CinV (27) Duas grandes verdades
O capítulo I é dedicado ao contributo da encíclica Populorum Progressio, que tinha “o objectivo de fazer sair os povos da fome, da miséria, das doenças endémicas e do analfabetismo” (21). Bento XVI começa por recordar duas linhas de continuidade com a doutrina dos seus predecessores: “O Concílio aprofundou aquilo que desde sempre pertence à verdade da fé, ou seja, que a Igreja, estando ao serviço de Deus, serve o mundo em termos de amor e verdade. Foi precisamente desta perspectiva que partiu Paulo VI para nos comunicar duas grandes verdades” (11).
“A primeira é que a Igreja inteira, em todo o seu ser e agir, quando anuncia, celebra e actua na caridade, tende a promover o desenvolvimento integral do homem. Ela tem um papel público que não se esgota nas suas actividades de assistência ou de educação, mas revela todas as suas energias ao serviço da promoção do homem e da fraternidade universal quando pode usufruir de um regime de liberdade”. O Papa responde a todos aqueles que consideram que a Igreja não tem o direito de intervir na vida pública e que deve recolher-se na sacristia. Realmente tal posição não é aceitável a nenhum título. A Igreja, independentemente da sua característica religiosa, é uma instituição cultural e, como tal, deve dar o seu contributo “único e insubstituível”, como o de qualquer outra instituição, para a construção de um mundo melhor e de uma sociedade cada vez mais justa e humana. Por outro lado, os cristãos são de pleno direito cidadãos e, como tal, devem participar activamente, como dizia Paulo VI, “a nossa finalidade… é chamar a atenção para algumas questões que, pela sua urgência, pela sua amplitude, pela sua complexidade, devem estar no centro das preocupações dos cristãos, para os anos que vão seguir-se, a fim de que, juntamente com os outros homens, se apliquem a resolver as novas dificuldades que põem em causa o próprio futuro do homem” (OA 7).
“A segunda verdade é que o autêntico desenvolvimento do homem diz respeito unitariamente à totalidade da pessoa em todas as suas dimensões. Sem a perspectiva duma vida eterna, o progresso humano neste mundo fica privado de respiro. Fechado dentro da história, está sujeito ao risco de reduzir-se a simples incremento do ter; deste modo, a humanidade perde a coragem de permanecer disponível para os bens mais altos, para as grandes e altruístas iniciativas solicitadas pela caridade universal”. Efectivamente uma das tentações do homem moderno é considerar-se “o homem prometeico”, o homem que foi (é) capaz de ir ao Olimpo roubar o fogo a Zeus, o homem auto-suficiente, que tudo pode, tudo sabe e que tudo decide até o que é bem e o que é mal. As suas descobertas científicas e técnicas encheram-no de orgulho e de uma convicção profunda de que não precisava de mais ninguém nem sequer de Deus. Esqueceu-se da nossa finitude e da sua irmã gémea a ambiguidade: por cada face boa, há um reverso mau. Por detrás de cada descoberta há sempre dois caminhos: um que conduz a uma melhor qualidade de vida; outro que nos pode arrastar para situações escravizantes ou denegadoras da dignidade humana. E agora começa a perceber-se que é assim mesmo. O homem, “deixado à solta”, nem sempre faz as melhores opções. E ainda bem, para não nos convencermos de que somos infalíveis. Dito isto, quero dizer que recuso frontalmente a clássica afirmação de Dostoiewski: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. Todos sabemos que não são apenas os crentes que se regulam (e às vezes tão mal!) por valores. Por isso não me parece aceitável supor que os não crentes são pessoas sem princípios ou sem ideais ou para quem a vida não tem sentido. Mais, aprecio especialmente aqueles, que não sendo crentes e, portanto, não dispondo de uma fé transcendente, se comprometem com entusiasmo e muita coragem na luta pela justiça e por uma sociedade mais humana. E que, apesar de não acreditarem num Além, não desanimam e parecem até ter mais força e convicção do que muitos dos que se dizem discípulos de Jesus Cristo.
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