divórcio ou casamento eterno?...

2010-12-19

S. JOSÉ, O ESQUECIDO

José é uma das figuras mais discretas da Bíblia. E, contudo, apesar de nunca se lhe ouvir uma palavra, todos os seus gestos são um modelo de vida e de vida em abundância. Ele respeitou Maria numa situação complexa. Ele calcorreou toda a cidade de Beléme em busca de uma hospedaria para encontrar um local digno para o Menino nascer. Ele sofreu dolorosamente o fracasso de não encontrar nada. Ele teve ainda forças para descobrir uma gruta onde a intimidade e privacidade de Maria não fossem violadas. Ele protegeu a sua família quando foi preciso fugir para o Egipto e quando voltaram para Nazaré. Ele alimentou a casa trabalhando como carpinteiro.
Ele não falou. Actuou sempre e só quando foi preciso. No resto remeteu-se ao anonimato de quem cumpre  a vontade de Deus e isso lhe basta.
S. Mateus chama-o “justo” (Mt 1,19).

Ser Justo
Justo, díkaios (δίκαιος), é uma adjectivação muito forte. Aliás esta palavra aparece já em Homero, que acusa de não serem “sensatos nem justos os príncipes que não cumpriram a palavra” que deram e pede “que Zeus, o deus dos suplicantes, os castigue”, pois “ele observa todos os homens e castiga quem transgride” (Odisseia XIII, 209.212-214). Numa outra passagem a explicitação, feita por contraste, dá uma melhor ideia deste conceito. Quando se aproxima da terra dos Ciclopes, Ulisses vai primeiro averiguar “se são arrogantes e selvagens ou se não são justos / se recebem bem os hóspedes e se são tementes aos deuses” (Odisseia IX, 175-176); assim opõe os arrogantes e selvagens aos justos, que praticam a hospitalidade e são tementes (respeitadores) dos deuses.
No AT, a justiça e o direito são atributos essenciais de Deus. Ao falar do direito do pobre, Carreira das Neves escreve: “Fundamentalmente o que está em causa é o direito que os pobres têm em serem defendidos pelo Deus da justiça. O mishpât (direito, justiça) e a çaddâqâ (justiça) fazem parte ontológica do ser de Deus. Deus não pode ser de outra maneira”. Por isso o rei ideal, que há-de sair da dinastia de David, o Messias (o Ungido, o Cristo), virá instaurar a justiça e a paz (Is 8,23-9,3): “Nesse tempo, o mishpât e a çaddâqâ serão totais e absolutos: ‘Ele não julgará segundo as aparências, / nem se pronunciará segundo o que ouvir dizer. / Julgará com justiça (çaddâqâ) os fracos / e pronunciar-se-á segundo o direito (mishpât) acerca dos pobres (‘anâwîm) do país’ (Is 11, 4)”.

S. Lucas repete esta essencialidade do rei messiânico (fazer justiça aos fracos e pobres) no Magnificat: “derruba os poderosos dos seus tronos e eleva as pessoas que nada são, / sacia os esfomeados e deixa os ricos de mãos vazias” (Lc 1,52).

Modelo do Justo
Voltando a José, percebemos agora a força da palavra “justo”. Aliás Lucas chama justos a Zacarias e a Isabel – “ Ambos eram justos aos olhos de Deus” – porque “cumpriam irrepreensivelmente todos os mandamentos e preceitos do Senhor” (Lc 1,6).
José é, portanto, um homem justo. Mas ele não é justo “apenas” porque cumpre irrepreensivelmente todos os mandamentos, mas sobretudo porque “deixa espaço” a Deus para actuar e “retira-se” confiado na correcção das decisões de Deus.
José tem um dilema. Maria estava grávida e não era dele.
Ou seja, o problema é que ela engravidou depois de já estar comprometida com ele. Neste caso, a solução era fácil. Na prática, era como se Maria incorresse em adultério e José devia repudiá-la publicamente.
Mas como era justo não queria difamá-la publicamente e, por isso, estava a pensar fazê-lo em segredo. Esta demora na tomada de uma decisão, que aparentemente era muito fácil, é que me leva a pensar que José vai esperar para que Deus o ilumine e lhe aponte a solução. Claro que não sabemos se Maria teria dito alguma coisa a José. Mas não seria fácil acreditar: “Olha, estou grávida, mas o responsável é o Espírito Santo”. Portanto, José aguarda, na incerteza, na certeza de que Deus sabe o que faz e que, portanto, deve respeitar essa decisão.

