divórcio ou casamento eterno?...

2011-02-19

Fotografia de família

Quando me preparava para fazer um comentário sobre a pessoa idosa que foi encontrada morta no seu apartamento ao fim de oito meses, alguém me mandou um artigo de opinião de Marinho e Pinto. Como, espero que tenha sido perceptível, tenho aqui procurado reflectir e lutar pela necessidade de construirmos uma sociedade civil, onde a cidadania seja cada vez mais forte e eficaz, pensava abordar, entre outros, alguns dos aspectos que o autor do artigo descreve de modo fabuloso e conhecedor. 
Antes de reproduzir integralmente o artigo, quero fazer um comentário.
A tristeza desta nossa sociedade em termos de cidadania é tal que, para sossegar a nossa consciência "cívica", arranjámos um bode expiatório: a classe política. É certo que eles "se põem a geito". Mas é uma atitude comodista nossa. E o que este artigo denuncia é que, como se vê, os responsáveis directos são pessoas e instituições "não políticas". A classe política está como está. Mas ela não é a única. Temos de perceber isso. Devemos lutar contra os seus dislates, mas não nos devemos ficar pelos "políticos". Caso contrário, estamos a deixar apodrecer a maçã, porque só olhamos para o píncaro e estamos convencidos de que, quando começar a apodrecer o píncaro, basta cortá-lo e a maçã fica comestível. É falso. Todos somos responsáveis, conforme  a área e a extensão de poder e da influência que cada um tem. E sobretudo os que não têm nenhum poder institucional senão o de sermos cidadãos, porque somos milhões e se mudarmos de vida mudamos tudo.
Se não assumirmos uma leitura honesta da realidade, se nos ficarmos pelo mais fácil e visível, a sociedade vai continuar cada vez a piorar mais. Porque deixamos que a maçã vá apodrecendo discrertamente por dentro. Assim fazendo, somos ainda mais responsáveis que a longa lista de (ir)responsáveis referidos no artigo.
Portanto, todos somos culpados porque não criamos um ambiente de responsabilidade: 
- todo o que se cala, porque não quer chatear-se, obrigando o funcionário a atendê-lo com respeito e delicadeza, ou porque não está para fazer uma contestação cujo desenvolvimento pode demorar anos e não chegar a nada;
- todos os pais que não ensinam os filhos a serem responsáveis e construtores do bem comum, já para não falar dos que viciam as regras do jogo cívico para que os seus filhos passem à frente de outros;
- todos os professores que transmitem "apenas" muitos saberes técnicos mas não educam para a cidadania nem a praticam quer dentro da sala de aula quer no tipo de reivindicações públicas que fazem;
- as Igrejas sempre que as suas catequeses e formação se perdem nos meandros insondáveis do Deus infinito e não colocam o assento tónico na missão, que o próprio Deus nos confiou, de sermos os seus instrumentos na construção de um mundo, continumado a sua obra da Criação e da Redenção;
- todos os "políticos" que apenas pensam nos seus interesses e se especializaram em embrulhar uma falsa luta pela cidadania em meros exercícios de luta pelo poder pessoal ou de defesa de interesses egoístas partidários;
- todos os sindicalistas que não fazem dos sindicatos também escolas de formação dos trabalhadores, acabando por se esgotar na mera defesa de salários ou imorais "direitos adquiridos";
- toda a comunicação social que prefere destacar notícias de "faca e alguidar" e deixa para as letras miudinhas (não vá alguém sabê-lo!) a dedicação e o esforço anónimos de milhares de voluntários, de animadores culturais, de assistentes sociais e também de alguns poderes autárquicos, que, todos os dias, fazem milagres, autênticos milagres, matando a fome material, alimentando a sede espiritual, estimulando o florescimento da dignidade de tantos que a vão deixando estiolar, promovendo iniciativas que pouco a pouco vão acordando os milhares de cidadãos adormecidos, acomodados, egoístas;
- todas a chefias intermediárias que vivem para a promoção pessoal, para a subserviência irracional ao chefe, para a cunha dos amigos, e não sentem brio por ter um serviço eficiente e produtivo, não estimulam as competências próprias de cada um dos seus subordinados, não criam a beleza de um ambiente saudável que faça cada um sentir-se membro indispensável de uma equipa sólida e unida, preferindo multiplicar insatisfações, coarctar a criatividade (só o chefe é que tem ideias!), "pôr na prateleira" os mais competentes, esquecendo que todos devemos estar ao serviço do bem comum e tanto mais quanto maior for a nossa responsabilidade cívica.
Vamos todos dar uma forcinha, que isto vai avançar pouco a pouco, mas temos de empurrar todos.      
E então vamos ao artigo.

