divórcio ou casamento eterno?...

2011-05-02

João Paulo II

Foi uma cerimónia deslumbrante: um milhão de pessoas. Nas vésperas, outra cerimónia deslumbrante: dois milhões de pessoas. E quantos milhões terão visto em casa? Mas dois acontecimentos muito diferentes. Ou não, se nos remetermos apenas à perspectiva “informativa”?
Dizem que a monarquia inglesa saiu reforçada no seu prestígio. Ninguém sabe o quanto saiu reforçada a imagem da Igreja. Mas a imagem que a Igreja deve dar ou deve ter é muito diferente da imagem que a monarquia deve ter.

João Paulo II foi um papa único. Foi criado com dificuldades: a morte da mãe, a mão de ferro do regime comunista, o trabalho braçal em vários locais que lhe permitiram perceber in loco o que é a realidade, actor de teatro e desportista que amava e precisava de respirar a natureza. Em resumo, alguém que foi forjado na dureza da vida e não em berços dourados de outros papas anteriores. Mais: viveu e cresceu no meio de um sistema comunista, enquanto todos os outros nasceram no meio de um sistema capitalista. Não veio do frio, mas de outro mundo.
Certamente que este contexto o marcou muito.
A perda da mãe pode ter sublimado o amor a sua mãe no amor a outra Mãe, Maria, celebrada em tantos santuários que visitaria. E até o deve ter convencido que Nossa Senhora terá desviado a bala assassina que lhe fora dirigida. Quem sou eu para julgar esta interpretação, mas, do ponto e vista da fé, coloca-me alguns problemas. Mas o problema é meu, porque acreditando que Deus é o Senhor da história, tenho dificuldade em vê-lo como Alguém que controla cada acto do ser humano que Ele quis criar livre e a quem deu autonomia para fazer tanto o bem como o mal. Que nos criou limitados física, psicológica, metafísica e espiritualmente e que não está a interferir nessas limitações para as eliminar. Mas isto é o que eu penso. Não é o que muito católico pensa.
O ter vivido na clandestinidade deu-lhe uma convicção profunda da necessidade de manter a fé na sua pureza tradicional, pois sentia que a Polónia só sobreviveu porque foi fiel a essa fé católica que forjou a sua identidade e a sua capacidade de resistir a tanta intempérie histórica. Esta convicção tornou-o um profundo defensor das posições “tradicionais” da moral cristã. Isto é mau? Não, enquanto elas são fruto das “palavras de vida eterna” que Jesus nos deixou. Mas pode ser negativo, se não tivermos em conta as profundas mutações que estão a acontecer, se não formos capazes de as iluminar, de maneira nova, com a mensagem libertadora de Jesus de Nazaré. João Paulo II fez um esforço nesse sentido, mas estava muito amarrado à sua formação “moral”. E apesar de sempre nos dizer “Não temais”, ele recusou a proposta de Häring para reunir Institutos e Moralistas para discutir alguns dos problemas fracturantes de modo a que a Igreja fosse capaz de ter uma palavra credível e sedutora, tão indispensável, para um mundo sem norte nestes tempos, um mundo que trivializou o amor e generalizou o sexo como mero meio de comunicação pessoal e de glorificação do prazer sem limites.
Mas por outro lado tornou-o um defensor acérrimo da “dignidade inviolável de cada pessoa” que se manifesta no “respeito, defesa e promoção dos direitos humanos” fundamentais. E neste capítulo, foi o que melhor traduziu a evolução que a Igreja foi percorrendo tão lentamente desde a Revolução Francesa. Do ataque descabelado às liberdades de pensamento, de opinião, etc., tão massacradas por papas anteriores, que colocaram os direitos humanos em contraposição como os direitos de Deus, numa espécie de guerra sem quartel, João Paulo II afirmou: “O homem é criatura de Deus e, por isso, os direitos humanos têm a sua origem nele, baseiam-se no desígnio da criação e entram no plano da Redenção. Pode dizer-se, com uma expressão audaz, que os direitos humanos são também direitos de Deus. Por isso, a sua tutela e promoção pertencem ao núcleo central da missão da Igreja” (Disc. ao 31º Congresso internacional UNIV98: 7.Abr.1998).  
O ter sido operário fez dele um papa capaz de falar do trabalho como nunca ninguém falara. A encíclica Laborem Exercens e os inúmeros discursos sobre o tema trouxeram uma doutrina e conceptualizações novas, cujo filão não foi nunca devidamente explorado nem dele tiradas as devidas consequências práticas: o primado da pessoa sobre o trabalho (“o trabalho foi feito para o homem e não o homem para o trabalho”); o primado do trabalho sobre o capital.
Foi verdadeiramente audaz na defesa dos direitos humanos ou, de um modo, geral, na divulgação e na valorização da Doutrina Social da Igreja, que os católicos só não desprezavam porque a ignoravam completamente. A centralidade da pessoa esteve sempre presente nas suas intervenções de tal modo que estabeleceu uma regra que poucos (cristãos e comunidades) conhecem e ainda menos põem em prática: “Descobrir e ajudar a descobrir a dignidade inviolável de cada pessoa é a tarefa essencial, central e orientadora do serviço que a Igreja é chamada a prestar à família dos homens”. Os planos pastorais obedecem a esta regra básica!?

