Um Livro inesperado
Há dois aspectos do último post que gostaria de retomar: o problema dos crentes e dos não crentes perante as contradições da vida e a última frase de Bento XVI sobre Auschwitz.
Para o primeiro aspecto, iria servir-me de um pequeno livro da Bíblia:
o Qohelet ou Eclesiastes.
É um livro inesperado na Bíblia. É um livro para adultos, adultos na
vida e adultos na fé. Mesmo estes poderão ficar escandalizados com muitas das
afirmações. Contudo, apesar de ter sido escrito em Jerusalém, no século III aC,
na primeira fase da helenização da Palestina, revela-se extremamente actual
pela sua postura e pelas interrogações que coloca.
O autor deve ter sido alguém abastado, pois tem uma visão idílica da vida
do trabalhador: “Doce é o sono do trabalhador, quer tenha comido pouco ou
muito” (5,11).
É um crítico radical de
quase tudo na vida, que não se cala perante nenhum aspecto da realidade:
- o prazer que, para ele, se identifica com o poder (2,1-11) e com a
riqueza (5,9-10);
- a mulher: “Considero que mais amargo que a morte é encontrar uma
mulher que é uma armadilha, cujo coração é uma rede e as suas mãos são cadeias”
(7,26);
- a sociedade que está organizada de modo injusto (5,7; 9,11.9,14-16;
10,5-7), sem liberdade de expressão (10,20), movida pela inveja (4,4) e na qual
“o rei faz o que lhe apraz” (8,3-4);
- a ciência que chega a um beco sem saída (1,13);
- o poder, no qual reina a incompetência (nescidade, qualidade do que é néscio): “o insensato ocupa os mais
altos postos e os homens de valor estão colocados nos postos inferiores” (10,6-7);
aliás, a incompetência parece ser universal: “o que é torto não se pode
endireitar” (1,15);
- o trabalho porque acaba por não ser para o homem pois o que realiza
será herdado por um estranho (2,18-19; 4,8; 6,2);
- os filhos de quem diz que serão os seus herdeiros mas ele não sabe
se serão sábios ou néscios (2,18-21).
É alguém que parece céptico
sobre tudo, radicalmente céptico, até relativamente à Sabedoria tradicional,
não só porque não consegue chegar a lado nenhum (“é loucura e nescidade”) mas também porque traz
consigo muito sofrimento (“o que aumento o conhecimento, aumenta o sofrimento”)
(1,12-18). Esta atitude é antes de mais uma atitude filosófica: a partir da
dúvida metódica aborda todas as coisas. O seu método consiste em investigar
tudo: “apliquei-me a estudar e a explorar, por meio da sabedoria, todas as
coisas que se sucedem debaixo do céu. É uma tarefa ingrata… Vi tudo o que se
faz debaixo do sol” (1,12-14; 2,11; 7,23, 8,9.17). Investiga tudo, mas conclui
que nada conseguirá saber: “Ele (o homem) afadiga-se a investigar mas não
encontra nada e, mesmo o sábio, se pretender conhecer, não poderá descobrir”
(8,17). Parece haver um certo fatalismo, pois há um tempo para cada coisa
(3,1-8; 8,6) e o homem não conhece o futuro (6,7; 10,14). Critica o excessivo
optimismo da Sabedoria antiga através de várias contradições de que as
afirmações sobre a vida são um caso típico. Por um lado, “odeia a vida” (2,17),
“todos os seus dias são apenas dor” (2,23); os mais felizes são os que “nunca
chegaram à existência e (= porque) não chegaram a ver o mal que se comete
debaixo do sol” (4,3). Por outro, agarra-se à vida: “mais vale um cão vivo que
um leão morto” (9,4).
De qualquer maneira este cepticismo parece atenuado pelo número de
vezes que utiliza a palavra “alegria” (2,1.2.10.26; 2,26; 3,22; 5,19.20; 7,14; 8,15;
10,19; 11.8).