Esta é uma situação pela qual por vezes todos acabamos por passar. São momentos em que, como diz S. João da Cruz, a fé é uma noite escura para o crente. Recentemente lemos um desabafo idêntico da Irmã Teresa de Calcutá. A fé não é um raio luminoso que esclarece todas as nossas dúvidas. Às vezes pode ser. Mas muitas vezes deixa-nos na dúvida, na incerteza, na escuridão. Não sei se viram o filme Des dieux et des hommes (ou vice-versa, já não me recordo). Nele esta questão é posta com toda a crueza: abandonar ou não a aldeia. "Qual a vontade de Deus nesta situação concreta?" é a pergunta que todos os frades fazem nas suas reuniões plenárias, mas sobretudo  no seu interior.
Deus parece-nos, por vezes, muito mauzinho connosco, ou talvez melhor, quase sempre, porque não nos diz claramente o que quer de nós em cada circunstância. Mas não é mauzinho, antes pelo contrário. Ele actua assim, porque fez a opção de nos criar à sua imagem e de nos querer livres. Por isso nos respeita nas nossas decisões boas e nas más. Preferiu dar-nos a capacidade de pensar, de avaliar os acontecimentos, que são as suas verdadeiras manifestações na história, e de decidir.
A dificuldade é que os sinais geralmente andam misturados com anti-sinais. Mas sou eu que tenho de ler os acontecimentos, à luz da Palavra de Deus, dos meus princípios, da minha disponibilidade. E isso é passar sempre pela solidão da decisão. As decisões pessoais são sempre solitárias. Eu posso pedir ajuda aos amigos, mas eu é que tenho de decidir. É por isso que ninguém pode nunca defender-se de uma decisão ou actuação errada desculpando-se com uma ordem recebida. Eu é que sou responsável pelos meus actos. Se, por exemplo, desobedecer a uma ordem, naturalmente que vou sofrer as consequências. Mas eu não posso obedecer cegamente a qualquer ordem. Porque acima das ordens das autoridades civis, militares ou religiosas, está a minha consciência que não posso renegar. Até porque é pela fidelidade à minha consciência que serei julgado. Foi o que deixou claro S. Tomás de Aquino: “Recebida uma ordem encontramo-nos num dilema: se formos contra a nossa consciência, pecamos; se desobedecermos ao nosso superior, também pecamos. Dos dois, o primeiro é pior pois que o ditame da consciência vincula mais que o decreto da autoridade exterior”.

José podia ter obedecido à lei de Deus escrita pelos homens. Seria um homem justo, pela medida humana. Mas, porque era realmente justo, procurou não difamar publicamente Maria. E, na dúvida e na noite escura da fé em Deus, ele esperou, procurou avaliar a situação, acreditou no que Maria lhe disse e deixou-se guiar pela sua consciência, "o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser. Graças à consciência, revela-se de modo admirável aquela lei que se realiza no amor de Deus e do próximo” (Gaudium et Spes, 16). O seu sonho foi o resultado deste processo de fé em Deus, de confiança nos outros e da certeza de que Deus é o Senhor da história.

É, por tudo isto, que José é para nós, crentes e não crentes, um modelo. Porque hoje quase todos nós começamos por condenar os outros e só depois, se houver tempo, vamos ver se temos razão.
Pior ainda, hoje muitos obedecem a leis divinas que são sempre traduzidas, ou melhor, mediadas pela sensibilidade e mundividência de quem as escreve ou as decreta. Em nome de Deus, a História está cheia de actos de crueldade e ulcerada pelas cicatrizes da malvadez humana.
O que é um absurdo, já que Deus, qualquer que seja o seu nome, é sempre AMOR.
Mas não somos todos nós um mistério de que o absurdo também faz parte?

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