Salmo 23
O salmo 29 marcara-me muito pela negatividade e arrastara nesse
sentido o AT. É certo que continuava a maravilhar-me com histórias dos
patriarcas, esse conjunto de histórias de que todas as crianças e adultos
gostam.
Mas quando me encontrei com o Salmo 23, as minhas convicções vieram
abaixo. Afinal não havia só medos no Deus do AT. Havia também bondade, amor e
muita confiança.
1O Senhor é meu pastor: nada me falta.
2Leva-me a descansar em verdes prados,
conduz-me
às fontes tranquilas
3e
recupera as minhas forças;
guia-me por caminhos justos
como
pede o seu título.
4Embora caminhe por vales tenebrosos,
nada
temo: Tu vais comigo;
a
tua vara e o teu cajado sossegam-me.
5Preparas para mim uma mesa
à
vista dos meus inimigos.
Unges-me com perfume a cabeça,
a
minha taça transborda.
6A tua bondade e amor escoltam-me
todos
os dias da minha vida;
e habitarei na casa do Senhor
para
todo o sempre.
A primeira sensação que tive veio reforçar a minha visão de Deus como
Providência, um Deus em quem se poderia confiar absolutamente: “nada me falta”
(v. 1); “nada temo: Tu vais comigo” (v. 4); “todos os dias da minha vida” (6);
“por dias sem fim” (6). Esta proximidade de um Deus que eu/o salmista trata por
Tu. Este belo e poético canto inspirava-me confiança, paz e calma. Tudo isso
transmitido através de imagens muito bonitas, que recordavam alegrias e coisas
agradáveis da minha meninice: prados verdejantes, fontes de água fresca e cristalina.
Esta é a imagem que uma primeira leitura nos deixa. Ficamos, logo, presos a
este salmo. Eu nunca fui pastor. No “meu tempo” havia poucos pastores adultos,
pois era uma actividade própria da adolescência (se na altura havia
adolescência!). Mas ouvira muitas histórias de pastores (do meu pai, por exemplo,
que teve que enfrentar alguns lobos ou resgatar alguma cabra das fauces do
lobo). Acompanhara alguns pastores e verificara o carinho com que as
acompanhavam (embora não faltasse, quando necessário, uma pedrada ou uma
cajadada para as reconduzir ao rebanho). Ouvira o pastor chamar cada uma delas
pelo nome sem se enganar na destinatária. As voltas que davam para encontrar a
cabra que se tresmalhara. Portanto, a imagem de pastor era para mim um imagem
vivida de amor e carinho. E muito atractiva.
Mais tarde, num dos melhores grandes comentários que li, L.A. Schökel
e C. Carniti, que vou aqui seguir de perto, repetem esta ideia classificando-o
como um dos salmos mais atractivos do saltério. Contudo, esta atracção pode
levar a dois perigos. Encadeados pela beleza-macro, corremos o risco de que nos
escapem as belezas-micro que formam a urdidura deste salmo, ou de cairmos numa
“prematura espiritualização” do seu realismo imaginativo. É que são tantas as
imagens e tão ricas em tão pequeno “espaço” que podemos passar por elas sem
atender à sua enorme diversidade e conteúdo.
Mesmo numa primeira leitura é fácil perceber que o salmo está dividido
em duas partes: a primeira apresenta Deus com pastor (1-4); a segunda, já não
de modo tão evidente, apresenta Deus como anfitrião (5-6).
Deus como Pastor
A imagem do pastor, muito comum na Bíblia e em escritos doutras
religiões, é aqui desenhada com realismo e concisão.
O verde da erva onde nos deitamos para descansar, as fontes frescas e
retemperadoras das forças, os vales sombrios são pinceladas precisas que nos
permitem reconstruir mentalmente uma cena. No meio do deserto verdeja um oásis
com a sua fonte cristalina. As ovelhas ou cabras descansam deitadas na relva,
após terem bebido água e retemperado as forças. Depois põem-se a caminho. O
pastor, fazendo honra ao seu título, guia o rebanho por caminhos seguros, que
ele tão bem conhece, evitando que as ovelhas se tresmalhem. Caminhando por um
vale, cai a escuridão. Os animais, incapazes de ver o pastor, obedecem aos
sinais do som e do tacto: uma palavra oportuna incita os que se atrasam, um
ligeiro toque com a vara corrige os que se desviam e um golpe ritmado sobre as
pedras certifica-os de uma presença conhecida e tranquilizadora.
O primeiro verso diz-nos que os versículos seguintes devem ser lidos
como imagem. Não se trata de ovelhas ou cabras, mas sim de uma imagem. Há aqui
dois planos de significado que se fundem numa aresta comum, sobre o qual avança
o poema. Do alto desta aresta podemos ver simultaneamente as duas vertentes.
