divórcio ou casamento eterno?...

2010-02-21

Carta pessoal de Henri Boulad a Bento XVI

Uma vez que andam por aí resumos da "Carta pessoal de H. Boulard a Bento XVI" queria lembrar que esta carta foi escrita, como se vê no final, no dia 18.Julho.2007 e desafiar todos os que estão preocupados com a crise que a Igreja (também) atravessa a fazermos um debate sobre a prórpia Igreja, nas suas várias dimensões. Aliás já aqui deixara um pequeno contributo com o meu post "Faltam cem dias".
Pode ser uma boa ajuda, conhecer a Carta na sua versão integral. É por isso que a deixo aqui , apesar de longa, depois de a ter traduzido macarronicamente do francês. É longa, mas vale a pena ser lido, para descordar, concordar, mas sobretudo para estimular a nossa responsabilidade de baptizados.


Carta pessoal ao Papa Bento XVI: SOS pela Igreja de hoje

Santo Padre

Atrevo-me a dirigir-me directamente a vós, pois meu coração sangra, ao ver o abismo em que se está precipitando nossa Igreja. Quero pedir desculpa pela minha franqueza filial, ditada tanto pela “liberdade dos filhos de Deus”, à qual nos convida S. Paulo como pelo meu amor apaixonado pela Igreja. Quero também pedir desculpa pelo tom alarmista desta Carta, porque acredito que “um pouco mais e seria tarde” («il est moins cinq») e que a situação não podia esperar mais tempo.

Permiti que comece por me apresentar. Jesuíta egipto-lianês do rito melquita, farei dentro em pouco os meus 76 anos. Sou, há 3 anos, reitor do Colégio dos jesuítas no Cairo, depois de ter ocupado os seguintes cargos : superior dos jesuítas em Alexandria, superior regional dos jesuítas no Egipto, professor de Teologia no Cairo, director da Caritas-Egipto e vice-presidente da Caritas Internacional para o Médio Oriente e a África do Norte. Conheço muito bem a hierarquia católica do Egipto por ter participado, durante muitos anos, nas suas reuniões, enquanto Presidente dos Superiores religiosos dos Institutos do Egipto. Tenho relações muito pessoais com cada um deles, alguns dos quais são meus antigos alunos. Além disso, conheço o Papa Chenouda III, que costumo visitar com bastante regularidade. Quanto à hierarquia da Europa, tive oportunidade de me encontrar muitas vezes com muitos dos seus membros, entre os quais o Cardeal Koening, o Cardeal Schonborn, o Cardeal Martini, o Cardeal Daneels, o Arcebispo Kothgasser, os bispos diocesanos de vários países europeus. Estes encontros tiveram lugar aquando das minhas digressões anuais para conferências na Europa: Áustria, Alemanha, Suiça, Hungria, França, Bélgica, … Nestas digressões, dirigi-me a auditórios muito variados e aos média (jornais, rádios e televisões, …). Fiz o mesmo no Egipto e no Próximo Oriente. Visitei uns cinquenta países nos quatro continentes e publiquei trinta livros em quinze línguas, nomeadamente em francês, árabe, húngaro e alemão. Entre os meus treze livros nesta língua, talvez tivésseis lido Gottessohne, Gottestochter, que vos deu o vosso amigo, o P.e Erich Fink,da Baviera.

Não estou a dizer isto para me vangloriar, mas para vos dizer simplesmente que os meus propósitos são fundados sobre um conhecimento real da Igreja universal e da sua situação hoje, em 2007.

Quanto ao objectivo desta carta, procurarei ser o mais breve, o mais claro e o mais objectivo possível. Em primeiro lugar, algumas constatações (a lista esta longe de ser exaustiva):

1. A prática religiosa está em declínio constante. As igrejas da Europa e do Canadá são frequentadas por um número cada vez mais reduzido de pessoas da terceira idade, que vão desaparecer dentro de pouco tempo. Então nada mais restará do que fechar estas igrejas ou transformá-las em museus, em mesquitas, em clubes ou em bibliotecas municipais, como já se fez. O que me surpreende é que muitas delas estejam em vias de ser totalmente renovadas e modernizadas mediante grandes gastos com a intenção de atrair os fiéis: mas não é isto que travará o êxodo.