Parece ser um hedonista,
pois afirma repetidamente que “Nada há de melhor para o homem do que comer e
beber e gozar o bem-estar, fruto do seu trabalho” (2,24; 3,12s.22; 5,17; 6,12; 8,15;
9,7-9). Com este apelo repetido a aproveitar os momentos “bons” da vida até
parece um dos temas fundamentais deste texto: “Que o tema fundamental de livro
era a simhah, o desfrutar a vida, foi
claramente reconhecido pelas autoridades religiosas judaicas, que justificaram
assim o costume da leitura do Qohélet na sinagoga na festa dos Tabernáculos, a
estação da alegria” (R. Gordis). Apesar de todos estes apelos a “comer e a
beber”, o autor não faz disso uma norma de deboche, pois essas suas afirmações
terminam geralmente por dizer “goza destes porque te foram dados por Deus”:
“isto vem da mão de Deus” (2,24); “um dom de Deus” (3,13); “Só Deus dá ao homem
bens e riqueza e a possibilidade de usufruir deles” (5,18) ou “Vai, come o teu
pão com alegria e bebe com prazer o teu vinho, porque a Deus agradam as tuas
obras” (9,7). Portanto não se trata tanto de um hedonista material ou epicúrio,
mas mais de hedonista filosófico que goza com sabedoria os bens que Deus lhe
deu.
Resumindo: a vida tem o
lado bom e o lado mau, o positivo e o negativo, o prazer e o sofrimento
(3,1-8):
Tudo tem um tempo e
um momento, todas as coisas debaixo do sol:
tempo de nascer e
tempo de morrer;
tempo de matar e
tempo de curar;
tempo de destruir
e tempo de construir;
tempo de chorar e
tempo de rir;
tempo de se
lamentar e tempo de dançar;
tempo de atirar
pedras e tempo de juntar pedras;
tempo de abraçar
e tempo de desprender-se;
tempo de procurar
e tempo de prender;
tempo de guardar
e tempo de atirar fora;
tempo de rasgar e
tempo de coser;
tempo de calar e
tempo de falar;
tempo de amar e
tempo de odiar;
tempo de guerra e
tempo de paz.
Mas o lado mau sobrepõe-se ao bom: “Que proveito tiramos destas
fadigas?” (3,1-9). Talvez por isso ele recomende que não se viva sozinho: “É
melhor dois que um só: tirarão melhor proveito do seu esforço” (4,9-12).
De qualquer modo, este poema é um grande desafio às pessoas de hoje
que “não têm tempo para nada”. O marido não tempo para namorar a esposa e a
esposa não tem tempo para namorar o marido. Os pais não têm tempo para dar aos
filhos e os filhos não têm tempo para dar aos pais. As pessoas não têm tempo para
respeitar a natureza nem tempo para celebrar a vida. As pessoas andam sempre a
correr, empurradas pelos acontecimentos. É preciso abrandar para chegar mais
longe (Devagar se vai ao longe). É
preciso parar de vez em quando para apreciar e saborear tudo o que nos rodeia,
dando tempo a cada coisa.
Pergunta fundamental
A pergunta fundamental está colocada logo ao abrir o livro – “Que
proveito traz ao homem todo o esforço que faz?” (1,3) – e vai sendo repetida
sucessivamente como um gong a lembrar qual esta é a questão fundamental (2,10;
2,22; 3,9; …).
E responde logo, ou melhor ainda antes de fazer a pergunta: “Ilusão
das ilusões; tudo é ilusão!” (1,2). Esta é certamente a palavra mais repetida –
38 vezes – ao longo do livro. A tradução antiga era vaidade, a partir da tradução latina: “Vanitas vanitatum”. A palavra latina vanitas deu a nossa palavra vaidade.
Mas facilmente se percebe que neste livro temos de ir ao significado
etimológico (de vanus, vazio): aparência,
o que é vazio, oco, que não tem nada dentro, que não é consistente; futilidade,
ilusão.
Repare-se que a mesma afirmação – ilusão das ilusões tudo é ilusão –
aparece a abrir o livro (1,2) e a fechá-lo (12,8). Trata-se, portanto, de uma inclusão muito utilizada na Bíblia e
noutras línguas orientais, que significa que todo o texto incluído, enquadrado
por esta afirmação, desenvolve e constitui a ideia central; neste caso, ilusão.
Para o autor, tudo é ilusão ou “correr atrás do vento” (1,17, …).
