CinV (19) Caridade e Justiça
A caridade na verdade “ganha forma operativa em critérios orientadores da acção moral”, em particular a justiça e o bem comum.
A caridade e a justiça têm andado muito separadas: uma pertenceria à ordem da esmola, da partilha; outra à esfera do legal e do contratual. Nada mais falso para os cristãos. A DSI sempre defendeu uma articulação inseparável. É que sem justiça, a caridade fica abstracta e desincarnada (DM 12): “a caridade que ama e serve a pessoa nunca poderá estar dissociada da justiça” (ChL 42); mas a justiça, sem caridade, é cega e pode tornar-se desumana. Contudo, devemos entender a justiça não apenas como “dar a cada um o que é seu”, mas como “reconhecimento da dignidade e dos direitos do próximo” (JM 35), ou seja, “como ‘virtude’ para a qual todos devem ser educados e como ‘força’ moral que apoia o empenho em favorecer os direitos e os deveres de todos e de cada um, na base da dignidade pessoal do ser humano” (ChL 42). “Em toda a gama das relações entre os homens, (a justiça) deve passar, por assim dizer, por uma ‘correcção’ notável por meio daquele amor que, como proclama São Paulo, é ‘paciente’ e ‘benigno’ ou, por outras palavras, que comporta as características do amor misericordioso, tão essenciais para o Evangelho e para o Cristianismo” (DM 14).
Bento XVI, na mesma linha afirma que, por um lado, a caridade supera a justiça, mas, por outro, a caridade exige a justiça (6):
- a caridade supera a justiça, porque amar é dar, oferecer ao outro do que é «meu»;
- a caridade nunca pode existir sem a justiça, que induz a dar ao outro o que é «dele», o que lhe pertence em razão do seu ser e do seu agir: não posso «dar» ao outro do que é meu, sem antes lhe ter dado aquilo que lhe compete por justiça. Quem ama os outros com caridade é, antes de mais nada, justo para com eles;
- a justiça é «inseparável da caridade» (PP 22), é-lhe intrínseca e não mero caminho alternativo ou paralelo à caridade: a justiça é o primeiro caminho da caridade;
- a caridade exige a justiça, ou seja, o reconhecimento e o respeito dos legítimos direitos dos indivíduos e dos povos;
- “a caridade supera a justiça e completa-a com a lógica do dom e do perdão. A «cidade do homem» não se move apenas por relações feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade, misericórdia e comunhão”.
O Papa vai voltar mais vezes a esta ideia da lógica do dom em oposição à lógica utilitarista. É uma ideia forte desta encíclica – o confronto das duas lógicas, a egoísta e a solidária – e a ela voltarei.
Há, contudo, um aspecto que gostaria de destacar neste momento.
Uma das tentações em que caímos, muitas vezes inconscientemente, é querer dar ao outro por caridade aquilo que lhe é devido por justiça. Já o Concílio acautelava para este e outros perigos ao definir os critérios autênticos para a prática da caridade: “Para que este exercício da caridade seja e apareça acima de toda a suspeita, considere-se no próximo a imagem de Deus, para o qual foi criado; veja-se nele a Cristo, a quem se oferece tudo o que ao indigente se dá; atenda-se com grande delicadeza à liberdade e dignidade da pessoa que recebe o auxílio; não se deixe manchar a pureza de intenção com qualquer busca do próprio interesse ou desejo de domínio; satisfaçam-se antes de mais as exigências da justiça e não se ofereça como dom da caridade aquilo que já é devido a título de justiça; suprimam-se as causas dos males, e não apenas os seus efeitos; e de tal modo se preste a ajuda que os que a recebem se libertem a pouco e pouco da dependência alheia e se bastem a si mesmos” (AA 8).
O tema da justiça merecerá um maior atenção, mais à frente, dada a sua ligação profunda ao desenvolvimento.
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