Muito haveria para dizer: a sua convicção, a sua alegria, a sua coragem.
Mas uma das coisas que mais me marcou foi a sua decisão de aparecer, quase até às vésperas da morte, na sua fragilidade. Foi uma lição para um mundo que exalta o corpo, mas apenas os corpos belos dos modelos, dos desportistas: a beleza física. Ele que era um desportista, que escalava montanhas, ele, que era um jovem que vendia saúde, foi-se degradando, pelas causas conhecidas, em alguém que nos últimos anos se arrastava, mas se arrastava com coragem. Era a antítese do estilo de beleza publicitada e publicada. Desmitificou esta beleza balofa que dura meia dúzia de anos. Mas também desmitificou o papa como um super-homem, mostrou a sua humanidade e fragilidade. Assumiu publicamente o seu sofrimento e dor. Mostrou as suas limitações. Não as escondeu. Não as quis esconder. Fez do Papa um ser humano como nós. Muitos o terão criticado por isso, mas para mim foi uma das grandes lições deste papa.

Se merece ser beato e santo? Não sei, porque “essas coisas” não me dizem muito. Até porque não é por ele ser beato e depois santo que será recordado. Talvez eu tenha alguma costeleta de “protestante”, mas sempre me incomodaram as pessoas que, ao visitar uma igreja, correm as capelas laterais todas, têm uma oração específica para cada santo nelas venerado, mas depois vão-se embora sem dizerem um “olá” que seja ao “patrão”, ao Deus presente que está no sacrário, que quis ficar connosco até ao fim dos tempos e que é a razão de ser da nossa fé. Talvez me falta a “cultura da cunha” e prefira dirigir-me directamente a Deus, tratá-lo como o Amor que me sustenta, discutir com Ele quando não gosto do que me acontece, tratá-lo com o à vontade de um filho a quem foi dada a permissão, pelo Filho ("Jesus Cristo”), de o tratar por Abba (Pai).
João Paulo II, o homem conservador da moral tradicional e da organização da Igreja, o homem revolucionário da moral social, o homem que arrastava multidões pelos mais variados motivos, o homem que governou uma Igreja que está fragmentada, e que ele quis unir, que não sabe responder adequadamente aos desafios de hoje, e que ele quis actualizar e actualizou em alguns aspectos.

João Paulo santo? Certamente. Até porque santos são todos os que vivem coerentemente a sua fé e procuram cumprir a “vontade do Pai que está nos céus”.


1 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Muito obrigado por esta reflexão! Ajudou-me imenso. Pedro.

4/5/11 08:53

 

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