CV (34) O longo dia da TAC
Na semana passada fiz a TAC que mostrou uns pulmões limpos. O médico marcou-me uma nova TAC para daqui a dois meses. Foi um resultado que naturalmente me deixou muito feliz bem como aos familiares e amigos e sobretudo me aliviou de algum tensão miudinha que eu vinha começando a sentir. Como só hoje disponho de tempo suficiente e de calma interior para poder escrever um pouco mais, gostaria de partilhar com quem me ler como passei aquele longo dia.
Quando me levantei ocorreram-me aquelas palavras das primeiras páginas da Bíblia: "O Senhor disse a Abrão: Deixa a tua terra, a tua família e a casa de teu pai e vai para a terra que Eu te indicar" (Gn 12,1). Também eu me sentia de partida para uma terra desconhecida. Sabia onde era: geograficamente, a uns quatro quilómetros; era longe para a minha preparação física actual por isso, o camelo foi substituído por um Yaris. Sabia como era: uma maca que me arrastava para uma anel circular: "feche os olhos por causa do laser"; "pode abrir os olhos" e lá fiquei abraçado pelo anel metálico. SÓ NÃO SABIA era o que revelaria o retrato aos pulmões: essa era a minha terra desconhecida, a"terra que Eu te indicar".
Na véspera ao deitar-me, ao apgar a luz, o silêncio da noite em casa levou-me para as noites, as tantas noites que passei na Ortopedia B: por volta das 11 da noite, fechava-se a luz, embora nem sempre houvesse consenso, mas ficava ainda a TV com as suas telenovelas a manter um ruído luminosos de fundo que ia espicaçando as pálpebras mesmo fechadas; depois já no silêncio televisivo eram as pequeninas lâmpadas dos monitores que controlavam o soro ou a medicação que ulceravam a escuridão da enfermaria; de tempos a tempos o aviso sonoro para substituição das garrafas de soro; por vezes, quando a máquina não funcionava, conversávamos com a angústia de o soro acabar e haver algum retorno sanguíneo. "Durma descansado, que nós estamos cá para controlar tudo isso" sossegava a enfermeira de noite. Não era falta de fé na enfermeira, era aquele receio profundo que vem do fundo da noite dos tempos e que fomos adquirindo como mecanismo de sobrevivência num tempo em que ainda não havia enfermeiros. De duas em duas horas a necesidade de desaguar o líquido que nos invadia a corrente sanguínea e o receio de alguém se ter esquecido de despejar o urinol, o que poderia originar uma pequena catátrofe: entorná-lo para o meio do chão ou encharcar os lençóis. Insignificâncias que se tornam tragédias se acontecem às três da manhã numa enfermaria.
Mas voltando ao dia em causa. Pensei que a melhor distracção era ler alguma coisa agradável. Vogava calmamente na Net quando, ao desembarcar no site do El País, me deparo com uma crónica sobre o congresso Strings 07 que estava a decorrer em Madrid. Arrebitaram-se-me as orelhas: aí estava um excelente calmante. Para os que não saibam, este congresso reuniu cerca de 500 físicos teóricos especializados na Teoria das Cordas. Enquanto lia a notícia ia recordando o que sabia sobre esta grande coqueluche, que os mais apaixonados consideram a grande revolução que aí vem. E ia conversando comigo. Um dos grandes desafios da física hoje (o maior, para alguns) é que que dispõe de dois bons modelos standard: o das partículas, apoiado na mecânica quântica, que explica a dúzia de "partículares elementares" e os 12 vectores que as ligam (o infinitamente pequeno) e o do big bang, apoiado a teoria da relatividade, que explica o infinitamente grande. Ambas as teorias tem fortes argumentos e funcionam bem no seu domínio. O problema é que são incompatíveis, quando têm de se cruzar. Ora acontece que o infinitamente grande é constituído pelas tais partículas elementares. Portanto, o sonho dos físicos é juntar numa só teoria, o que seria a "Teoria do Tudo" ou da grande unificação, estas duas irmãs irreconciliáveis. É aqui que aparece a tal Teoria das Cordas, que seria capaz de fazer o milagre cioentífico de conciliar as irmãs desavindas. Mas fá-lo à custa não só de um instrumental matemático demasiado sofisticado, mas sobretudo porque exige que o Universo e o nosso dia a dia tenham não apenas 4 coordenadas (as conhecidas três espaciais - comprimento (x), largura (y) e altura (z) - e o tempo), mas 10, 11 ou mesmo 26. Onde estão as que nós não vemos nem somos capazes de imaginar? Poderia a força de gravitação, a força do "infinitamente grande", que a teoria da relatividade estuda a quatro dimensões, andaria, parte dela, perdida nas dimensões supranumerárias e será essa falta que tem impedido a harmonização com que os físicos sonham?
