Na despedida de Bento XVI
Hoje, exactamente hoje, pela primeira vez em 600 anos um Papa renuncia ao seu cargo. Para recordar este facto quase inédito, aqui deixo uma pequena reflexão sobre este acontecimento num artigo que escrevi para o Correio de Coimbra.
PODER OU SERVIÇO?
A resignação de Bento XVI é um
acto tão cheio de consequências, que parece um autêntico gesto profético. Um
dos aspectos diz respeito ao modo de entender o poder. Bento XVI revelou um
verdadeiro desapego ao poder. Certamente porque entendia o poder como serviço e
não como soberania. Essa percepção permitiu-lhe a lucidez de perceber quando
devia renunciar. E o mais importante é que não recusou assumir uma atitude de
ruptura com o que era politicamente correcto, outra forma de denunciar o
poder-poder. Ao sentir que não estava em condições de servir saiu para dar
lugar a outro que pudesse servir melhor, em coerência com o que afirmara em
2010: “Quando um Papa
tem clara consciência de que já não está em condições de cumprir os deveres do
seu ofício, física, psicológica e espiritualmente, tem o direito, e em algumas
circunstâncias, também o dever, de se demitir”.
Esta é uma lição para quem detém
o poder. Neste mundo assistimos a presidentes que alteram a constituição para
poderem ser reeleitos, a partidos que distorcem a lei para poderem candidatar
autarcas para lá do prazo. Estamos nos antípodas do poder-serviço, mesmo reconhecendo
a boa vontade de alguns. Mas este espírito predomina nos pequenos e grandes
poderes da sociedade e, infelizmente, nos pequenos e grandes poderes da Igreja,
onde, por exemplo, há também jogos de poder, falta de transparência financeira
ou supostas pressões sobre João Paulo II para não resignar. Verdade ou não, Bento
XVI não quis informar ninguém para não ficar sujeito a essa desconsideração e
desrespeito. Portanto, ao assumir esta atitude, o Papa foi claro e deixou um
desafio a todos os poderes. Como vão ser exercidos? Como são exercidos? E aí
estão as recomendações de Jesus: “Sabeis como aqueles que são considerados
governantes das nações fazem sentir a sua autoridade sobre elas e como os
grandes exercem o seu poder. Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande
entre vós, faça-se vosso servo e quem quiser ser o primeiro entre vós faça-se o
servo de todos” (Mc 10,42-44).
Este gesto, que tem várias leituras,
muitas delas baseadas em preconceitos e clichés, deixou bastantes católicos
angustiados, no fundo, com o problema do poder: “Dois papas? E quem manda? Qual
é o representante de Cristo na terra? Quem está em contacto directo com a
divindade?”. Cá está uma concepção de poder que o próprio gesto papal contestou.
A esta “angústia” pode facilmente responder-se comparando com as próprias
dioceses: quando um bispo resigna e é nomeado um substituto quem manda? Por
outro lado, a abdicação de um papa está prevista no Código de Direito Canónico:
“Se acontecer que o Romano Pontífice renuncie ao cargo, para a sua validade
requer-se que a renúncia seja feita livremente e devidamente manifestada, mas
não pode ser aceite por ninguém” (Cân. 332 § 2).
Mas o mais grave surge ao
analisarmos as causas mais fundas dessa angústia. A perturbação resulta do
facto de (não) se saber quem, qual deles é o vigário de Cristo. E isto é muito
grave se olharmos para o modelo de Igreja que estes católicos têm subjacente. Sobretudo
quando já passaram 50 anos sobre o Concílio Vaticano II é entristecedor
verificar que ainda há tanta gente que tem na sua cabeça uma imagem de Igreja
piramidal. Temos uma pirâmide com o papa no vértice recebendo ordens “do alto”
e dimanando-as por aí abaixo: do papa para os bispos, dos bispos para os
padres. Esta imagem clássica dura e perdura porque os católicos não estudam,
não reflectem os documentos do Magistério, não aprofundam os seus
conhecimentos, contentando-se com a sua limitada catequese de infância com
dezenas de anos. Bastariam alguns textos para perceber que a Igreja comunhão “é
a ideia central e fundamental dos documentos do Concílio” (Sínodo de 1985). O
centro, portanto, não é o Papa, mas a Eucaristia, Jesus Cristo: nada se pode
antepor a Jesus Cristo nem mesmo o Papa. É, unidos em torno da Eucaristia, que
todos somos chamados a dar testemunho do Reino de Deus, de que a Igreja é sinal
e sacramento. Não se entra na Igreja pelo sacramento da Ordem mas pelo
sacramento do Baptismo, sacramento fundamental sem o qual nenhum outro pode ser
celebrado. Pelo Baptismo os fiéis são “incorporados
em Cristo, constituídos em Povo de Deus e tornados participantes, a seu modo,
da função sacerdotal, profética e real de Cristo,” (LG 31).
Assim sendo, todos os cristãos
são e, portanto, devem ser representantes de Cristo na Terra.
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