divórcio ou casamento eterno?...

2010-12-18

MITOS E LIÇÕES DE UMA CRISE

Este foi o meu balanço do ano na minha coluna do Correio de Coimbra.

Num recente artigo, Nicolau Santos apontava cinco mitos sobre a crise, que era preciso desmontar e acabar com eles. Vou recordá-los e comentá-los e acrescentar duas notas.
“A Europa do Norte governa melhor que a do Sul”. Mas a Islândia foi a primeira a falir e a Irlanda o terceiro a pedir ajuda ao Fundo Europeu e ao FMI. Não é altura de acreditarmos mais em nós, de puxar pelas nossas reservas anímicas distraídas com os prazeres do consumismo e juntarmo-nos pondo de lado omnisciências idiotas que só dividem e nos descredibilizam?
“Países como Portugal actuaram tardiamente em relação à crise”. Contudo a Irlanda, mal sentiu o perigo, fez logo cortes draconianos, mas “ajoelhou-se” antes de Portugal, cujo “Governo actuou tarde e a más horas”. Afinal apressar-se não adiantou nada e os que se atrasaram sempre proporcionaram algum tempo de respiro antes dos inevitáveis sacrifícios.
“Recorrer às ajudas externas acalmaria os mercados e deixaria em paz os outros países”. Afinal, mesmo depois da ajuda à Irlanda, os juros da dívida subiram a mais de 9% (Grécia), 7% (Portugal), 5% (Espanha). E não sabemos o que aí vem, pois aos mercados, bestas irracionais, e aos especuladores, bestas racionais, só lhes interessa encher os bolsos. Actuam como os animais da selva: seguem as manadas e separam os animais mais fracos, para os comerem com o mínimo de esforço.
“Se os países em dificuldade tomassem medidas orçamentas duríssimas, os mercados entenderiam a mensagem e deixariam de pressionar”. Mas agora que Portugal e Espanha as tomaram, estão a caminho de ser obrigados a pedir ajuda. É certo que nos pusemos a jeito, mas isso não explica tudo. Com os animais nas jaulas, podemos andar sossegados no Jardim Zoológico. Mas se eles saem e nos pomos à sua frente, comem-nos logo. E mesmo que nos escondamos, vão procurar-nos até nos encontrarem. Deixemo-nos de tretas: sem os animais na jaula, sem os mercados regulados e os vigaristas na cadeia, não há grande protecção. Mas quem não tem cuidados paga mais caro.
“É muito melhor que venha o FMI governar-nos”. Mas o FMI não só agravaria as pesadas medidas já tomadas, como quer muito mais: flexibilização no despedimento individual e com indemnizações mais reduzidas. Serão estas as grandes causas dos nossos problemas? António Saraiva, da CIP, defende que aumentar a competitividade das empresas passa mais pela redução dos custos da energia e transportes do que por estas soluções. Afinal a promessa dos senhores G7, nos inícios da crise, de melhor controlar as instituições financeiras foi fumaça: tudo está já na mesma, a mesma irresponsabilidade, a mesma liberdade de depredação. E nem reparam que os acordos de Bretton Woods, pais destas crianças mimadas, têm quase 60 anos; é muito ano para que não tenham já sido substituídas, seriamente, por outras mais adequadas ao nosso tempo e mais atentas às pessoas e aos povos. Bom… elas foram-se adaptando mas para sobreviverem e defender o seu soberano interesse.

Para lá dos mitos, há lições que podemos e devemos aproveitar.
O aumento do desemprego e dos necessitados de ajuda básica pode ajudar-nos a tomar consciência de que há realmente gente a viver mal em Portugal. Talvez os novos pobres nos ajudem a olhar de outro modo os antigos pobres (dois milhões), que víamos como preguiçosos e parasitas. Talvez comecemos a perceber que muitos deles são fruto de uma sociedade que nós (des)organizámos e alimentamos porque nos sentimos bem assim. Que afinal a crise, para eles, não começou há dois ou três anos, mas é uma crise crónica. Que a pobreza se autoreproduz: pais pobres geram filhos pobres, que geram filhos pobres, que geram filhos pobres. Se estas pessoas fossem cuidadas com dignidade, podiam quebrar essa espiral de pobreza. Mas nós os remediados ou ricos nunca soubemos o que é ser pobre: preconceituámos, ignorámos, calámos, forçámo-los a viver numa crise contínua. Até nos critérios de convergência, a União Europeia só inclui dinheiros. Por que não aparece também a taxa de pobreza? Não sabem? É muito simples: porque o Senhor Dinheiro vale muito mais que o senhor Pessoa. E quase todos estamos de acordo com esta desumana inversão na hierarquia de valores, incluindo a maioria dos cristãos a quem não repugna esta escolha idolátrica entre o dinheiro e o Deus-Amor.
E pode ser também que agora, com as dificuldades, comecemos a gerir melhor o que temos, a dizer NÃO ao “compre agora e pague depois” e outros tipos de imoralidades bancárias e comerciais, a mudar de estilo de vida, a comprar o essencial e a cortar em tantas vaidades.
Por outro lado, pouco a pouco, migalha a migalha, iniciativa a iniciativa, finalmente a sociedade civil percebeu que tem uma responsabilidade indeclinável na resolução dos muitos pequenos problemas locais. Como é bonito ver juntas de freguesias, câmaras, instituições religiosas, grupos de cidadãos assumirem, como seus, os problemas das vítimas da crise. Como é bonito ver a comunicação social começar a dar notícias destas, embora ainda mal passem das letras miudinhas perdidas no meio de grandes títulos. Como é bonito ir exercendo a cidadania.
É ainda pouco, demasiado pouco para as necessidades e para a cidadania solidária. Mas o importante “é partir” (M. Torga), é começar como o fio de água de uma fonte, que depois vai engrossando num ribeiro, num afluente, num Tejo ou até mesmo num Amazonas.
O que é preciso é começar, dentro do coração, e ir transbordando, atraindo outros corações para a fraternidade, a gratuidade e o cuidado do outro! Eh pá, como isto será lindo!

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