divórcio ou casamento eterno?...

2012-12-12


Ninguém pode viver sem fé, no sentido lato. Se não tiver fé no mecânico que me faz a revisão ao carro, como possa andar com ele? Se não tiver fé no homem do talho, como posso comer a carne que ele vende? Se repararmos bem, todos os gestos do dia a dia são exercícios de fé.
Quando passamos para a “virtude” da fé, para aquilo que os cristãos chamam fé – adesão plena à vontade de Deus – começamos por afirmar que a fé é um dom gratuito de Deus, mas também uma conquista, pois implica uma resposta e uma adesão plena. Hoje vou tentar, se conseguir, falar apenas do acto de fé, não do seu conteúdo que ficará para outra altura.
Se é dom por que não chega a todos? Ou chega e eles não reparam? Ou chega e eles estão à espera de outra coisa?
Se é conquista, por que há alguns que dizem sinceramente “como eu gostava de acreditar, mas não sou capaz. O que é preciso para acreditar?”. Mas que fé espera quem deseja a fé? Que fé vêem nos crentes os que querem ter fé? O que invejam neles? Se a fé é uma resposta, a quem podem responder aqueles que não têm fé? Se a fé exige uma resposta consciente a esse dom gratuito de Deus, quem mais dos que a desejam ardentemente e “não a têm” a deveriam ter? Seguramente que essas pessoas vivem este drama na angústia e no sofrimento. Desejam tanto ter fé, mas não têm? Porquê?
Deus, como o Pai do filho pródigo, espera. Deus espera por nós. Deus espera por todos. Deus ama a todos. Quer querer-nos a todos. “Com te hei-de abandonar, Efraim? Deixar-te-ei à mercê dos outros, Israel? Agita-se dentro de mim o meu coração, todas as minhas entranhas se inflamaram. Não desafogarei o ardor da minha ira, não me voltarei para aniquilar Efraim porque sou Deus e não um homem, sou o Santo no meio de ti e não um inimigo às tuas portas” (Os 11,8-9). Curiosa a observação de Deus: “Eu sou um Deus não um homem”. Deus toma atitudes que não compreendemos nem somos capazes de tomar. Mas “a Deus tudo é possível” (Mt 19,26). Mais: Deus recusa-se a abandonar o homem, mesmo quando já “não sabe” que mais fazer, pois conhece bem a nossa fragilidade: “Que hei-de fazer por ti, ó Efraim? Que hei-de fazer por ti, ó Judá? A vossa piedade é como nuvem matinal, como o orvalho que logo se dissipa” (Os 6,4).
Tem de haver alguma atitude da parte de quem crê e de quem quer crer. Que testemunho de fé dão os crentes? Que fé têm os que já “nascem com (a) fé”, na comunidade dos crentes? E como a testemunham? “Por isso, nesta génese do ateísmo, os crentes podem ter uma não pequena parte, na medida em que, pela negligência na educação da fé, pela apresentação falsa da doutrina e também pelas deficiências da sua vida religiosa, moral e social, se pode dizer que mais encobriram do que revelaram a autêntica face de Deus e da religião” (GS 19).
Sé é conquista, talvez o primeiro passo seja acreditar na vida. Depois aceitar as nossas limitações. Esforçar-se por amar os outros. Reconhecer-se como construtor de futuros. Talvez seja preciso “subir às árvores” (Lc 19,4) para ver melhor, como Zaqueu. Talvez este seja um caminho para “conquistar” a fé. Mas são muitos os caminhos da e para a fé.
De qualquer modo, a fé sempre será um mistério.
Não se trata de certezas absolutas. Quem sabe se existe aquilo em que acredito? A fé é um salto no desconhecido. É saltar sem saber se tem chão onde cair. Não se trata de não ter dúvidas. Ai de que quem nunca teve dúvidas, pois nesse caso bem fraca deve ser a sua fé? Sem dúvidas, nunca saberemos qual a força da nossa fé, qual a sua têmpera. Mas não faltam interrogações: toda a fé consciente é acompanhada de perguntas.
O que se poderá afirmar é mais descritivo do que elaborar uma definição. A fé é confiança absoluta em Deus, mas uma confiança continuamente testada. É abandono nas “mãos” de Deus. É, como consequência, aceitar o que Deus nos diz, o que fez por nós e o que nos pede. É ter dúvidas. É angustiar-se. É entusiasmar-se. É ficar perplexo com os silêncios do nosso Deus. É ter medo de ser abandonado: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”. É sabermo-nos nos braços de Alguém que nos conduz a verdes prados e as fontes revigoradoras. É saber e não saber. É ter a certeza e ter a dúvida.
T. Mendonça conta esta história oriental:
“Um discípulo foi ter com o seu professor de meditação, cheio de tristeza, quase a desistir, e confessa-lhe: «A minha prática de meditação é um fracasso! Ou me distraio completamente, ou as pernas me doem, ou entrego-me ao sono.»
«Isso passará» - disse o mestre suavemente.
Uma semana depois, o mesmo estudante voltou à presença do mestre, mas agora eufórico:
«A minha prática de meditação tornou-se maravilhosa! Sinto-me tão vigilante e tão pacificado. É simplesmente extraordinário.»
O mestre respondeu-lhe com a mesma tranquilidade: «Isso também passará».”
São estes “altos e baixos”, o entusiasmo e o desespero, o êxtase e o silêncio, a confiança e a escuridão, que caracterizam a fé. Eu não a entendo, porque a fé é um mistério. E talvez seja mais escuro que radioso, como referia Teresa de Calcutá nas frases que apareceram a público e que tanto escandalizaram muitos crentes e alguns não crentes.
Dizia ela sobre Deus: “Quero amar a Deus naquilo que ele tira… Há tanta contradição dentro da minha alma. Um desejo tão profundo de Deus, tão profundo que se torna doloroso, um sofrimento permanente… E, contudo, não ser querida por Deus, sentir-se repelida, vazia, sem fé, sem amor, sem zelo. As almas não atraem. O Céu nada significa, parece-me um lugar vazio. O pensamento do Céu nada significa para mim e, contudo, esta ânsia torturante de Deus… Se alguma vez vier a ser santa, serei com certeza uma santa da escuridão”. Ou: “Todo o tempo a sorrir é o que dizem de mim as irmãs e as pessoas. Pensam que o meu interior está cheio de fé, confiança e amor… Se soubessem qua a minha aparência alegre não é senão um manto com o qual cubro vazio e miséria”.
A fé em Deus é um mistério tão grande como o mistério de Deus. Bento XVI disse, em Auschwitz: “Tomar a palavra neste lugar de horror, de acúmulo de crimes contra Deus e contra o homem sem igual na história, é quase impossível e é particularmente difícil e oprimente para um cristão, para um Papa que provém da Alemanha. Num lugar como este faltam as palavras, no fundo pode permanecer apenas um silêncio aterrorizado um silêncio que é um grito interior a Deus: Senhor, por que silenciaste? Por que toleraste tudo isto? É nesta atitude de silêncio que nos inclinamos profundamente no nosso coração face à numerosa multidão de quantos sofreram e foram condenados à morte; todavia, este silêncio torna-se depois pedido em voz alta de perdão e de reconciliação, um grito ao Deus vivo para que jamais permita uma coisa semelhante.” (28.Maio.2006)
A última frase, que grita ao Deus vivo para não permitir nada semelhante, coloca-me várias interrogações. Foi Deus o culpado? Devia Deus ter evitado tal crime de lesa humanidade e, portanto, de lesa-divindade? O pedido é só para que aquele genocídio não se repita ou é para todos os outros que aconteceram ao longo de uma história humana? Não percebo bem as palavras do papa. Os homens e mulheres que decretaram, os que executaram, os que calaram aquele horror é que foram os culpados por esta degradação da humanidade. Não foi Deus.

