CinV (14) O longo caminho da verdade
A Igreja sempre se apresentou como detentora da verdade. De toda a verdade, até há poucos anos.
Porque só a verdade é que tinha direitos, o erro era inaceitável e tudo parecia legítimo para o combater. “Em nome da verdade”, esse grande argumento de peso, foram cometidas muitas barbaridades de tal modo graves que João Paulo II sentiu a necessidade de pedir perdão por elas: “Outro capítulo doloroso, sobre o qual os filhos da Igreja não podem deixar de tornar com espírito aberto ao arrependimento, é a condescendência manifestada, especialmente nalguns séculos, perante métodos de intolerância ou até mesmo de violência no serviço à verdade”. Mesmo que os condicionalismos históricos não possam ser ignorados, “a consideração das circunstâncias atenuantes não exonera a Igreja do dever de lastimar profundamente as fraquezas de tantos filhos seus, que lhe deturparam o rosto, impedindo-a de reflectir plenamente a imagem do seu Senhor crucificado, testemunha insuperável de amor paciente e de humilde mansidão”. E acrescenta: “Desses momentos dolorosos do passado deriva uma lição para o futuro, que deve induzir todo o cristão a manter-se bem firme sobre aquela regra áurea ditada pelo Concílio: «a verdade não se impõe de outro modo senão pela sua própria força, que penetra nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave e forte» (DH 1)” (TMA 35).
Durante séculos, em nome da verdade, se mataram, se queimaram, se calaram pessoas, muitas delas muito mais honestas que os seus inquisidores. A verdade tornou-se mais importante que a pessoa, em manifesta revelia contra a proclamação tão solene de Jesus: “O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado” (Mc 2,27).
Foi preciso esperar por João XXIII para que se percebesse que há uma diferença radical entre o erro e a pessoa que erra, uma afirmação ainda hoje tão ignorada e não praticada: “Não se deverá jamais confundir o erro com a pessoa que erra, embora se trate de erro ou inadequado conhecimento em matéria religiosa ou moral. A pessoa que erra não deixa de ser uma pessoa, nem perde nunca a dignidade do ser humano, e portanto sempre merece estima. Ademais, nunca se extingue na pessoa humana a capacidade natural de abandonar o erro e abrir-se ao conhecimento da verdade” (PT 157).
Já antes, na abertura do Concílio, João XXIII apostava no remédio da misericórdia mais do que o da condenação e até insinuava que a própria história tinha capacidade para emendar os erros: “A Igreja sempre se opôs a estes erros; muitas vezes até os condenou com a maior severidade. Nos nossos dias, porém, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade: julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validade da sua doutrina do que condenando erros. Não quer dizer que faltem doutrinas enganadoras, opiniões e conceitos perigosos, contra os quais nos devemos prevenir e que temos de apostar; mas esses estão tão evidentemente em contraste com a recta norma de moralidade e deram já frutos tão perniciosos, que hoje os homens parecem inclinados a condená-los, em particular os costumes que desprezam a Deus e a Sua lei, a confiança excessiva nos progressos da técnica e o bem-estar fundado exclusivamente nas comodidades da vida. Eles sempre se vão convencendo mais do maior valor da dignidade da pessoa humana, do seu aperfeiçoamento e do esforço que ele exige. E o que é mais importante é que a experiência lhes ensinou que a violência feita aos outros, o poder das armas e o predomínio político não contribuem para a feliz solução dos graves problemas que os atormentam” (11.Out.1962).
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