Aborto. 7. Balanço de véspera
Em vésperas de referendo e depois de ouvir tantas coisas de um lado e de outro, vou fazer o meu balanço. Não vou repetir as razões pelas quais sou contra o referendo (ver Aborto 1.) e que poderão levar-me, de uma forma consciente e não por medo de tomar uma decisão, à não participação. Se participar, são as seguintes as condicionantes para o meu voto.
A distinção entre vida e vida humana (um dos argumentos do SIM) parece-me artificial: por exemplo, se “vida humana” significa ter a autonomia suficiente, que permita ser um sujeito (agente da história) livre (imune de coacções ilegítimas) e consciente (sabendo o que está a fazer) (a “minha” definição de ser humano), até onde teríamos de ir?
A vida tão defendida pelo NÃO parece esquecer a qualidade de vida: não basta garantir a vida na barriga da mãe; é preciso que se nasça com garantias mínimas de uma vida digna e em condições de ser o tal “sujeito livre e consciente”. Por isso, eu critico que este esforço se esgote na defesa “desta vida”, esquecendo, por exemplo, a luta contra a pobreza extrema ou contra a poluição que está a degradar o nosso mundo, violando o direito de muitas pessoas que, por ainda não terem nascido, são de todas as mais desprotegidas.
A resposta SIM à pergunta acaba com o aborto clandestino até às 10 semanas, mas permite todos os abortos, podendo criar um direito que será difícil de incluir numa ética de mínimos que qualquer sociedade deve respeitar.
A resposta NÃO à pergunta torna impossível apoiar medicamente a mulher que aborta e há circunstâncias, para lá das permitidas pela actual lei, em que o aborto se torna inevitável.
Pessoalmente sou defensor de um modelo tipo alemão: a mulher, antes de abortar, tem uma moratória durante a qual é acompanhada, num Centro especializado, para reflectir e analisar calmamente as várias opções, liberta de pressões exteriores e da angustiante solidão para decidir. Embora o SIM não garante nada disto, abre essa possibilidade.
É que ficarmo-nos pelo aborto é muito pouco e não vai resolver eficazmente o problema, porque não ataca as suas causas. Fica-se pelos efeitos.
Há, pois, todo um trabalho enorme a fazer a montante: informação adequada, educação sexual séria e integrada, valorização da maternidade, legislação que defenda a mulher grávida, adequada rede de creches, políticas familiares transversais, isto é, que se harmonizem com políticas habitacional, de transportes, de serviços, … Ora estas medidas já podiam ter sido tomadas pelos actuais deputados. Por isso, é legítimo suspeitar se, mesmo no caso de ganhar o SIM, eles não irão apenas legislar sobre o aborto (descriminalizando-o nas dez semanas), deixando tudo o resto na mesma. Ora a parte substancial do problema está nesse resto que só não foi já abordado, porque os que o podem fazer não quiseram.
O facto da Igreja católica se ter intrometido no debate veio exacerbar alguns intervenientes. A Igreja tem naturalmente o direito e o dever de proclamar a sua doutrina, não para a impor mas para dar o seu contributo. Assim como os que não concordam com a Igreja têm o direito e o dever de afirmar a sua opinião, não para a impor mas para dar o seu contributo. Tal como a Igreja não deve condenar os outros, também os outros não têm o direito de a condenar. Até porque não só ninguém tem a verdade toda, como a nossa não é necessariamente a melhor. Por isso era já tempo de todos acabarmos com esta visão maniqueísta da história.
Contudo, o que me preocupa não é o problema ético, porque este é da esfera individual e está ligado a uma ética de máximos que só obriga quem adere a uma religião.
O que me preocupa é o conteúdo da ética de mínimos que deve regular a sociedade: ao ignorar a vida do feto (caso do SIM) podemos entrar num plano inclinado em que o sentido da vida se vai diluindo, tal como ao absolutizar esta vida (caso do NÃO), corremos o risco de degradar a qualidade de vida ao longo de toda… a vida.