Mas há ainda uma frase perturbadora: “Mas quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra?” (Lc 18,8) O que significa este versículo? Há quem diga que está deslocado e que deveria ligar-se ao cap.17. Neste caso, continuaria a ideia, aí apresentada sob a forma apocalíptica, e significaria: serão os homens capazes de manter a fé, enquanto carregam a sua cruz, através da escuridão, até ao Calvário? Outros consideram que tratar-se-ia de uma exortação aos crentes para que se mantivessem fiéis ao Senhor, mesmo quando a fé for perdendo a sua importância no mundo que, pensavam os primeiros cristãos, iria acontecer no final dos tempos, que estaria para muito breve (“Esta geração não passará sem que tudo isto aconteça”: Mt 24,34 e paral.): “Nessa altura, muitos sucumbirão e hão-de trair-se e odiar-se uns aos outros. Surgirão muitos falsos profetas que hão-de enganar a muitos. E porque se multiplicará a iniquidade, vai resfriar o amor de muitos; mas aquele que se mantiver firme até ao fim será salvo” (Mt 24,10-13); “Ninguém, de modo algum, vos engane” (2Tes 2,3). Talvez o atraso da segunda vinda e as perseguições a que estavam sujeitas as comunidades apostólicas tenham arrefecido o entusiasmo inicial da fé da comunidade de Lucas. Estavam, portanto, carenciadas destas palavras de ânimo!
Vendo bem, ambas as interpretações são, no fundo, a mesma: exortar os cristãos a preservar na fé.

Uma última observação. Há quem diga que é mais difícil acreditar do que não acreditar.
Isto lembra-me um pequeno episódio da minha vida. Um dos meus maiores amigos, que é ateu, dizia-me com ar sorridente: «Olha quando eu morrer, se der de caras com o S. Pedro digo-lhe logo: «Ó S. Pedro não me chateies porque eu não acreditava e supunha que tu não existias. Vai ali chatear o meu amigo porque esse é que acreditava”».
Mas também há quem diga que é mais difícil não acreditar: “A vida é uma luta que, por muito que nos esforcemos, está perdida à partida – desapareceremos no nada e os verdugos continuarão a dominar – e, no entanto, sustenta-nos a convicção de que não podemos abandonar o combate sem nos aniquilarmos a nós mesmos. Viver é lutar pela justiça, sabendo que a batalha está perdida à partida e que não podemos abandonar o combate. (…) Os que vivemos a ausência de Deus não temos ninguém a quem implorar nem ninguém que nos proteja. Não é que tenhamos querido abandonar a Deus; o que se passa é que, ao superar a visão do mundo que o tornava evidente, perdemo-lo pelo caminho, sem que ele nos tenha deitado a mão para facilitar o reencontro. Do seu silêncio inferimos que não existia.” (I. Sotelo)
Penso que ambas as atitudes têm o mesmo grau de dificuldade, se as pessoas forem honestas consigo próprias. Para o crente, dá muita força acreditar num Além de felicidade eterna, num Deus que o amo incondicionalmente. Mas também o não crente precisa de acreditar nalguma coisa para poder sobreviver, seja na pessoa, seja na sociedade sem classes, seja na evolução da história.
É que, no fundo, crentes e não crentes somos todos crentes em Alguém ou em alguma coisa. Ou melhor, como dizia alguém, “de alguma maneira, todos somos habitantes da dúvida e da fé”.

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