meus companheiros aniquila-me. O dia é um suspiro; a noite um pranto. Mal cheguei à vida e já ultrapassei o tempo fixado (comparar com Job 14,1ss). Olhei em redor de mim: mal sobre mal! Aumenta a minha opressão, não posso encontrar o que é recto. Gritei ao meu deus e não me mostrou a face (comparar com Job 23,3.8ss). Invoquei a minha deusa, mas ela não levantou a sua cabeça”. E também a mesma incompreensão sobre os desígnios de Deus: “Quem poderá compreender o desígnio dos deuses? Os desígnios divinos são águas profundas. Quem poderá compreendê-los? Como vão os seres humanos conhecer a conduta de um deus” (comparar com Job 37,23).

Também a cultura mesopotâmica nos legou vários textos:
Lamentação de um homem ao seu deus, chamado o “Job sumério”: um jovem crente, atingido pela doença, dirige-se ao seu deus Marduk, queixando-se da sua sorte e pedindo a sua intervenção. Reconhece que nenhum homem está isento de culpa: “Eles dizem – os sábios – uma palavra justa e clara: Nunca uma mãe deu à luz uma criança sem pecado, jamais existiu um trabalhador sem culpa.” (comparar com Job 15,14).
Diálogo de um aflito com o seu amigo (ou Teodiceia babilónica): num diálogo poético, alguém, deserdado da sorte, protesta a sua fidelidade aos deuses. Apesar de concluir que a sua piedade parece ser inútil (“De que me serviu ter-me curvado perante o meu deus?”) e de pôr em causa a justiça divina (“Aqueles que não procuram a deus seguem os pelo caminho da prosperidade, enquanto que os que seguem a deusa são humilhados e empobrecidos.”), acaba por pedir ao seu deus que o ajude: “Que o deus que me abandonou venha em meu auxílio, que a deusa que me esqueceu se mostre misericordiosa.” Esta obra é a que mais se assemelha ao livro de Job. Inclusivamente apresenta um diálogo com um amigo que começa também por defender a tese da justa retribuição (“O homem humilde que teme a sua deusa, acumula riqueza… Àquele que suporta o jugo do seu deus nunca falta alimento, mesmo que seja escasso.”) e acusá-lo de blasfémia (“Meu caro amigo, os teus pensamentos são perversos, esqueceste a justiça e blasfemas contra os planos do teu deus.”). Mas acaba quase por dar razão ao amigo sofredor, ao reconhecer a insuficiência da tese da justa retribuição e atribuindo a causa do mal directamente aos homens mas, de certo modo, indirectamente aos deuses que o criaram: “Narru, rei dos deuses, que criou o homem, o majestoso Zulummar, que juntou para eles a argila, e a rainha Mami, a rainha que os modelou, deram uma linguagem falsa à raça humana, de mentira, não de verdade, a proveram para sempre. Falam com solenidade de um rico: ‘És um rei, mereces a riqueza´ mas a um pobre, tratam-no como um ladrão, só têm mal para dizer dele e vão tecendo a sua morte.”

Estas citações retirei-as das intervenções de Herculano Alves e José Ornelas na XIII Semana Bíblica Nacional e do livro de M. García Cordero, Biblia y Legado del Antiguo Oriente.

De qualquer modo, o livro de Job, pela sua dimensão, articulação e profundidade, ultrapassa de longe qualquer outra obra da Antiguidade. O problema do mal, na “forma de Job” deve remontar ao início da escrita (3000 aC). O Job bíblico recolheu os motivos literários e filosóficos das mais antigas tradições do Médio Oriente. Mas enriqueceu-os, porque é muito mais recente: “A região de Hauran deve ter oferecido a lenda primitiva do livro de Job; o Egipto forneceu-lhe as imagens e dois géneros literários, a pergunta retórica e a confissão negativa; a Mesopotâmia inspirou provavelmente o diálogo de Job com os seus amigos e é a tela de fundo cultural do livro… Finalmente, a própria Bíblia, nas suas tradições profética, sálmica e sapiencial não só colocou à disposição do autor um conjunto de imagens tradicionais, mas criou uma atmosfera teológica que confere ao drama de Job a sua verdadeira originalidade” (J. Lévêque). Portanto, o livro de Job representa um ponto de chegada de uma longa reflexão sobre a nossa finitude, recebendo e reflectindo, com espírito universal e honesto, o contributo da tradição e do património da humanidade, e elevando-a como novo dramatismo, ao nível de obra-prima da literatura universal e da reflexão de fé. Neste sentido, o drama de Job não é um drama judeu, para judeus, mas uma reflexão sobre o homem, de qualquer tempo e lugar, informada pela visão javista do mundo, do homem e de Deus. "Job talvez seja o mais elevado texto que a revelação bíblica nos oferece sobre o mistério do mal e de Deus, ‘escandalosamente’ interligados entre si ao longo da história. Mas o sentido supremo do livro é precisamente o de se chegar até Deus, atravessando-se a dramática estrada do sofrimento" (G. Ravasi)


Como já va longa a reflexão, continuarei, nos próximos posts, com a temática do sofrimento e do mal. 

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