Este debate não é (só) um problema de fé; é um problema de cidadania, de organização social onde há crentes e não crentes, todos com o mesmo direito a dar o seu contributo, de acordo com a sua consciência. Ao Parlamento cabe definir, no confronto dos vários pareceres e opiniões, o mais adequado para que a nossa sociedade seja o mais justa, o mais solidária e o mais humana possível.
3 Comentários:
Como eu gostaria de ter ouvido/lido reflexões como as tuas da parte da Comunicação Social, dos Movimentos do Sim ou do Não, da Igreja, de todos os que têm a responsabilidade de informar, para que se pudesse, em consciência, decidir, percebendo sempre que não se trata levianamente de dizer sim ou de dizer não. Por mim, problemáticas deste tipo não deviam ser referendáveis. Mas... o referendo aí está: pesemos os prós e os contras, com a certeza que nada é só preto e só branco. Para mim, sendo que é a despenalização que está contida na pergunta, entendo que, em consciência, qualquer mulher que fizer um aborto já se irá sentir sempre penalizada. Então, não a penalizamos duplamente. Não acredito no argumento de que o aborto se pode banalizar como SIM. A grande maioria das mulheres (todas, atrever-me-ia a dizer) sofre terrivelmente quando decide enveredar por este caminho e, seguramente, muitas delas fazem esta opção numa solidão e sedespero profundos. Por que não lhes conseguimos perdoar? Por que queremos que elas sejam expostas publicamente para lhe atirarem mais pedras do que aquelas que, porventura, já atiraram a si próprias?
Caminhemos no sentido de perdão e encontremos urgentemente saídas para que elas não tomem decisões precipitadas, solitárias e sintam o aconchego de alguém que as ajude a pensar e as acompanhe durante algum tempo para que, ao decidirem, tenham a certeza que há caminhos por explorar, que há pessoas disponíveis para não as abandonarem, ... Esta, para mim, é a verdadeira urgência: não as deixemos sós. Até lá... perdoemos-lhe porque já estão e estarão a sofrer demasiado.
Conheço algumas que fizeram aborto clandestino, algumas já há mais de 30 anos e ainda hoje carregam o fardo da culpa, ainda que afirmem que naquela altura não tinham outra saída.
Por mim, sinto-me verdadeiramente culpada de estar a interferir na vida de alguém que eu não conheço as condições por que está a passar.
Haverá outras que o fazem levianamente? Não sei, mas admito que sim. No entanto, penso que essas mulheres o farão sempre com ou sem penalização.
O mais que posso dizer é que, quanto mais se aproxima este famigerado dia 11, mais solidária estou com tantas mulheres que por aqui vagueiam, eventualmente mais perto de nós do que pensamos, destruídas por dentro e que têm vindo a ouvir quem não passou pelo que estão a passar a mandar palpites fúteis.
Finalmente e sem dramatismos: quantas farão o aborto clandestino no próximo dia 11?
quantas as crianças de rua que por aí andam abandonadas por pai e mãe e sobre as quais tão pouco ouço falar, para já não referir que nada é feito por elas. Não são vida? Já não são dias, 10 semanas... no útero da mãe. Estas já nasceram e lidam com uma sociedade que as vai sistematicamente desestruturando. Curiosamente, não ouço/leio um grito, um alerta para a sua existência e para reflectir e tomar decisões sobre o que pode fazer seja na Comunicação Social (talvez a TVI para aguçar a morbidez conte estórias), nos partidos, nos movimentos do sim ou do não, na Igreja (curiosamente, só nestas alturas é que aparecem a falar alto, como se a vida só tivesse sentido na barriga da mãe e não fora dela.
Desculpem se me exaltei, mas estou farta de demagogias.
10/2/07 07:03
Não sei como pode afirmar que a resposta SIM à pergunta acaba com o aborto clandestino até às 10 semanas. Não acaba porque, como muito bem sabe, haverá sempre muitas mulheres a recorrer a ele por razões de anonimato, vergonha, etc. Aliás, como tem acontecido nos países onde foi legalizado, com aumento significativo da sua prática.