Embora a dimensão espiritual possa nalguns momentos adquirir uma importância
especial (“Tu estás comigo!”), há que notar o sentido também pastoril do texto,
conservando o seu realismo imaginativo, que se vai manifestando através de uma
série de símbolos arquetípicos, conjugados na imagem universal do pastoreio:
- os verdes prados
com a calma que inspira esse verde que todos recordamos da infância: rebolar-se
na erva verde é uma imagem universal de segurança e acolhimento;
- a água que mata
a sede depois de uma caminhada mas também que retempera as forças: uma
experiência quase única é “conhecer a água pela sede”;
- a caminhada:
símbolo de toda a pessoa enquanto ser limitado: “o caminho faz-se caminhando”;
- a escuridão com
os seus medos que, pelo menos na infância, quase todos vivemos; na escuridão
procura-se, deseja-se e sente-se com mais força uma presença amiga.
De repente, o salmista deixa a terceira pessoa, surgindo um Tu
(segunda pessoa): nele reconhecemos o bom pastor que dá o título a este salmo.
Foi a escuridão que fez interiorizar a relação pessoal ao deixar-nos sós.
O verde da erva, a água da fonte, o caminho seguro, a orientação na
escuridão são coisas simples e ricas, cujo potencial simbólico não se esgota
numa primeira leitura.
Deus como Anfitrião
Para perceber o contexto deve recordar-se a importância da
hospitalidade sobretudo numa cultura nómada. Fora do acampamento, estende-se o
deserto ou a estepe devoradora das pessoas. Ser expulso do acampamento equivale
a uma condenação à morte, a menos que seja acolhido por outro clã qualquer. Suponhamos
que quem fala no salmo é um fugitivo perseguido pelos seus inimigos. Apelando à
hospitalidade, é acolhido na tenda do chefe, que lhe oferece de comer e de
beber e unge-lhe a cabeça. Os inimigos, ao verem-no a comer e a beber, percebem
que está sobre a protecção de aluém. Como atacar seria uma violação grave do
direito de hospitalidade, os inimigos afastam-se. O anfitrião, no fim da
refeição, oferece-lhe uma escolta de dois acompanhantes que o escoltarão até ao
seu destino.
O plano espiritual rapidamente se sobrepõe aos elementos metafóricos,
quando se sabe que os dois acompanhantes são “a bondade e o amor” e o seu
destino é “a casa do Senhor”.
As imagens da hospitalidade são familiares para a nossa cultura
ocidental, excepto a de “ungir com aromas. Em parte porque procuramos eliminar
odores como os desodorizantes, em parte porque camuflámos a função do azeite
sob a forma de pomadas e unguentos. Por isso é importante recordar que aromas e
perfumes despertam um ambiente de festa, que as pomadas defendem a pele das
intempéries agressivas, que os unguentos fortalecem os músculos. Escavando sob
a técnica, compreendemos o acerto de não esquecer a unção no banquete”.
No último verso, Deus passa para primeiro plano.
Conclusão
“Todo o poema está em movimento até ao verso conclusivo. Isto sucede
de um modo curioso: duas vezes o poeta interrompe o descanso com o caminho, não
o contrário. Dito por outras palavras: o repouso precede o caminho: o rebanho
deita-se, bebe… e retoma a marcha até mesmo na escuridão; o refugiado come e
bebe e retoma um caminho, escoltado pela bondade e pelo amor, até chegar à casa
do Senhor. Um detalhe parece perturbar o repouso final: se a casa do senhor é a
morada duradoura, “para todo o sempre”, a escolta há-de acompanhá-lo “todos os
dias da minha vida”. Toda a vida em caminho ou numa morada final no Templo? O
poema termina com uma tensão não resolvida, como se uma e outra vez se voltasse
a começar, como se o salmo se tivesse de repetir durante toda a vida. Os dois
advérbios finais relativizam os símbolos, obrigando-os a coexistir: caminho e
morada, rebanho e hóspede, toda a vida e para todo o sempre”.
2 Comentários:
Parabéns!
Fizeste uma reflexão e uma análise comparativa (refiro-me aos dois salmos ou aos dois posts) brilhante. Para quem teve uma educação católica tradicional, e somos muitos, seria necessário algum trabalho deste. É que mais pareciam dois deuses do que um só. Ainda por coma O que me metia medo era muito mais dominador...também por isso mesmo!
5/12/12 18:58
Caro amigo
Agradeço as palavras benevolentes.
De qualquer modo, quero esclarecer o seguinte.
Eu não sou teólogo nem escrevo como teólogo. Sou um crente que está a partilhar estes sentimentos pessoais com todos. Por isso quero deixar claro que o que escrevo não é oficial. São apenas partilhas das minhas dificuldades e alegrias de crente que teve a imensa sorte de encontrar Jesus. A minha partilha é portanto apenas um desabafo de alma, apenas uma reflexão íntima com o meu ego profundo.
Que isto fique bem claro. Naturalmente que me estou a socorrer de autores que tenho na minha biblioteca, que utilizo para aprofundar a minha fé.
Um abraço fraterno
5/12/12 23:55
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