divórcio ou casamento eterno?...

2011-03-13

A culpa(da)

Da Liturgia da Palavra de hoje, o que mais nos chama a atenção é o evangelho das três tentações a que Jesus foi sujeito no deserto. Elas compendiam em si as tentações a que todos somos tentados ao longo da vida.
No entanto, eu vou reflectir um pouco sobre a primeira Leitura tirada do 2º capítulo do Livro do Génesis. Descreve rapidamente a criação do homem, dentro do contexto cultural mesopotâmico, mas introduzindo mudanças substanciais, que não vou agora analisar: o homem não foi criado para ser criado dos deuses, mas para ser seu representante na terra e continuador e colaborador na obra da criação. João Paulo II explica assim esta ideia estruturante. “A história do género humano delineada pela Sagrada Escritura, mesmo depois da queda no pecado, é uma história de realizações contínuas, que, postas sempre de novo em questão e em perigo pelo pecado, se repetem, se enriquecem e se difundem, como uma resposta à vocação divina, consignada desde o princípio ao homem e à mulher, e impressa na imagem por eles recebida. É lógico concluir, ao menos por parte de quantos crêem na Palavra de Deus, que o «desenvolvimento» de hoje, deve ser considerado como um momento da história iniciada com a criação e continuamente posta em perigo por motivo da infidelidade à vontade do Criador, sobretudo por causa da tentação da idolatria; mas ele corresponde fundamentalmente às premissas iniciais. Quem quisesse renunciar à tarefa, difícil mas nobilitante, de melhorar a sorte do homem todo e de todos os homens, com o pretexto do peso da luta e do esforço incessante de superação, ou mesmo pela experiência da derrota e do retorno ao ponto de partida, não cumpriria a vontade de Deus criado.” (SRS 30)

Depois o relato passa para o jardim, onde há muitas árvores, a principal das quais está no meio, a árvore do conhecimento do bem e do mal, a única da qual é proibido comer: “mas não comas (o fruto) da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque, no dia em que o comeres, morrerás” (Gn 2,16). Entre os semitas “conhecer” significava dispor e experimentar, numa palavra, possuir; “bem e mal” não se referia a uma distinção moral mas da plenitude do “conhecer-poder” (1) . Na Epopeia de Gilgamesh, uma prostituta diz: “Agora que já recebeste o conhecimento, ó Enkidu, tornaste-te semelhante a deus” (2). O que é confirmado pela serpente, “o mais astuto de todos os animais selvagens”, que diz a Eva: “Não morrereis. Mas Deus sabe que, no dia em que o comerdes, abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como Deus, ficando a conhecer o bem e o mal” (Gn 3,4-5).
O certo é que Eva colheu o fruto e partilhou-o com Adão.
E, com base neste relato bíblico, gerações e gerações de exegetas masculinos atribuíram a culpa do pecado exclusivamente a Eva e, por extensão, as mulheres têm carregado ao longo da História esse estigma.
O principal culpado é a exegese rabínica, de natureza patriarcal e antifeminista, que acentuava três aspectos:
1) a mulher deve estar subordinada ao homem,
- porque foi criada em segundo lugar (Gn 2,22) e
- porque só o homem teria sido criado à imagem de Deus, interpetração só possível fazendo uma leitura reducionista de adam (Gn 1,27) como homem-varão e não como homem-humanidade;
2) a mulher é responsável pela introdução do pecado no mundo, porque não soube resistir à tentação da serpente (Gn 3,6);
3) a mulher é uma perigosa sedutora, porque até conseguiu seduzir os filhos dos deuses (Gn 6,2).
Nem sequer repararam que Adão estava junto dela quando Eva colheu o fruto: “A mulher viu então que a árvore era boa para comer e agradável aos olhos e desejável para adquirir a sabedoria. Tomou do fruto e comeu. Deu também ao seu homem que estava com ela, que comeu igualmente.” (Gn 3,6)
E que fez Adão? Opôs-se? Não consta. Até apoiou, pois também comeu sem qualquer reserva.

