divórcio ou casamento eterno?...

2010-03-25

CinV (98) Uma loucura (nº43)

Neste capítulo, Bento XVI traz duas ideias inesperadas ou, pelo menos, surpreendentes: a loucura para descrever a relação actual entre direitos e deveres e o abuso do termo “ética” (45).

Vamos à primeira. A leitura dos tempos de hoje mostra a existência da “grave contradição”, atrás referida: “Aparece com frequência assinalada uma relação entre a reivindicação do direito ao supérfluo, senão mesmo à transgressão e ao vício, nas sociedades opulentas, e a falta de alimento, água potável, instrução básica, cuidados sanitários elementares em certas regiões do mundo do subdesenvolvimento e também nas periferias de grandes metrópoles”.
Esta relação doentia tem como causa o esquecimento da relação entre os direitos e os deveres: “A relação está no facto de que os direitos individuais, desvinculados de um quadro de deveres que lhes confira um sentido completo, enlouquecem e alimentam uma espiral de exigências praticamente ilimitada e sem critérios”.
A violência da expressão “enlouquecem” (na versão oficial latina “insaniunt”) não deixa margem para dúvidas. Apetece concluir, como muitos pensam e dizem, que “estamos num mundo de loucos”, porque cada um faz o que quer sem regras nem lei. Mas quando esta palavra é usada pelo Papa ela deve ser levada muito a sério e devem daí tirar-se as consequentes ilações.
“A exasperação dos direitos desemboca no esquecimento dos deveres” individuais e comunitários, o que tem consequências gravosas para todo o mundo, pessoas e povos.
A consciência assumida dos deveres:
1) ajuda “a perceber melhor os conteúdos do fundamento dos direitos: “Estes (os deveres) delimitam os direitos porque remetem para o quadro antropológico e ético cuja verdade é o âmbito onde os mesmos se inserem e, deste modo, não descambam no arbítrio”;
2) reforça “os direitos e propõe a sua defesa e promoção como um compromisso a assumir ao serviço do bem”.

Fundamento
Mas a consciência quer dos direitos quer dos deveres tem muito a ver com as suas fundamentações que cada um considera. Também aqui há várias posições.
A Igreja olha para a Declaração Universal de 1948 “como uma espécie de compromisso moral assumido por toda a humanidade. Isto encerra uma verdade profunda, sobretudo se os direitos humanos descritos na Declaração são considerados como detentores de fundamento não simplesmente na decisão da assembleia que os aprovou, mas na mesma natureza do homem e na sua inalienável dignidade de pessoa criada por Deus” (Mensagem para o Dia Mundial da paz de 2007, 13).
Porque se “os direitos humanos encontram o seu fundamento apenas nas deliberações duma assembleia de cidadãos”:
1) “podem ser alterados em qualquer momento e, assim, o dever de os respeitar e promover atenua-se na consciência comum”;
2) “os governos e os organismos internacionais podem esquecer a objectividade e a «indisponibilidade» dos direitos”
Ora tais atitudes são desresponsabilizantes e, portanto, deixam marcas profundas no tecido social tanto a nível nacional como internacional, porque não só “põem em perigo o verdadeiro desenvolvimento dos povos” como comprometem a autoridade dos organismos internacionais, sobretudo aos olhos dos países mais carecidos de desenvolvimento, porque não lhes permitem assumir o seu espaço legítimo no concerto das nações nem contribuir com o seu contributo, único e irrepetível, para o verdadeiro progresso da humanidade: “A isto temos de chegar: a que a solidariedade mundial, cada vez mais eficiente, permita a todos os povos tornarem-se artífices do seu destino. Demasiadas vezes, o passado esteve marcado por relações de força entre as nações: virá um dia em que as relações internacionais hão-de possuir o cunho de respeito mútuo e de amizade, de interdependência na colaboração e de promoção comum sob a responsabilidade de cada indivíduo. Os povos mais novos ou mais fracos reclamam a sua parte activa na construção de um mundo melhor, mais respeitador dos direitos e da vocação de cada um. É reclamação legítima: a todos compete ouvi-la e satisfazê-la” (PP 65).

Assim, conclui o Papa, “a partilha dos deveres recíprocos mobiliza muito mais do que a mera reivindicação de direitos”. Conclusão teoricamente muito promissora, mas continuamente desmentida pela prática de uma sociedade marcadamente egoísta, individualista e consumista.

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