divórcio ou casamento eterno?...

2012-12-26

Um Livro inesperado

Há dois aspectos do último post que gostaria de retomar: o problema dos crentes e dos não crentes perante as contradições da vida e a última frase de Bento XVI sobre Auschwitz.
Para o primeiro aspecto, iria servir-me de um pequeno livro da Bíblia: o Qohelet ou Eclesiastes.

É um livro inesperado na Bíblia. É um livro para adultos, adultos na vida e adultos na fé. Mesmo estes poderão ficar escandalizados com muitas das afirmações. Contudo, apesar de ter sido escrito em Jerusalém, no século III aC, na primeira fase da helenização da Palestina, revela-se extremamente actual pela sua postura e pelas interrogações que coloca.

O autor deve ter sido alguém abastado, pois tem uma visão idílica da vida do trabalhador: “Doce é o sono do trabalhador, quer tenha comido pouco ou muito” (5,11).

É um crítico radical de quase tudo na vida, que não se cala perante nenhum aspecto da realidade:
- o prazer que, para ele, se identifica com o poder (2,1-11) e com a riqueza (5,9-10);
- a mulher: “Considero que mais amargo que a morte é encontrar uma mulher que é uma armadilha, cujo coração é uma rede e as suas mãos são cadeias” (7,26);
- a sociedade que está organizada de modo injusto (5,7; 9,11.9,14-16; 10,5-7), sem liberdade de expressão (10,20), movida pela inveja (4,4) e na qual “o rei faz o que lhe apraz” (8,3-4);
- a ciência que chega a um beco sem saída (1,13);
- o poder, no qual reina a incompetência (nescidade, qualidade do que é néscio): “o insensato ocupa os mais altos postos e os homens de valor estão colocados nos postos inferiores” (10,6-7); aliás, a incompetência parece ser universal: “o que é torto não se pode endireitar” (1,15);
- o trabalho porque acaba por não ser para o homem pois o que realiza será herdado por um estranho (2,18-19; 4,8; 6,2);
- os filhos de quem diz que serão os seus herdeiros mas ele não sabe se serão sábios ou néscios (2,18-21).

É alguém que parece céptico sobre tudo, radicalmente céptico, até relativamente à Sabedoria tradicional, não só porque não consegue chegar a lado nenhum (“é loucura e nescidade”) mas também porque traz consigo muito sofrimento (“o que aumento o conhecimento, aumenta o sofrimento”) (1,12-18). Esta atitude é antes de mais uma atitude filosófica: a partir da dúvida metódica aborda todas as coisas. O seu método consiste em investigar tudo: “apliquei-me a estudar e a explorar, por meio da sabedoria, todas as coisas que se sucedem debaixo do céu. É uma tarefa ingrata… Vi tudo o que se faz debaixo do sol” (1,12-14; 2,11; 7,23, 8,9.17). Investiga tudo, mas conclui que nada conseguirá saber: “Ele (o homem) afadiga-se a investigar mas não encontra nada e, mesmo o sábio, se pretender conhecer, não poderá descobrir” (8,17). Parece haver um certo fatalismo, pois há um tempo para cada coisa (3,1-8; 8,6) e o homem não conhece o futuro (6,7; 10,14). Critica o excessivo optimismo da Sabedoria antiga através de várias contradições de que as afirmações sobre a vida são um caso típico. Por um lado, “odeia a vida” (2,17), “todos os seus dias são apenas dor” (2,23); os mais felizes são os que “nunca chegaram à existência e (= porque) não chegaram a ver o mal que se comete debaixo do sol” (4,3). Por outro, agarra-se à vida: “mais vale um cão vivo que um leão morto” (9,4).
De qualquer maneira este cepticismo parece atenuado pelo número de vezes que utiliza a palavra “alegria” (2,1.2.10.26; 2,26; 3,22; 5,19.20; 7,14; 8,15; 10,19; 11.8).