Estes meus devaneios de Nobel frustrado foram interrompidos pela amorosa solicitude da minha mulher, extraordinária companheira especialmente nestes dias: "São horas!"
Eram horas de partir para a terra desconhecida. Respirei fundo, agarrei-me às migalhas que caíram da mesa farta da fé de Abrão e lá vamos nós na esperança de que também eu pudesse mudar de nome, para Abraão.
Enquanto aguardava a minha vez, fiz uma incursão pela Science & Vie, a deliciar-me com uma reflexão sobra a hipótese da "Terra rara". A Terra seria uma enorme excepção na multidão dos potenciais mundos (e, portanto, haveria no espaço sideral muitas poucas experiências de vida inteligente, o que sinceramente não me convence, pois não acredito que sejamos os únicos neste Universo com tantos milhões de milhões de galáxias, cada uma com milhões e milhões de estrelas). Mas diverti-me muito com a argumentação. Nós só aqui estamos, li, porque houve um conjunto significativo de condições favoráveis para aqui podermos estar. Esta é a última versão do princípio antrópico que conheço! Aí vai a lista dessas tais condições tão favoráveis que se conjugaram para produzir este ser que o Salmo 8 descreve tão bem, na sua dupla faceta: "Quando contemplo os céus, obra das tuas mãos, a Lua e as estrelas que Tu criaste, que é o homem para te lembares dele, o filho do homem para com ele te preocupares (isto é, somos uma poeira infiniamente pequena num Universo infinitamente grande)? Quase fizeste dele um ser divino, de honra e glória o coroaste. Deste-lhe o domínio sobre as obras das tuas mãos, tudo submeteste a teus pés (isto é, somos infinitamente grandes mesmo perante o infinitamente grande que é o Universo)". Mas vamos às coincidências:
- a posição ideal do nosso sistema solar na galáxia: nem demasiado perto do centro para não sermos queimados pelas fortes emissões de raios gama, UV e X do núcleo onde há uma grande concentração de estrelas; nem demasiado longe, porque dessas estrelas que vão explodindo (morte) nascem (ressurreição) os metais pesados indispensáveis para que o planeta possa reter uma atmosfera: 40 0000 anos luz do centro é a nossa posição na Via Láctea;
- a posição ideal do nosso planeta no sistema solar: nem demasiado perto para não sermos assados pelo calor; nem demasiado longe para não morrermos a tiritar de frio: a janela ideal da vida rasga-se ntre os oº e os 6oº C: 150 milhões de Km é a nossa distância ao Sol;
- estamos na zona de habitabilidade do Sol, que vai recuando à medida que uma estrela vai envelhecendo: temos ainda uns bons 3 mil milhões de anos para saborear um repousante pôr do sol;
- apesar da temperatura ambiente ser -18º C, a Terra consegue uma temperatura primaveril graças à existência de gases de efeito de estufa, nomeadamente CO2: e tudo isto, porque a Terra, contrariamente aos outros planetas, tem a "tectónica de placas", que ao deslocar as placas continentais permite reciclar o carbono retido nos sedimentos, sob a forma de carbonatos, e enviá-lo para a atmosfera sob a forma de CO2;
- esta tectónica de placas permitiu também o aprecimento de um campo magnético que protege a vida dos perigosos raios cósmicos e dos ventos solares;
- depois temos a Lua cujo processo de formação pode ter ajudado no aparecimento da tectónica de placas, mas sobretudo porque estabilizou o eixo de rotação da Terra: sem a Lua possivelmente este eixo bascularia rapidamente trocando os pólos com o Equador e vice-versa em alguns milhões de anos ou mesmo centenas de milhares de anos: ora esta variação tão "rápida" causaria variações climáticas que ocasionariam grandes extinções maciças da vida e atrasaria ou evitaria o aparecimento de formas "superiores" de vida;
- finalmente a proximidade de Júpiter, um planeta suficientemente pesado para nos proteger do choque com grandes meteroritos fatais à vida (ainda recentemente, em 1994, vimos o cometa S-L 9 fragmentar-se numa vintema de bocados e chocar brutalmente contra Júpiter) e estabilizar os perigosos asteroides.