UM PAÍS INSUPORTÁVEL
A. Marinho e Pinto
Jornal de Notícias 13.Fev.2011
A falta de bom-senso e humildade constitui uma das principais causas da degenerescência da justiça portuguesa. Tudo seria simples se houvesse uma coisa que falta cada vez mais aos nossos magistrados: bom senso.
Uma mulher com 88 anos de idade morreu no seu apartamento em Rio de Mouro, Sintra, mas o corpo só foi encontrado mais de oito anos depois, juntamente com os restos mortais de alguns animais de companhia (um cão e dois pássaros).
Este caso, cujos pormenores têm sido abundantemente relatados na comunicação social, interpela-nos a todos não só pela sua desumanidade mas também pela chocante contradição entre os discursos públicos dominantes e a dura realidade da nossa vida social. Contradição entre promessas e garantias de bem-estar, de solidariedade e de confiança nas instituições públicas e uma realidade feita de solidão, de abandono e de impessoalidade nas relações das instituições com os cidadãos.
Apenas duas ou três pessoas se interessaram pelo desaparecimento daquela mulher, fazendo, aliás, o que lhes competia. Com efeito, uma vizinha e um familiar comunicaram o desaparecimento às autoridades policiais e judiciais mas ninguém na PSP, na GNR, na Polícia Judiciária e no tribunal de Sintra se incomodou o suficiente para ordenar as providências adequadas. Em face da participação do desaparecimento de uma idosa a diligência mais elementar que se impunha era ir à sua residência habitual recolher todos os indícios sobre o seu desaparecimento. É isto que num sistema judicial de um país minimamente civilizado se espera das autoridades policiais e judiciais, até porque o caso era susceptível de constituir um crime. O assalto e até assassínio de idosos nas suas residências não são, infelizmente, casos assim tão raros em Portugal. Mas, sintomaticamente, as autoridades judiciais não só não se deram ao trabalho de se deslocar à residência como, inclusivamente, recusaram-se a autorizar os familiares a procederem ao arrombamento da porta de entrada.
E tudo seria tão simples se houvesse uma coisa que falta cada vez mais aos nossos magistrados: bom senso. Mas não. Dava muito trabalho ir à uma residência procurar pistas sobre o desaparecimento de uma pessoa. Dava muito trabalho oficiar outras instituições para prestar informações sobre esse desaparecimento. Sublinhe-se que um primo da idosa se deslocou treze vezes ao tribunal de Sintra para que este autorizasse o arrombamento da porta da sua residência. Mas, em vez disso, o tribunal, lá do alto da sua soberba, decretou que a desaparecida não estava morta em casa, pois, se estivesse, teria provocado mau cheiro no prédio. É esta falta de bom-senso e humildade perante a realidade que constitui uma das principais causas da degenerescência da justiça portuguesa. Os nossos investigadores (magistrados e polícias) não investigam para encontrar a verdade, mas sim para confirmarem as verdades que previamente decretam. E, como algumas dessas verdades são axiomáticas, não carecem de demonstração.
Mas há mais entidades cujo comportamento revela que a pessoa humana não constitui motivo suficientemente forte para as obrigar a alterar as rotinas burocráticas e impessoais.
A luz da cozinha daquele apartamento esteve permanentemente acesa durante um ano, ao fim do qual a EDP cortou o fornecimento de energia eléctrica, sem se interessar em averiguar o motivo pelo qual um consumidor deixou de cumprir o contrato celebrado entre ambos.
Os vales da pensão de reforma deixaram de ser levantados pela destinatária, mas a segurança social nada se preocupou com isso. Ninguém nessa instituição estranhou que a pensão de reforma deixasse de ser recebida, ou seja, que passasse a haver uma receita extraordinária sem uma causa. E isto é tanto mais insólito quanto os reformados são periodicamente obrigados a fazerem prova de vida. Mas isso é só quando estão vivos e recebem a pensão.
Os CTT atulharam a caixa de correio daquela habitação de correspondência que não era recebida sem que nenhum alerta alterasse as suas rotinas.
Finalmente, as finanças penhoraram uma casa e venderam-na sem que o respectivo proprietário fosse citado. Como é que é possível num país civilizado penhorar e vender a habitação de uma pessoa, aliás, por uma dívida insignificante, sem que essa pessoa seja citada para contestar? Sem que ninguém se certifique de que o visado tomou conhecimento desse processo? Como é possível comprar uma casa sem a avaliar, sem sequer a ver por dentro? Quem avaliou a casa? Quem fixou o seu preço?
Claro que agora aparecem todos a dizer que cumpriram a lei e, portanto, ninguém poderá ser responsabilizado porque a culpa, na nossa justiça, é sempre das leis. É esta generalizada irresponsabilidade (ninguém responde por nada) que está a tornar este país cada vez mais insuportável.

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