divórcio ou casamento eterno?...

2010-02-27

Tudo começou em 1953

Há 57 anos, neste mesmo dia, nascia uma menina numa das maternidades espalhadas pelo país. Teve um infância e adolescência muito felizes, cheias, não de dinheiro e luxos, mas de muito amor e carinho. Andou de terra em terra devido à profissão do pai. Fez muitos amigos, porque contagiava de alegria e tinha a capacidade de acolher os outros. Licenciou-se em Medicina, o seu grande sonho. O seu nome não consta do catálogo dos VIPs nem vem na “Caras”, mas sempre foi coerente no modo como encarou a vida e depois a sua vocação de médica.
Há dias tomou posse de Chefe de serviço e proferiu umas palavras que definem bem a sua maneira de ser e de estar:

Há trinta e dois anos que trabalho neste Hospital e há mais de vinte em exclusividade e em regime de 42h semanais. Foi uma vida dedicada aos HUC e é nesta condição que gostaria de dizer algumas palavras.
Ao longo destes anos, procurei nortear-me por alguns princípios que, na minha opinião, são indispensáveis para um exercício mais humano e humanizador da Medicina, embora algumas vezes não tenha sido compreendida e até penalizada.
Nunca me motivou trabalhar em Medicina privada porque sempre acreditei que podia contribuir para fazer do Serviço Público um serviço de excelência, igualmente acessível aos ricos e aos pobres, já que estes são sistematicamente preteridos pelo privado.
Um tal Serviço Público deve satisfazer certos condicionalismos: ter como objectivo prioritário a pessoa do doente, promover uma melhoria contínua da qualidade própria de um Hospital universitário, fazer uma rigorosa e transparente gestão dos recursos e valorizar e estimular os funcionários envolvendo-os e fazendo-os sentirem-se igualmente responsáveis, na certeza de que só com a colaboração de todos estes objectivos poderão ser alcançados.
A contenção exagerada de custos dos bens essenciais ao bom funcionamento dos Serviços não pode fazer-se à custa da qualidade, não esquecendo, no entanto, o binómio benefício-custo. Os custos devem obrigatoriamente e podem ser reduzidos com uma melhor gestão de pessoal, com a automatização, com a informatização generalizada e continuamente actualizada, com a simplificação de burocracias e com o combate eficaz e decidido ao desperdício.
Neste momento que estão a ser estruturadas e organizadas novas instalações para o Serviço de Patologia Clínica dos HUC (SPC), espero poder contribuir para o desenvolvimento de um Laboratório devidamente perspectivado, não para o curto prazo, mas já para o século XXII. Apelando à minha experiência parecem-me indispensáveis infra-estruturas com luz natural e espaços amplos e racionalmente aproveitados bem como a utilização dos mais recentes meios tecnológicos que rentabilize pessoal e custos e optimize a relação do Laboratório com os outros Serviços Clínicos, de modo a garantir o máximo de qualidade e uma mais rápida e eficiente troca de conhecimentos e de informações.
Dada a situação crítica do País, que precisa de nós até cada vez mais tarde, é minha intenção continuar, enquanto puder, a dar o meu contributo profissional e a sustentar a mesma luta que me propus, quando fiz opção pela Medicina, estimulada por uma vocação virada exclusivamente para o serviço da pessoa do doente e não pela ambição do poder ou pelo desejo de maiores vantagens económicas.
Por isso continuarei, como até aqui, a incomodar os meus superiores hierárquicos bem como aqueles que dependem de mim, sempre que o doente, a qualidade do meu Serviço (SPC) e o bom nome dos HUC estiverem em causa.

Esta mulher é a Fátima, a mulher por quem me apaixonei há 40 anos. Depois de algumas tímidas tentativas de escolher companheira, fiquei presa a esta jovem de 17 anos, pela sua alegria, vivacidade, etc.. Mas sobretudo fiquei preso por uma citação evangélica que ela me escreveu numa carta quando ainda mal nos conhecíamos: “Não vos preocupeis com o dia de amanhã. Procurai em primeiro lugar o Reino e a sua justiça e tudo o mais vos será dado por acréscimo” (Mt 6,31.33). Era uma das minhas citações preferidas, porque definia um dos princípios fundamentais da minha vida e, por isso, logo pensei “não vou largar esta mulher”. Foi um “luta” difícil, porque partia com muitas desvantagens: tinha mais 11 anos que ela e a concorrência era muito mais nova e atraente; “vestia tão mal” que ela até se “envergonhava” de a verem comigo; era tão tímido que só através das cartas eu lhe falava do meu amor mas de modo tão insistente, chato e piegas que ela já mal podia ver as minhas cartas. Não sei bem porquê nem como, passado quase um ano de persistência, ela começou a mudar de opinião até que percebeu que também me amava.

Há 39 anos que partimos juntos num projecto a dois que ainda se mantém. Ambos passámos por algumas dificuldades profissionais, por causa da nossa fidelidade a alguns princípios. Mas foram 39 anos que não trocava por nada deste mundo. É certo que tivemos muitas discussões, porque nós somos, usando uma linguagem matemática, “ângulos diametralmente opostos” (o tema mais frequente assentava na quadratura do círculo: como conciliar uma pessoa, que é “escrava do relógio”, como eu, com outra que é a “anarquia” quase pura em termos de horários, como a Fátima?), mas somos absolutamente unidos no vértice do nosso projecto e princípios orientadores da vida.