2. Os seminários e os noviciados se esvaziam ao mesmo ritmo e as vocações desaparecem estão em queda livre. O futuro é ainda mais sombrio e perguntamo-nos quem adquirirá mais relevo. Cada vez mais as paróquias europeias são actualmente assumidas por padres da Ásia e da África.

3. Muitos padres deixam o exercício sacerdotal e o pequeno número dos que o exercem ainda – com uma idade muitas vezes perto da “reforma” – são obrigados a assumir o encargo de várias paróquias, de maneira expedita e administrativa. Muitos dentre eles, tanto na Europa como no Terceiro Mundo, vivem em concubinato à vista e com conhecimento dos seus fiéis, que muitas vezes os aceitam, e do seu bispo, que não pode fazê-lo, mas… dada a falta de padres.

4. A linguagem da Igreja é anacrónica, aborrecida, repetitiva, moralizadora e completamente inadaptada para nossa época. Não se trata em absoluto de acomodar-se e de fazer demagogia, porque a mensagem do Evangelho deve estar presente em toda a sua crueza e exigência. O que é necessário antes de mais é proceder a esta “nova evangelização”, para a qual nos convidava João Paulo II. Mas esta, contrariamente ao que muitos pensam, não consiste simplesmente em repetir o antigo, que já não atrai nada, mas em inovar, inventar uma nova linguagem que rediga a fé de maneira apropriada e que tenha significado para o homem de hoje.
5. Isto só poderá fazer-se por uma renovação profunda da teologia e da catequese, que deverão ser repensadas e reformuladas totalmente. Um padre e religioso alemão que encontrei recentemente dizia-me que a palavra “mística” não era mencionada uma só vez no Novo Catecismo. Fiquei estupefacto. Temos que constatar que a nossa fé é demasiado cerebral, abstracta, dogmática e fala muito pouco ao coração e ao corpo.
6. A consequência é que grande parte dos cristãos se voltam para as religiões da Ásia, as seitas, a "New Age", as igrejas evangélicas, o ocultismo, etc. Como nos podemos admirar disto? Eles vão procurar algures o alimento que não encontram entre nós, porque têm a impressão de que lhes damos pedras em vez de pão. A fé cristã que, outrora, conferia um sentido à vida das pessoas, é para elas hoje um enigma, a sobrevivência de um passado acabado.
7. Sobre o plano moral e ético, as imposições do Magistério, repetidas à saciedade, sobre o casamento, a contracepção, o aborto, a eutanásia, a homossexualidade, o casamento dos padres, os divorciados recasados, etc. não tocam mais as pessoas e só provocam cansaço e indiferença. Todos estes problemas morais e pastorais merecem algo mais do que declarações peremptórias. Necessitam de uma abordagem pastoral, sociológica, psicológica, humana … numa linha mais evangélica.

8. A Igreja, que foi a grande educadora da Europa durante séculos, parece ter esquecido que esta Europa atingiu a maturidade. A nossa Europa adulta recusa-se a ser tratada como menor. O estilo paternalista de uma Igreja Mater et Magistra está definitivamente caduco e não cola mais hoje. Os cristãos aprenderam a pensar por si mesmos e não estão dispostos a aceitar qualquer coisa.

9. As nações que foram as mais católicas outrora – a França, “filha primogénita da Igreja” ou o Canadá francês ultra-católico – deram uma guinada de 180º, virando-se para o ateísmo, o anticlericalismo, o agnosticismo, a indiferença. Para um certo número de outras nações europeias, o processo está em curso. Pode verificar-se que quanto mais um povo foi dominado e protegido pela Igreja no passado, maior é a sua reacção contra ela.

10. O diálogo com as outras Igrejas e as outras religiões sofreu hoje um recuo inquietante. Os notáveis avanços realizados durante meio século parecem neste momento comprometidos.

Perante esta constatação quase demolidora, a reacção da Igreja é dupla:

- Tende a minimizar a gravidade da situação e a consolar-se constatando uma certa renovação no seu campo mais tradicionalista bem como nos países do terceiro mundo;

- Invoca a confiança no Senhor, que a socorreu durante 20 séculos e que será bem capaz de a ajudar a ultrapassar esta nova crise, como fez com as precedentes. Não tem ela promessas da vida eterna? …

A isto respondo:

- Não é apoiando-se no passado nem recolhendo os fragmentos que se resolvem os problemas de hoje e do amanhã.

- A aparente vitalidade das Igrejas do terceiro mundo é enganosa. O mais verosímil é que estas novas Igrejas passem, mais cedo ou mais tarde, pelas mesmas crises que a velha cristandade europeia conheceu.