Depois também não compreendo como alguém que considera o início da vida humana ocorrendo no momento da concepção (estamos portanto já a falar de alguém único, amado por Deus), admite a sua morte por razões que, dê por onde der, são sempre subjectivas.
Na verdade, como saber na tal fase do discernimento psicológico, se aquela pessoa que se pondera matar, mesmo nascendo em ambiente mais difícil, não ultrapassará tudo isso tornando-se alguém realizado e com grande projecção social ou científica? Não está a História carregada de exemplos destes?
Mais: acredita mesmo que com a vitória do NÃO os abortos continuarão a fazer-se sem condições médicas? Porque pensa que, pelo menos uma clínica espanhola já está em instalação em Lisboa, mesmo sem saber o resultado do referendo? Estarão a investir à toa? Conhece alguma empresa privada que o faça? Não se lembra de ouvir o ministro da Saúde dizer que já tinha tido conversas com esses investidores? Acha que conversaram sobre o quê?
Na verdade, existe um consenso na sociedade portuguesa no sentido da despenalização da mulher que faça o aborto. E, no caso da vitória do NÃO, a primeira coisa que os políticos vão fazer é reintroduzir a discussão do projecto das duas deputadas do PS que tentaram fazer aprovar essa despenalização.
Outra coisa: acredita mesmo que o SNS que não tem obstetras e que, por isso, o ministro tem andado a fechar maternidades, de repente fica com obstetras para fazer o aborto?
Óscar Camarneiro
11/2/07 16:28
Ao Óscar
Para começar um grande abraço.
Neste comentário procurei juntar algumas das minhas dúvidas e coloquei-me não no campo da ética pura, no qual não tenho quaisquer dúvidas, mas no plano cívico. Naturalmente que o plano cívico também deve ser regulado por normas éticas, mas com a seguinte diferença. Como cristão, faço parte duma comunidade de crentes que está sujeita (eu também) a uma ética de máximos (o Sermão da Montanha é o grande paradigma), que devo aceitar e cumprir. Como cidadão faço parte de uma sociedade que se rege por uma ética de mínimos e aí posso aceitar que se coloquem várias alternativas. Procurei confrontá-las...
Quando escrevi que a nova lei ia acabar com o aborto clandestino reproduzi o argumento do sim. Também estou convencido que só a médio prazo desaparecerá a vergonha e a pressão que leve as mulheres a assumirem frontalemnte essa situação. Ms a lei possibilita que o façam. Com esta afirmação não estou a dizer se é bem se não é. Cada um, mesmo cidadão, que julgue.
Acreditar que a vida começa logo na concepção e admitir que se mate o feto não é coerente do ponto de vista moral. E eu não admiti isso no plano moral. No plano legal já há 3 situações aceites que ninguém contestou e eu não sinto autoridade para pôr em causa no plano cívico, porque o Parlamento tem legitimidade para decidir sobre essa matéria. Aí eu aceito que o Parlamento decida o que julgue melhor para o bem comum.
Mas o mais importnate não é o resultado do referendo nem a implementação de esta ou aquela lei. O mais importante é criar condições a montante do aborto para que haja o menor número de abortos. E isso passa por um adequado planeamento familiar, uma educação sexual séria, a criação de leis que defendam e valorizam a maternidade, a definição de políticas que harmonizem e enquadrem a família quanto a habitaçõa, transportes, serviços, etc.;e também uma legislação que não penalize apenas a mulher.
Isso é que é o mais importante.
E a isso é que o Estado devia e deve dar prioridade.
E também as comunidades cristãs deviam dar prioridade na sua pastoral familiar a esta temática acompanhando mulheres abandonadas, mulheres que vivem em barracas, em famílias disfuncionais, mulheres toxicodependentes, tantas mulheres em situação difícil, que muitas vezes em vez de apoiarmos ainda crucificamos. É que se não formos capazes de dar qualidade de vida a estas pessoas, de que vale salvar o filho na barriga da mãe? Ou cá fora vale qualquer vida? Não tem a sociedade razões para colocar algumas reservas, mesmo que nós os cristãos moralmente nos fixemos apenas na barriga da mãe e esqueçamos a vida cá fora?
16/2/07 21:43
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