divórcio ou casamento eterno?...

2012-12-03

Salmo 23


O salmo 29 marcara-me muito pela negatividade e arrastara nesse sentido o AT. É certo que continuava a maravilhar-me com histórias dos patriarcas, esse conjunto de histórias de que todas as crianças e adultos gostam.
Mas quando me encontrei com o Salmo 23, as minhas convicções vieram abaixo. Afinal não havia só medos no Deus do AT. Havia também bondade, amor e muita confiança.

1O Senhor é meu pastor: nada me falta.
2Leva-me a descansar em verdes prados,
conduz-me às fontes tranquilas
3e recupera as minhas forças;
guia-me por caminhos justos
como pede o seu título.
4Embora caminhe por vales tenebrosos,
nada temo: Tu vais comigo;
a tua vara e o teu cajado sossegam-me.
5Preparas para mim uma mesa
à vista dos meus inimigos.
Unges-me com perfume a cabeça,
a minha taça transborda.
6A tua bondade e amor escoltam-me
todos os dias da minha vida;
e habitarei na casa do Senhor
para todo o sempre.

A primeira sensação que tive veio reforçar a minha visão de Deus como Providência, um Deus em quem se poderia confiar absolutamente: “nada me falta” (v. 1); “nada temo: Tu vais comigo” (v. 4); “todos os dias da minha vida” (6); “por dias sem fim” (6). Esta proximidade de um Deus que eu/o salmista trata por Tu. Este belo e poético canto inspirava-me confiança, paz e calma. Tudo isso transmitido através de imagens muito bonitas, que recordavam alegrias e coisas agradáveis da minha meninice: prados verdejantes, fontes de água fresca e cristalina. Esta é a imagem que uma primeira leitura nos deixa. Ficamos, logo, presos a este salmo. Eu nunca fui pastor. No “meu tempo” havia poucos pastores adultos, pois era uma actividade própria da adolescência (se na altura havia adolescência!). Mas ouvira muitas histórias de pastores (do meu pai, por exemplo, que teve que enfrentar alguns lobos ou resgatar alguma cabra das fauces do lobo). Acompanhara alguns pastores e verificara o carinho com que as acompanhavam (embora não faltasse, quando necessário, uma pedrada ou uma cajadada para as reconduzir ao rebanho). Ouvira o pastor chamar cada uma delas pelo nome sem se enganar na destinatária. As voltas que davam para encontrar a cabra que se tresmalhara. Portanto, a imagem de pastor era para mim um imagem vivida de amor e carinho. E muito atractiva.
Mais tarde, num dos melhores grandes comentários que li, L.A. Schökel e C. Carniti, que vou aqui seguir de perto, repetem esta ideia classificando-o como um dos salmos mais atractivos do saltério. Contudo, esta atracção pode levar a dois perigos. Encadeados pela beleza-macro, corremos o risco de que nos escapem as belezas-micro que formam a urdidura deste salmo, ou de cairmos numa “prematura espiritualização” do seu realismo imaginativo. É que são tantas as imagens e tão ricas em tão pequeno “espaço” que podemos passar por elas sem atender à sua enorme diversidade e conteúdo.
Mesmo numa primeira leitura é fácil perceber que o salmo está dividido em duas partes: a primeira apresenta Deus com pastor (1-4); a segunda, já não de modo tão evidente, apresenta Deus como anfitrião (5-6).

Deus como Pastor
A imagem do pastor, muito comum na Bíblia e em escritos doutras religiões, é aqui desenhada com realismo e concisão.
O verde da erva onde nos deitamos para descansar, as fontes frescas e retemperadoras das forças, os vales sombrios são pinceladas precisas que nos permitem reconstruir mentalmente uma cena. No meio do deserto verdeja um oásis com a sua fonte cristalina. As ovelhas ou cabras descansam deitadas na relva, após terem bebido água e retemperado as forças. Depois põem-se a caminho. O pastor, fazendo honra ao seu título, guia o rebanho por caminhos seguros, que ele tão bem conhece, evitando que as ovelhas se tresmalhem. Caminhando por um vale, cai a escuridão. Os animais, incapazes de ver o pastor, obedecem aos sinais do som e do tacto: uma palavra oportuna incita os que se atrasam, um ligeiro toque com a vara corrige os que se desviam e um golpe ritmado sobre as pedras certifica-os de uma presença conhecida e tranquilizadora.
O primeiro verso diz-nos que os versículos seguintes devem ser lidos como imagem. Não se trata de ovelhas ou cabras, mas sim de uma imagem. Há aqui dois planos de significado que se fundem numa aresta comum, sobre o qual avança o poema. Do alto desta aresta podemos ver simultaneamente as duas vertentes. Embora a dimensão espiritual possa nalguns momentos adquirir uma importância especial (“Tu estás comigo!”), há que notar o sentido também pastoril do texto, conservando o seu realismo imaginativo, que se vai manifestando através de uma série de símbolos arquetípicos, conjugados na imagem universal do pastoreio:
- os verdes prados com a calma que inspira esse verde que todos recordamos da infância: rebolar-se na erva verde é uma imagem universal de segurança e acolhimento;
- a água que mata a sede depois de uma caminhada mas também que retempera as forças: uma experiência quase única é “conhecer a água pela sede”;
- a caminhada: símbolo de toda a pessoa enquanto ser limitado: “o caminho faz-se caminhando”;
- a escuridão com os seus medos que, pelo menos na infância, quase todos vivemos; na escuridão procura-se, deseja-se e sente-se com mais força uma presença amiga.
De repente, o salmista deixa a terceira pessoa, surgindo um Tu (segunda pessoa): nele reconhecemos o bom pastor que dá o título a este salmo. Foi a escuridão que fez interiorizar a relação pessoal ao deixar-nos sós.
O verde da erva, a água da fonte, o caminho seguro, a orientação na escuridão são coisas simples e ricas, cujo potencial simbólico não se esgota numa primeira leitura.

