divórcio ou casamento eterno?...

2010-04-02

Maria e Marta

Há quase dois mil anos, neste mesmo dia, um pequeno grupo de amigos vivia um dos momentos mais dramáticos das suas vidas. Tudo aquilo em que foram acreditando ao longo de três anos, toda a confiança, muito humana, que foram ganhando de que o seu Senhor e Mestre iria continuar a sua obra de modo claro e sem dificuldades de maior e que Ele era uma pessoa para a eternidade, tudo isso de repente começou a desmoronar-se. A excepção foram duas ou três mulheres. Mulheres, ainda por cima: gente que não merecia qualquer consideração. Só esse Mestre, de quem eles tanto esperaram, é que as considerava iguais aos homens em dignidade e consideração.
Chegada a Hora, a maior parte dos amigos de Jesus “fugiu”, alguns atraiçoaram-no, todos acreditavam que Ele ainda iriam salvar Israel do domínio dos Romanos. Ele bem os avisara, mas eles, cegos pelo ambiente cultural da época, não o levaram muito a sério. Até porque Ele fazia tudo “às avessas”. Punha toda aquela sociedade em questão. Censurava os sacerdotes e os levitas e louvava o estrangeiro samaritano. Falava com as mulheres em público, quando nem os maridos o podiam fazer. Não condenou a mulher adúltera, quando a lei mandava apedrejá-la. Falava e até tocava nos leprosos, uma atitude execranda naqueles tempos. Mandava reter a oferenda perante o altar enquanto não fossem feitas as pazes com as pessoas. Corria a golpes de chicotes aquele bando de ladrões que faziam do Templo a caverna de Ali Babá.
Mas os discípulos não perceberam quase nada disto. E este sentimento foi o que melhor assimilámos, nós os cristãos, sobretudo depois do século IV até hoje, apesar do legado preciosíssimo das Sagradas Escrituras e da Tradição. Mesmo a nível dos “altos dignitários”, quanta descrença nesta atitude transformadora que o Evangelho traduziu por metanóia, conversão do nosso modo de ser e de agir conforme a Pessoa de Jesus, esse Acontecimento único na História.

Por isso, hoje é um dia que nos convida à meditação sobre o que é “a melhor parte”. Jesus já o dissera a propósito de Marta e Maria, duas irmãs tão diferentes no seu feitio e no seu modo de ver a vida, mas ambas mulheres de muita fé: “Se cá estivesses, o meu irmão não teria morrido”.
Maria e Marta têm-me feito pensar muito. É essencial ser Maria para que os fundamentos da minha vida e da minha fé sejam profundos e resistam às intempéries da vida. É essencial ser Marta para que esses alicerces frutifiquem e não fiquem perdidos na contemplação extática mas improdutiva.
O que aconteceria se Marta se sentasse aos pés de Jesus e ali ficasse com Maria a noite e o dia seguinte e a noite seguinte e o dia seguinte? Teriam morrido à fome e à sede ou Jesus repetiria o milagre dos peixes e dos pães?
O que teria acontecido à expansão do Evangelho se Pedro, Tiago e João ficassem extáticos na contemplação de Jesus, Elias e Moisés, paralisados toda a vida no Monte Tabor esquecendo que o mundo, o real chato quotidiano, é cá em baixo, na cidade dos homens e das mulheres, que vivem tantas vezes sem sonhos nem utopias?
O que sucederia à missão que o Pai lhe assinalou, se Jesus ficasse eternamente no deserto e não afrontasse as aldeias e sobretudo a cidade dos doutores que escarneciam da sua doutrina e temiam, numa raiva mortal, o seu testemunho?
Afinal, se queremos ser cristãos a sério temos de assumir as duas facetas: a de Maria, que contempla, e a de Marta, que actua. Ora et labora sintetizou S. Bento. Não podemos ser espiritulistas por comodismo nem activistas por impulso. Não contam para aqui os que não sou uma coisa nem outra. Esses não são. Andam por aí, sem eira nem beira. Infelizmente este bando está a tornar-se esmagadoramente maioritário.
Por isso, eu quero ser Maria e Marta ao mesmo tempo. Quero, mas não sou. Algumas vezes parece que o consigo. Mas umas vezes sou só Maria; outras, sou só Marta; a maior parte da vezes talvez não seja nem uma nem outra.

Termino, com este oportuno apotegma de Silvano, um dos “padres do deserto”:
“Um irmão foi procurar abba Silvano à montanha do Sinai. Vendo os irmãos que trabalhavam, disse-lhes:
- Não trabalheis pelo alimento que perece. Maria, de facto, escolheu a melhor parte.
Silvano disse então a um dos seus discípulos:
- Zacarias, entrega um livro a este irmão e deixa-o na cela sem lhe dares mais nada.
Ao chegar a hora nona, o visitante olhava atentamente para a porta a ver se alguém vinha convidá-lo para comer. Como ninguém aparecia, levantou-se e foi ter com o Ancião:
- Os irmãos não comeram hoje?
O Ancião respondeu-lhe afirmativamente.
- Então por que não me chamaste?
O Ancião retorquiu:
- Porque tu és um homem espiritual e não tens necessidade deste alimento. Nós, porque somos carnais, precisamos de comer, por isso trabalhamos. Tu escolheste a melhor parte: leste todo o dia e não desejas comer alimento carnal.
Ao ouvir estas palavras, o irmão prostrou-se dizendo:
- Perdoa-me, apa.
O Ancião disse-lhe então:
- Na verdade, mesmo Maria tem necessidade de Marta. É graças a Marta que se faz o elogio a Maria” (PADRES DEL DESIERTO, Apotegmas, Sígueme, Salamanca 1986, p. 167).



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