Há sobretudo duas coisas que eu admiro na Fátima:
1) A capacidade que ela teve, ainda com apenas 18 anos, de aturar um solteirão de quase 30 anos, viciado na independência pessoal e na timidez de afrontar o mundo, alguém carente de carinho e atenção. É que eu também passei um infância muito feliz, com pouco dinheiro e nenhuns luxos numa terra perdida do interior, mas com muito, muito amor e carinho dos pais e irmãos. Mas depois vim para o Seminário, onde a regra era, na altura, muito mais o rigor e a disciplina do que o carinho e o amor (que também lá encontrei, mas pouco). Mas o Seminário deu-me duas coisas inestimáveis: 1) descobri, mais pela reflexão e estudo do que pela prática vivida, quem é Jesus Cristo e que Deus é Amor puro, comunicativo e incondicional e por isso o meu “não vos preocupeis com o dia de amanhã” e 2) adquiri uma bagagem cultural muito boa para altura.
A Fátima aceitou-me desde a primeira hora com estas minhas limitações e preencheu essa lacuna de afecto, tornando-se um elemento fundamental para eu crescer com mais equilíbrio e deixar de ser “bicho do mato” e “rato de biblioteca”.

2) Há quatro anos que vou intervalando períodos de quimioterapia com períodos de repouso, mas sobretudo nos períodos de tratamento devo ser insuportável, sem paciência, possivelmente agressivo com ela, que todos os dias têm de me levar 4 vezes comida ao Hospital (com algum apoio de outros familiares), porque eu me dou ao luxo de não comer lá, e de, de um modo tão egoísta, não consigo obrigar-me a não a obrigar a tal esforço e desgaste. E, mais uma grande lição para mim, nunca ouvi da Fátima um desabafo, um queixume, um “estou farta”, um gesto sequer que mostre o mais pequeno desagrado perante estas minhas atitudes. Muitos amigos me acompanham e mostram a sua solidariedade, mas ninguém, como a Fátima me ama e “ama até ao fim”, sempre a incentivar-me e a manifestar o amor que eu sinto nela.
Nestes momentos lembro-me sempre das promessas mútuas feitas frente ao altar e na presença de uma comunidade de crentes e de amigos: “Eu, Fátima, recebo-te por meu esposo a ti, Zé, e prometo ser-te fiel e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida”. Eu também fiz estas promessas. Estou convicto de que também as cumpriria, mas tenho dúvidas se seria capaz de imitar a Fátima na intensidade com que as está a cumprir.

Que bom ter encontrado a Fátima há 40 anos.
Que bom continuar com ela e com o mesmo amor mútuo.
Que bom que deste projecto tenham surgido a Renata e o David, os nossos amores primeiros, duas flores com alguns inevitáveis espinhos que, sempre nos amaram muito. E de um modo especial nestes últimos quatro anos em que a vida foi mais complicada para a família, nós sentimos ainda mais o quão grande era o seu amor por nós, retratado numa acrescida atenção e cuidado amorosos. Não falei deles, porque hoje é o dia da Fátima.
Que bom acreditar que, mesmo no Reino de Deus, este amor vai não só continuar como atingir outros níveis indescritíveis.

Um beijo muito grande para ti, Fátima.

4 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Zé Dias.Que bom ler este teu texto.
Parabéns aos dois pelo exemplo de vida. José Roque

3/3/10 23:26

 
Anonymous olga correia disse...

Não há palavras para descrever o quanto é bom vermos os sentimentos que estão nestas palavras. Saber que apesar de tanta adversidade na vossa vida Deus vos tem dado força para continuar, como eu vos admiro.Durante mais de vinte pude conviver mais de perto com a Drª Fátima e pudemos compertilhar as nossas alegrias e triztezas.Com amizade e admiração Olga Margarida

4/3/10 23:23

 
Anonymous Olinda disse...

Zé Dias
é tão bonito, tão raro encontrar pessoas assim como vós, em contra-corrente ao amor banal e quase descartável que se vai generalizando. É sempre bom estes espaços de reencontro, ainda que através das novas tecnologias. o meu abraço e a minha amizade aos dois
Olinda

5/3/10 22:48

 
Blogger Zé Dias disse...

Devo dizer que hesitei um pouco em publicar este post, porque poderia ser mal interpretado: apresentarmo-nos como "modelo", como "os bons". E claro, nós não passamos de seres e família, como tantas outras, das quais muitas serão bem melhores do que a nossa.
Mas fi-lo por três razões:
1) queria oferecer este "ramo de flores" à Fátima;
2) tenho defendido, sobretudo quando falo em comunidades paroquiais, que devemos valorizar e chamar publicamente à comunidade, por exemplo no Dia da Família, os casais que celebram 20, 25, 30, 40, 50 (estes números são arbitrários) anos de casados, para que, sobretudo os mais novos e os casais em dificuldades, percebam que, embora não seja fácil, é possível assumir um compromisso para toda a vida. E ISTO É TANTO OU MAIS IMPORTANTE que muita doutrina ou muito palavreado: os exemplos são as provas reais de uma doutrina por muito bonita e bem estruturada que seja;
3) num mundo, em que vale tudo, parece, estranhamente, haver um certo pudor ou vergonha em uma mulher ou um homem casados confessarem publicamente que continuam amar-se (há 40 anos), que têm procurado viver segundo princípios, às vezes, já tão esquecidos que podemos ser prejudicados na nossa vida e que, com dificuldades de todas as ordens, continuamos felizes porque nos amamos.
Já agora para os mais novos queria dizer que a felicidade e o amor não caem do céu "de borla"; conquistam-se no dia a dia, na fidelidade, muitas vezes mal tratada, a um projecto a dois. Isto é possível, mas é difícil. E hoje, sacrifício, sofrimento, fidelidade a projectos são palavras que quase desapareceram do mapa.

6/3/10 12:59

 

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