Parece ser um hedonista, pois afirma repetidamente que “Nada há de melhor para o homem do que comer e beber e gozar o bem-estar, fruto do seu trabalho” (2,24; 3,12s.22; 5,17; 6,12; 8,15; 9,7-9). Com este apelo repetido a aproveitar os momentos “bons” da vida até parece um dos temas fundamentais deste texto: “Que o tema fundamental de livro era a simhah, o desfrutar a vida, foi claramente reconhecido pelas autoridades religiosas judaicas, que justificaram assim o costume da leitura do Qohélet na sinagoga na festa dos Tabernáculos, a estação da alegria” (R. Gordis). Apesar de todos estes apelos a “comer e a beber”, o autor não faz disso uma norma de deboche, pois essas suas afirmações terminam geralmente por dizer “goza destes porque te foram dados por Deus”: “isto vem da mão de Deus” (2,24); “um dom de Deus” (3,13); “Só Deus dá ao homem bens e riqueza e a possibilidade de usufruir deles” (5,18) ou “Vai, come o teu pão com alegria e bebe com prazer o teu vinho, porque a Deus agradam as tuas obras” (9,7). Portanto não se trata tanto de um hedonista material ou epicúrio, mas mais de hedonista filosófico que goza com sabedoria os bens que Deus lhe deu.

Resumindo: a vida tem o lado bom e o lado mau, o positivo e o negativo, o prazer e o sofrimento (3,1-8):
Tudo tem um tempo e um momento, todas as coisas debaixo do sol:
tempo de nascer e tempo de morrer;
tempo de matar e tempo de curar;
tempo de destruir e tempo de construir;
tempo de chorar e tempo de rir;
tempo de se lamentar e tempo de dançar;
tempo de atirar pedras e tempo de juntar pedras;
tempo de abraçar e tempo de desprender-se;
tempo de procurar e tempo de prender;
tempo de guardar e tempo de atirar fora;
tempo de rasgar e tempo de coser;
tempo de calar e tempo de falar;
tempo de amar e tempo de odiar;
tempo de guerra e tempo de paz.
Mas o lado mau sobrepõe-se ao bom: “Que proveito tiramos destas fadigas?” (3,1-9). Talvez por isso ele recomende que não se viva sozinho: “É melhor dois que um só: tirarão melhor proveito do seu esforço” (4,9-12).
De qualquer modo, este poema é um grande desafio às pessoas de hoje que “não têm tempo para nada”. O marido não tempo para namorar a esposa e a esposa não tem tempo para namorar o marido. Os pais não têm tempo para dar aos filhos e os filhos não têm tempo para dar aos pais. As pessoas não têm tempo para respeitar a natureza nem tempo para celebrar a vida. As pessoas andam sempre a correr, empurradas pelos acontecimentos. É preciso abrandar para chegar mais longe (Devagar se vai ao longe). É preciso parar de vez em quando para apreciar e saborear tudo o que nos rodeia, dando tempo a cada coisa.