Mas esta conclusão quase absoluta – tudo acaba por ser ilusão – não o
leva ao desespero, apesar do seu desabafo: “Desesperei em meu coração de todo o
trabalho que suportei” (2,20). Nem nunca pôs o problema do suicídio, porque
“ninguém é dono do seu sopro vital nem é capaz de o conservar. Ninguém tem
poder sobre o dia da sua morte” (8,8). E até pergunta “por que hás-de querer
morrer antes da tua hora?” (7,17).
Repare-se que o Qohélet “ainda” não admitia a vida do Além, era “ateu”
como os ateus de hoje; daí a estranheza que este livro pode causar no leitor
bíblico desprevenido. Para ele a morte é o fim definitivo: “todos saíram do pó
e ao pó hão-de tornar” (3,20). É o destino de todos: “todos vão para o mesmo
lugar” (3,20; 6,6). A morte iguala a todos: sábios e néscios (2,14) e até homens e
animais (3,19).
A violência crítica de Qohélet resulta exactamente de, no seu tempo,
não se admitir a vida no Além. Esta ideia associada à doutrina da retribuição
colocava-o em maus lençóis. A doutrina da retribuição era um verdadeiro dogma,
“um baluarte inexpugnável” (J. Vilchez) e afirmava que os bons sempre
receberiam o prémio e os maus o castigo. Se assim é, o cumprimento da
retribuição – prémio aos bons e castigo para os maus – devia acontecer nesta
vida. Qohélet, coerente e radical, sabe perfeitamente que está a enfrentar a
tradição sapiencial: “Sei, no entanto, que a felicidade é para os que temem a
Deus… Não haverá felicidade para o mau” (8,12). Mas… efectivamente ele
verificava que nesta vida acontecia o contrário: “Vi tudo isto no decurso da
minha falaz existência; há um justo que morre apesar da tua existência e há um
mau que continua a viver apesar da sua malícia” (7,15; 8,14; 9,2-6). Qohélet
está entre a espada e a parede, mas não foge: afirma ao mesmo tempo a fé em
Deus (que abordarei no próximo post)
e a não discriminação entre justo e injusto, sábio e néscio, puro e impuro,
religioso e não religioso (9,1-3). Qohélet ainda parece querer esboçar uma
solução que passe pelo adiatamento no tempo: “a sentença contra o que pratica
o mal não é executada imediatamente” (8,11). Job, que abordara o mesmo problema,
fica-se pelo desfasamento temporal mas a nível individual: Job, que era justo, foi castigado, mas depois, no final do livro, é recompensado.
O leitor, ao chegar aqui, deve estar a dizer com os seus botões: Que post tão mal arrumado!”. Pelo menos foi
o que eu senti na leitura final antes de o publicar. Ainda pensei em
organizá-lo, mas tive uma ideia brilhante. Assim desarrumado como está é uma “boa”
imagem (passe a imodéstia!) da desarrumação deste livro. Realmente a preguiça é
muito criativa. No meu caso é falta de jeito, no Qohelet trata-se de uma forma
literária que nada tem de ocidental, mas muito de semita: começa por enunciar a
tese e só depois é que apresenta os argumentos nem sempre da maneira mais
lógica.
Resumindo: estamos perante uma obra surpreendente, desconcertante e
atrevida de um homem (sábio) honesto que procura afincadamente e com toda a
honestidade a verdade e o sentido da vida a partir das suas próprias
experiências e reflexões.
Vou terminar com duas citações sem comentários.
1) “Para muitos modernos agnósticos, Qohélet é a última ponte para a
Bíblia; para muitos cristãos de hoje (é) a infame e querida porta traseira,
através da qual podem deixar entrar na sua consciência sentimentos
céptico-melancólicos que não poderiam entrar pela porta principal, em cujo
rótulo se lê: prémio à virtude e fé no mais Além” (N. Lohfink);
2) “A descoberta surpreendente de que também na Sagrada Escritura se
encontra um investigador e um céptico radical pode fazer que ele (o homem
moderno) receba a palavra bíblica melhor que na pregação convencional. Desta
maneira, Qohélet pode ter maior efeito no nosso tempo que uma doutrina
tradicional, sem contradições, com os problemas já resolvidos” (A. Lauha).
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