- A modernidade é incontornável e foi por ter esquecido isto que a Igreja passa hoje por esta crise. O Vaticano II tentou recuperar quatro séculos de atraso, mas tem-se a impressão que a Igreja está em vias de fechar lentamente as portas que se então abriram e tentada a voltar para Trento e o Vaticano I mais que para um Vaticano III. Recordemos a declaração de João Paulo II tantas vezes repetida: “Não há alternativa ao Vaticano II".

- Até quando continuaremos a jogar a política da avestruz e a esconder a nossa cabeça na areia? Até quando nos recusaremos a olhar as coisas de frente? Até quando tentaremos salvar, a qualquer preço, a fachada – uma fachada que já não ilude hoje ninguém? Até quando continuaremos a virar as costas, a crisparmo-nos contra toda a crítica, em vez de ver aí uma oportunidade de renovação? Até quando continuaremos a adiar para as calendas gregas uma reforma que se impõe imperativamente e que não é retomado há muito tempo?

- Só olhando decididamente para diante e não para trás, é que a Igreja cumprirá a sua missão de ser “luz do mundo, sal da terra, fermento na massa". Contudo, o que infelizmente verificamos hoje é que a Igreja está na cauda da nossa época, depois de ter sido a pioneira durante séculos.

- Repito o que dizia no início desta carta: «IL EST MOINS CINQ» (“um pouco mais e seria tarde”) – fünf vor zwölf! A História não espera, sobretudo na nossa época, em que o ritmo embala e acelera.

- Toda empresa que detecta um défice ou disfunções coloca-se imediatamente em questão, reúne peritos, tenta recuperar-se e mobiliza todas as suas energias para superar a crise.

- Por que não faz a Igreja o mesmo? Por que não moviliza todas as suas forças vivas para um aggiornamento radical? Porquê?

- Por preguiça, cobardia, orgulho, falta de imaginação, de creatividade, quietismo culpável, na esperança de que o Senhor tudo resolverá e que a Igreja já conheceu outras crises no passado?

- Cristo, no Evangelho, põe-nos em guarda: “Os filhos das trevas são muito mais espertos na gestão dos seus assuntos do que os filhos da luz…”

ENTÃO, QUE FAZER?… A Igreja de hoje tem uma necessidade imperiosa e urgente de uma TRIPLA REFORMA:

1. Uma reforma teológica y catequética para repensar a fé e reformulá-la de modo coerente para os nossos contemporâneos. Uma fé, que já não significa nada, que não dá sentido à existência, não passa de um adorno, de uma superestrutura inútil que cai por si mesma. É o caso hoje.

2. Uma reforma pastoral para repensar a fundo as estruturas herdadas do passado (Ver aqui as minhas sugestões neste âmbito).

3. Uma reforma espiritual para revitalizar a mística e repensar os sacramentos com vista a dar-lhes uma dimensão existencial, a articulá-os com a vida.

A Igreja de hoje é muito formal, muito formalista. Dá a impressão que a instituição abafa o carisma e que o que unicamente conta é uma estabilidade puramente exterior, uma respeitabilidade superficial, uma certa fachada. Não nos arriscamos a que um dia Jesus nos trate por “sepulcros caiados…"?

Para terminar, sugiro a convocação, a nível da Igreja universal, de um sínodo geral, no qual participariam todos os cristãos – católicos e otros – para examinar com toda a franqueza e clareza os pontos acima assinalados e todos os que fossem propostos. Tal sínodo, que duraria três anos, seria coroado por uma assembleia geral – evitemos o termo “concílio" – que sintetizaria os resultados desta investigação e dela tiraria as conclusões.

Termino, Santo Padre, pedindo-vos perdão pela minha franqueza e pela minha audácia e solicitando a vossa bênção paternal. Permiti-me também dizer-vos que vivo estes dias na vossa companhia, graças ao vosso notável livro “Jesus de Nazaré", que é objecto da minha leitura espiritual e da minha meditação diária.

Sinceramente vosso no Senhor

P. Henri Boulad, s.j.
henriboulad@yahoo.com
Collège de la Sainte-Famille
B.P. 73 – Faggala – Le Caire – Egypte
Tel. (00202) 25900411 – 25900892 – Privé : 25883838

Graz, 18 de Julho de 2007

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