divórcio ou casamento eterno?...

2011-03-29

Os novos samurais

Os sucessivos cataclismos que foram caindo sobre o Japão trouxeram à superfície algumas características desse povo tão afastado de nós. Uma das coisas que não pode deixar de nos impressionar é o que se tem passado em torno da central nuclear de Fukushima.


A primeira lição a tirar é que a energia nuclear não é propriamente uma brincadeira, como alguns seduzidos pelos chorudos lucros que daí lhes poderia advir, mesmo entre nós, quiseram fazer crer, com base em zelosos cientistas, alguns sempre dispostos a ser a voz do dono.
É certo que acidentes podem acontecer com barragens, com centrais térmicas, etc.. E também sobre rebentamentos de barragem conhecemos algumas notícias que referem aldeias desaparecidas e também muita destruição a nível local. Mas um reactor não produz apenas desastres físicos imediatos. Ele prolonga, no tempo, radiações letais que não podem ser apagadas. A água da barragem passa, mata, destrói, arrasa, mas passou, passou. Um reactor nuclear deixa vestígios durante muito tempo. Envenena o ambiente e não apenas localmente.
Não me considero fundamentalista, mas realmente nunca ninguém me convenceu de que a bondade da energia nuclear era superior à sua maldade, mesmo atendendo a que aquela é real e esta é apenas potencial.

Mas não era de energia nuclear que queria falar.
Queria homenagear as dezenas de técnicos que se dispuseram a tentar evitar um desastre maior dando a sua vida em troca. Não é crível que vivendo estes dias mergulhados em tais doses de radiação tenham alguma hipótese de sobrevirver. E eles, mais que ninguém, sabem disso. É um gesto de amor pouco comum hoje. Dar a vida e dá-la até ao fim é a forma mais nobre de amor ao próximo.
Não sei se todos ou alguns estão, ainda que inconscientemente, animados pelos ideias dos velhos samurais, que assentavam a sua “cultura” na lealdade, na disciplina férrea e na eficaz habilidade para manejar o sabre.
Faço esta comparação porque o que estes técnicos japoneses estão a fazer é dar uma prova real dessas três características.
A lealdade para com os seus concidadãos. Podiam ter abandonado o local em tempo útil; mas por lealdade para com os seus concidadãos que acreditaram neles ali se mantêm conscientes de que assim estão a contribuir para a uma sociedade onde o bem comum ocupe o lugar que lhe compete frente aos egoísmos, mesmo legítimos, dos cidadãos. É a primeira lição para muitas sociedades ocidentais, a começar pela nossa. Não quero esquecer a dedicação de tantos voluntários que combatem incêndios, salvam nadadores que não sabem nadar, etc.. Mas apesar de tudo estamos num patamar diferente.
Só com uma disciplina e vontade férreas é possível afrontar aquele perigo, sabendo qual o resultado final: a morte a curto prazo e possivelmente no meio de grande sofrimento.
Têm procurado que a sua grande capacidade técnica possa evitar males maiores. Não se sabe bem qual o resultado final, mas nunca se poderá dizer que não houve gente que, podendo ter abandonado o barco, preferiu ficar até ao fim para que os estragos fossem os menores possível.  
Em sua homenagem aqui deixo o ideograma japonês para "samurai".


3 Comentários:

Blogger Meg disse...

Lealdade e altruísmo são palavras que perderam sentido, em tempo de individualismo exacerbado.
Todavia, reconheço que é necessária uma mentalidade de desapego brutal a si mesmo para se entregar à morte, por uma causa. Hoje e sempre...

Arrepia! sou mortal, mas tenho receio da morte...é humano. Serão eles humanos?

2/4/11 22:27

 
Blogger Zé Dias disse...

Todos temos medo da morte. A Margarida não é excepção. E certamente também estes "novos samurais".
A lição que eu tiro deles é que pode haver coisas mais importantes que a própria vida. E a história mostrou isso mesmo: os mártires cristãos ou outros; os monges que se imolaram em defesa da autonomia do Tibete, o jovem (Jan Palak, se não estou errado) em defesa da primavera de Praga, os jovens de Tiannamen, o padre Maximiano Kolbe que trocou a sua vida pela de outro condenado à morte em Auschewitz, os lutadores árabes pela democracia, sei lá...

Agora estou de acordo que é preciso ter uma dimensão interior maior que o mundo para fazer estes gestos que arrepiam, pois é o máximo que alguém pode dar.

Mas é também um sinal que nos faz acreditar que, embora sejam excepções, o Homem tem uma capacidade de doação, de gratuitidade, de fraternidade, que está abafada, escondida ou foi perdendo a força nestas nossas sociedades hedonistas, que vivem da desculpa de que "o problema não é meu!".
Mas a pergunta que devemos fazer-nos é por que é que fomos perdendo essa dimensão? Por que razão fomos construindo uma sociedade em que os valores interiores sentem dificuldade em se libertar do emaranhado de banalidades que estruturam as pessoas de hoje em canas agitadas pelo vento?

Estes gestos, repito, dão-me a certeza de que a humanidade tem futuro.
Mas realmente são gestos que, embora excepcionais, nos interpelam e interpelam tão dolorosamente porque desmascaram as nossas limitações e a nossa impotência: eu não seria capaz disso.
Ora seria se as circunstâncias o proporcionassem? E a Margarida, como pode dizer que não o faria, mesmo que tenha muito medo da morte?
Até porque posso referir situações outras como a das mães que preferem morrer para que o filho nasça. Ou, numa situação oposta, os mercenários que se atiram para situações potencialmente mortais por dinheiro. Ou, ainda numa situação intermédia, a dos soldados que partem para uma batalha sentindo as balas a zumbir-lhe aos ouvidos e a ver os colegas a caírem mortos: fazem-no porque foram obrigados? fazem-no porque acham que estão ao serviço de uma causa justa?

Somos complicados... Mas não admira porque o Homem é sempre um mistério que se vai clarificando e adensando conforme os avatares da vida.

Mas acima de tudo acredito na vida, no amor, na alegria, no futuro, e gosto de ser feliz estando a bem com a minha consciência e com as exigências que ela me coloca. Por isso às vezes faço outras maluquices verdadeiras nulidades comparadas com a coragem e a força moral destes heróis.

3/4/11 00:03

 
Anonymous Anónimo disse...

Zé Dias: Tenho dificuldade em te ler, tal é a quantidade da tua escrita, não falo da qualidade, porque essa está certamente garantida.
"a latere" deste comentário, gostava de te dizer que gostei de te ver, e ouvir, hoje no programa das 18H na rtp2. Reconheci-te de imediato muito embora haja já largos anos que não nos encontramos pessoalmente.
Recebe um abraço com desejo de Boa Saúde, do
FF (teu ex.condiscípulo)

5/4/11 18:01

 

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