Pergunta fundamental
A pergunta fundamental está colocada logo ao abrir o livro – “Que proveito traz ao homem todo o esforço que faz?” (1,3) – e vai sendo repetida sucessivamente como um gong a lembrar qual esta é a questão fundamental (2,10; 2,22; 3,9; …).
E responde logo, ou melhor ainda antes de fazer a pergunta: “Ilusão das ilusões; tudo é ilusão!” (1,2). Esta é certamente a palavra mais repetida – 38 vezes – ao longo do livro. A tradução antiga era vaidade, a partir da tradução latina: “Vanitas vanitatum”. A palavra latina vanitas deu a nossa palavra vaidade. Mas facilmente se percebe que neste livro temos de ir ao significado etimológico (de vanus, vazio): aparência, o que é vazio, oco, que não tem nada dentro, que não é consistente; futilidade, ilusão.
Repare-se que a mesma afirmação – ilusão das ilusões tudo é ilusão – aparece a abrir o livro (1,2) e a fechá-lo (12,8). Trata-se, portanto, de uma inclusão muito utilizada na Bíblia e noutras línguas orientais, que significa que todo o texto incluído, enquadrado por esta afirmação, desenvolve e constitui a ideia central; neste caso, ilusão.
Para o autor, tudo é ilusão ou “correr atrás do vento” (1,17, …).
Mas esta conclusão quase absoluta – tudo acaba por ser ilusão – não o leva ao desespero, apesar do seu desabafo: “Desesperei em meu coração de todo o trabalho que suportei” (2,20). Nem nunca pôs o problema do suicídio, porque “ninguém é dono do seu sopro vital nem é capaz de o conservar. Ninguém tem poder sobre o dia da sua morte” (8,8). E até pergunta “por que hás-de querer morrer antes da tua hora?” (7,17).
Repare-se que o Qohélet “ainda” não admitia a vida do Além, era “ateu” como os ateus de hoje; daí a estranheza que este livro pode causar no leitor bíblico desprevenido. Para ele a morte é o fim definitivo: “todos saíram do pó e ao pó hão-de tornar” (3,20). É o destino de todos: “todos vão para o mesmo lugar” (3,20; 6,6). A morte iguala a todos: sábios e néscios (2,14) e até homens e animais (3,19).
A violência crítica de Qohélet resulta exactamente de, no seu tempo, não se admitir a vida no Além. Esta ideia associada à doutrina da retribuição colocava-o em maus lençóis. A doutrina da retribuição era um verdadeiro dogma, “um baluarte inexpugnável” (J. Vilchez) e afirmava que os bons sempre receberiam o prémio e os maus o castigo. Se assim é, o cumprimento da retribuição – prémio aos bons e castigo para os maus – devia acontecer nesta vida. Qohélet, coerente e radical, sabe perfeitamente que está a enfrentar a tradição sapiencial: “Sei, no entanto, que a felicidade é para os que temem a Deus… Não haverá felicidade para o mau” (8,12). Mas… efectivamente ele verificava que nesta vida acontecia o contrário: “Vi tudo isto no decurso da minha falaz existência; há um justo que morre apesar da tua existência e há um mau que continua a viver apesar da sua malícia” (7,15; 8,14; 9,2-6). Qohélet está entre a espada e a parede, mas não foge: afirma ao mesmo tempo a fé em Deus (que abordarei no próximo post) e a não discriminação entre justo e injusto, sábio e néscio, puro e impuro, religioso e não religioso (9,1-3). Qohélet ainda parece querer esboçar uma solução que passe pelo adiatamento no tempo: “a sentença contra o que pratica o mal não é executada imediatamente” (8,11). Job, que abordara o mesmo problema, fica-se pelo desfasamento temporal mas a nível individual: Job, que era justo, foi castigado, mas depois, no final do livro, é recompensado.

O leitor, ao chegar aqui, deve estar a dizer com os seus botões: Que post tão mal arrumado!”. Pelo menos foi o que eu senti na leitura final antes de o publicar. Ainda pensei em organizá-lo, mas tive uma ideia brilhante. Assim desarrumado como está é uma “boa” imagem (passe a imodéstia!) da desarrumação deste livro. Realmente a preguiça é muito criativa. No meu caso é falta de jeito, no Qohelet trata-se de uma forma literária que nada tem de ocidental, mas muito de semita: começa por enunciar a tese e só depois é que apresenta os argumentos nem sempre da maneira mais lógica.
Resumindo: estamos perante uma obra surpreendente, desconcertante e atrevida de um homem (sábio) honesto que procura afincadamente e com toda a honestidade a verdade e o sentido da vida a partir das suas próprias experiências e reflexões.

Vou terminar com duas citações sem comentários.
1) “Para muitos modernos agnósticos, Qohélet é a última ponte para a Bíblia; para muitos cristãos de hoje (é) a infame e querida porta traseira, através da qual podem deixar entrar na sua consciência sentimentos céptico-melancólicos que não poderiam entrar pela porta principal, em cujo rótulo se lê: prémio à virtude e fé no mais Além” (N. Lohfink);
2) “A descoberta surpreendente de que também na Sagrada Escritura se encontra um investigador e um céptico radical pode fazer que ele (o homem moderno) receba a palavra bíblica melhor que na pregação convencional. Desta maneira, Qohélet pode ter maior efeito no nosso tempo que uma doutrina tradicional, sem contradições, com os problemas já resolvidos” (A. Lauha).



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