Deus como Anfitrião
Para perceber o contexto deve recordar-se a importância da hospitalidade sobretudo numa cultura nómada. Fora do acampamento, estende-se o deserto ou a estepe devoradora das pessoas. Ser expulso do acampamento equivale a uma condenação à morte, a menos que seja acolhido por outro clã qualquer. Suponhamos que quem fala no salmo é um fugitivo perseguido pelos seus inimigos. Apelando à hospitalidade, é acolhido na tenda do chefe, que lhe oferece de comer e de beber e unge-lhe a cabeça. Os inimigos, ao verem-no a comer e a beber, percebem que está sobre a protecção de aluém. Como atacar seria uma violação grave do direito de hospitalidade, os inimigos afastam-se. O anfitrião, no fim da refeição, oferece-lhe uma escolta de dois acompanhantes que o escoltarão até ao seu destino.
O plano espiritual rapidamente se sobrepõe aos elementos metafóricos, quando se sabe que os dois acompanhantes são “a bondade e o amor” e o seu destino é “a casa do Senhor”.
As imagens da hospitalidade são familiares para a nossa cultura ocidental, excepto a de “ungir com aromas. Em parte porque procuramos eliminar odores como os desodorizantes, em parte porque camuflámos a função do azeite sob a forma de pomadas e unguentos. Por isso é importante recordar que aromas e perfumes despertam um ambiente de festa, que as pomadas defendem a pele das intempéries agressivas, que os unguentos fortalecem os músculos. Escavando sob a técnica, compreendemos o acerto de não esquecer a unção no banquete”.
No último verso, Deus passa para primeiro plano.


Conclusão
“Todo o poema está em movimento até ao verso conclusivo. Isto sucede de um modo curioso: duas vezes o poeta interrompe o descanso com o caminho, não o contrário. Dito por outras palavras: o repouso precede o caminho: o rebanho deita-se, bebe… e retoma a marcha até mesmo na escuridão; o refugiado come e bebe e retoma um caminho, escoltado pela bondade e pelo amor, até chegar à casa do Senhor. Um detalhe parece perturbar o repouso final: se a casa do senhor é a morada duradoura, “para todo o sempre”, a escolta há-de acompanhá-lo “todos os dias da minha vida”. Toda a vida em caminho ou numa morada final no Templo? O poema termina com uma tensão não resolvida, como se uma e outra vez se voltasse a começar, como se o salmo se tivesse de repetir durante toda a vida. Os dois advérbios finais relativizam os símbolos, obrigando-os a coexistir: caminho e morada, rebanho e hóspede, toda a vida e para todo o sempre”.

2 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Parabéns!

Fizeste uma reflexão e uma análise comparativa (refiro-me aos dois salmos ou aos dois posts) brilhante. Para quem teve uma educação católica tradicional, e somos muitos, seria necessário algum trabalho deste. É que mais pareciam dois deuses do que um só. Ainda por coma O que me metia medo era muito mais dominador...também por isso mesmo!

5/12/12 18:58

 
Blogger Zé Dias disse...

Caro amigo
Agradeço as palavras benevolentes.
De qualquer modo, quero esclarecer o seguinte.
Eu não sou teólogo nem escrevo como teólogo. Sou um crente que está a partilhar estes sentimentos pessoais com todos. Por isso quero deixar claro que o que escrevo não é oficial. São apenas partilhas das minhas dificuldades e alegrias de crente que teve a imensa sorte de encontrar Jesus. A minha partilha é portanto apenas um desabafo de alma, apenas uma reflexão íntima com o meu ego profundo.
Que isto fique bem claro. Naturalmente que me estou a socorrer de autores que tenho na minha biblioteca, que utilizo para aprofundar a minha fé.
Um abraço fraterno

5/12/12 23:55

 

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