Mas há uma outra leitura desta iniciativa da mulher relativa ao conhecimento, vista numa perspectiva do contexto cultural da época, que é apresentada como positiva. A.S. Vaz, na sua tese de doutoramento (3), apresenta a mulher como libertadora da ignorância, como “fonte de cultura”: “Em Gn 3,1-6 é a mulher que descobre as propriedades da ‘árvore para adquirir o conhecimento’ (3,6); e numa acção em favor da humanidade (da qual vai ser apresentada como mãe: 3,20), consegue, por meio do motivo da ‘comida’ duma árvore violadora duma proibição divina, arrebatar o precioso ‘conhecimento’, fonte da cultura humana, embora, simultânea e ambiguamente, fonte das conotações negativas da vida e ocasião da morte. (...) Desta interpretação resulta claramente que as caracterizações exegéticas e espirituais negativas, que pintam a mulher como outra serpente, desencaminhadora e tentadora do homem para o pecado, causa essencial das desgraças humanas, não ficam legitimadas pela compreensão mítica do texto e são infiéis ao seu ímpeto significante. Devem-se a uma exegese masculina, feita mais a partir de pressupostos culturais e sociais dos intérpretes do que a partir do fundo cultural do texto. Já se encontram nos Padres e percorrerão ininterruptamente a mentalidade cristã mediante grandes nomes de santos e doutores da Igreja, contribuindo para a visão negativa da mulher que invadiu a história humana até ao presente" (pp. 244-245).

Finalmente, este seria o primeiro acto verdadeiramente humano: “Sob o ponto de vista da Igreja, que representava a autoridade, isto é essencialmente pecaminoso; sob o ponto de vista humano, entretanto, isto é o início da liberdade humana. Agir contra as ordens de Deus significa libertar-se da coacção, emergir da existência inconsciente da vida pré-humana para o nível humano. Agir contra o comando da autoridade, cometendo um pecado, é, em seu aspecto humano, o primeiro acto de liberdade, isto é, o primeiro acto humano” (4). Destacar este aspecto, contudo, não significa, porque tal não é aceitável, que a liberdade consista ou se defina pela desobediência a um mandamento ou a uma lei. Aqui simplesmente se quer afirmar o facto de a pessoa humana, se não tiver capacidade para decidir, não é pessoa em plenitude. Mesmo que esta capacidade que a pessoa tem de optar livremente, inclua também o risco de optar mal: "Assim a experiência humana ultrapassa os limites iniciais, alcançando um inesperado desenvolvimento da vida, porque o homem se familiariza e se apodera de segredos que ultrapassam as suas possibilidades originais. É o momento da plena tomada de consciência de si mesmo por parte do homem (...) da passagem da fase infantil à fase adulta, de ser natural e instintivo a ser que vive uma existência histórico-humana" (5). Depois desta decisão, o homem entra no mundo cheio de dificuldades, perante as quais é constantemente solicitado a optar: estar ao lado de Deus ou agir sem ou contra ele. Mas este foi um risco que Deus quis assumir quando criou o homem. Efectivamente, segundo os relatos das origens, o homem representa um risco para Deus sob diversos pontos de vista. O risco de saber se o homem, feito à semelhança de Deus, exercerá correctamente a soberania que Deus lhe confiou; o risco de saber se o adam, a humanidade, dividida em macho e fêmea, será capaz de encontrar a verdadeira unidade num só corpo; o risco de saber se o homem continuará a sua tentativa titânica de ultrapassar os limites impostos ou se se deixará guiar por Deus (6).

(1) LA CASA DA BIBLIA, Comentario al Antiguo Testamento I, p. 47.
(2) Tábua I, coluna 4, linha 35.
(3) ARMINDO DOS SANTOS VAZ, A visão das origens em Génesis 2,4b-3,24. Coerência temática e unidade literária, Carmelo - Didaskalia, Lisboa 1996, 605 pp.
(4) E. FROMM, O Medo à Liberdade, Zahar, Rio de Janeiro 1972, p. 37.
(5) G. FOHRER, Estruturas teológicas fundamentais do Antigo Testamento, Paulinas, S. Paulo 1982, p. 282.
(6) G. FOHRER, o. cit., pp. 285-286.

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