divórcio ou casamento eterno?...

2013-04-01

O debate continua

A propósito deste tema do mal e especialmente do sofrimento dos nocentees, aqui deixo para saborear (assim se junta o útil ao agradável) uma página de Os Irmãos Karamazov de Dostoievski. Trata-se da parte final do livro quarto, capítulo quarto (na “minha” edição da editora Estúdios Cor, 1958, ocupa parte das páginas 220 a 223) e desenrola-se num diálogo entre os irmãos – o “místico” Aliocha e o contestatário Ivan – ou melhor num longo monólogo de Ivan, a que responde Aliocha com meia dúzia de sílabas.

- (…) A ciência do homem toda inteira não vale as lágrimas de uma criança. Não falo do sofrimento dos adultos, que comeram o fruto proibido. Leve-os o diabo. Mas as crianças? (…) Escuta. Limitei-me às crianças para ser mais claro. Não falei das lágrimas humanas, abreviando voluntariamente a minha conversa. Confesso com humildade não compreender este estado de coisas. Os homens são os únicos culpados: tinham-lhes concedido o paraíso. Cobiçaram a liberdade e arrebataram o fogo do céu, sabendo que seriam infelizes. Não merecem, pois, nenhuma piedade. Pelo meu pobre espírito terreno, sei apenas que existe o sofrimento, que não há culpados, que tudo passa e se equilibra. São as pataratas de Euclides, mas não consinto em viver apoiando-me nisso. Preciso de uma compensação, de outra forma destruir-me-ei. E não de uma compensação em qualquer sítio, no infinito, mas cá em baixo, uma compensação que eu veja. Acreditei, quero ser testemunha, e, se já estou morto, que me ressuscitem; seria pungente se tudo sucedesse sem mim. Não quero que o meu corpo, com os seus sofrimentos e os seus pecados, sirva unicamente para adubar a harmonia futura, em intenção não sei de quê. Quero ver com os meus olhos a gazela dormir junto do leão, a vítima beijar o seu assassino. É neste desejo que se baseiam todas as religiões, e eu tenho fé. Quero estra presente quando todos souberem o porquê das coisas. Mas as crianças, que farei delas? Não sou capaz de resolver tal problemas. Se todos devem sofrer para assim concorrerem para a harmonia eterna, qual o papel das crianças? Não é admissível que também devam sofrer em nome da harmonia. Porque serviriam de material destinado a prepará-la? Compreendo a solidariedade do pecado e do castigo, mas não se pode aplica-la aos inocentes; os filhos expiaram os erros dos pais, é a lei que não pertence a este mundo e que não chego a perceber. Um gracioso idiota objectará que as crianças crescem e terão tempo de pecar, mas não cresceu aquele pequeno de oito anos dilacerado pelos cães. Não blasfemo, Aliocha. Compreendo como o universo estremecerá quando o céu e a terra se unirem no mesmo grito; quando tudo o que vive ou viveu proclamar “Tens razão, Senhor, pois são-nos revelados os teus caminhos”; quando o verdugo, a mãe e o filho se abraçarem e declararem com lágrimas “Tens razão, Senhor”. Sem dúvida que então se fará luz e tudo será explicado. O pior é que admito uma solução deste género. E tomo as minhas providências, enquanto estou neste mundo. Pode ser que viva até àquele momento, ou que ressuscite na própria ocasião, e talvez grite como os outros “Tens razão, Senhor”, mas será contra vontade. Enquanto é tempo, recuso-me a aceitar essa harmonia superior. Acho que não vale uma lágrima de criança, uma lágrima daquela vitimazinha que invocava Deus no seu canto infecto; não vale não, porque essas lágrimas não foram resgatadas. Os carrascos sofrerão no inferno, poderás objectar. Mas de que serve esse castigo se as crianças tiverem também o seu inferno? Aliás, que valor tem essa harmonia que comporta um inferno? Quero o perdão, o beijo universal, a supressão do sofrimento. E se o sofrimento das crianças é para perfazer a soma das dores necessárias à aquisição da verdade, afirmo que a verdade não merece tal preço. Não quero que mãe perdoe ao verdugo; não tem esse direito. Perdoe-lhe o seu sofrimento de mãe, mas não o que sofreu o filho dilacerado pelos cães. Ainda que o filho perdoasse, ela não teria o direito. Se não existe o direito de perdoar, onde está a harmonia? Haverá no mundo algum ser que tenha esse direito? É por amor à humanidade que não quero semelhante harmonia. Prefiro guardar as minhas dores não resgatadas e a minha indignação persistente. Aliás, exageraram o preço dessa harmonia; custou-nos muito a entrada. Acho melhor devolver o bilhete… E é o que eu faço. Não me nego a admitir Deus, mas devolvo-lhe respeitosamente o meu bilhete.
- Chamo a isso revolta – murmurou Aliocha, de olhos baixos.
- Revolta? Não queria ver-te empregar esse termo. Pode viver-se revoltado? Ora eu quero viver. Responde-me com toda a franqueza. Imagina que tens nas tuas mãos o destino da humanidade e que, para tornares definitivamente as pessoas felizes, para lhes proporcionar a paz e o repouso é indispensável martirizar nem que seja um só ente, uma criança, e sobre as sobre as suas lágrimas a felicidade futura. Consentirias, em tais condições, em edificar tal felicidade? Responde sem mentir.
- Não, não consentiria.
- Nesse caso, podes admitir que os homens consintam em aceitar suficiente felicidade a troco do sangue de um pequeno mártir?
- Não, não posso admitir – respondeu Aliocha, de olhos cintilantes – Perguntaste-me se haverá no mundo um Ser que tenha o direito de perdoar. Sim, existe esse Ser. Pode perdoar a todos porque derramou o Seu sangue inocente por todos. Esqueceste-o, mas Ele é a pedra angular, e a Ele é que nós devemos gritar: “Tens razão, Senhor, pois são-nos revelados os teus caminhos”.
- Ah, sim, o “único sem pecado” e que “derramou o seu sangue”. Não o esqueci, não. Pelo contrário, admirava-me de não o teres ainda mencionado. Pois que nas discussões vocês começam em geral por salientá-lo.

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