Bom, são realmente coincidências a mais; mas não estamos no domínio da fé mas da ciência. E é possível calculr as probabilidades e ver se realmente somos tão improváveis como isso!
"José Dias da Silva" pareceu-me ouvir ao longe, tão longe da "Terra rara". Era a chamada para a "Terra desconhecida". Entrei. "Tem algo metálico? Fio de ouro?". "Nada; de ouro tenho às vezes, mas muito poucas vezes, o coração". Mas agora não sei de que metal é ele? Talvez de um metal ou mineral de cor verde, a cor da esperança.
"Deite-se na maca"; "Feche os olhos"; "Pode abrir os olhos". E lá vou eu enterrar-me no anel magnético. Zing... zing... zing... "Encha o peito de ar. Não respire" era a voz off neutra cassética. O Zing acelera, a maca desliza. "Pode respirar". Buffff!!!.
O ciclo repete-se três vezes. Bom ou mau sinal? O médico analista tem dúvidas e quer esclarecê-las ou quer apenas confirmar a boa notícia.?
Mãos carinhosas ajudam-me a levantar: "Está bem?". "Tou". "Então vá tomar um café para descomprimir". "O que me descomprime é o resultado". "Vá lá, tudo há-de correr bem". É um sinal a ter em conta ou foram palavras de ocasião?
Ainda me restam algumas pipocas do saco da fé de Abraão. A terra desconhecida até pode ser uma terra onde corre leite e mel.
Saio. Sentada a cinco metros da porta, a Fátima chora. Pareceu-me bom sinal. A minha mulher chora mais com as boas notícias. E ela chovia copiosamente.
"Tudo bem!!!" e um abraço de muito amor e carinho disse tudo o que um romance de 500 páginas seria incapaz de relatar.
"Só falta comparar com a última, porque há lá duas pequeninas manchas esborratadas. Possivelmente não será nada, mas é preciso comparar". "E por que não comparam?". "Porque o computador não deixa". Os computadores são muito nossos amigos, mas também gostam de gozar com o pessoal. Mais tarde, a boa notícia: as manchas já lá estavam há meio ano atrás. Portanto deve ser defeito de fabrico. Há defeitos muito queridos!
Era só meio-dia. Meio dia muito longo.
Que acabou bem!
E cá estou eu a recompor-me e a colocar-me nas mãos dAquele que preside ao curso dos tempos e renova a face da terra (Gaudium et Spes 26) e na esperança de poder responder ao que Ele espera de mim.
3 Comentários:
querido ze,
que noticia boa!! um abraco muito muito apertado!!
candida
16/7/07 17:44
FICO MUITO FELIZ!
Gosto muito de ti, Zézito!
Beijinhos,
Joana Patricio
17/7/07 11:33
gostei muito de ler estas tuas divagaçoes... e fiquei muito contente com o resultado, dos exames e das divagaçoes. Para quando um romance?
Um abraco,
Ze Pedro
26/7/07 08:30
Enviar um comentário
<< Home