divórcio ou casamento eterno?...

2011-05-11

SERMOS UNS COM OS OUTROS

Depois da minha parábola de Auschewitz, pareceu-me que seria oportuno referir um outro aspecto que marca a nossa mentalidade e que arranquei (intelectualmente!!!) as suas raízes na nossa herança grega. Não sei se tem alguma razão de ser este meu raciocínio até porque somos um povo velho onde se cruzam múltiplas influências e se guardam cicatrizes de muitas feridas mal curadas e de muitas vitórias deixadas a meio. 
Apesar de tudo gosto de ser português, mesmo com os nossos defeitos (até porque "quem não tem uma telha tem duas") e as nossas virtudes, que temos, às vezes, tanta preguiça para as fazer desabrochar.
Feita a introdução aí vai o artiguinho.

SERMOS UNS COM OS OUTROS 
A última crónica nasceu de uma revolta contra o facto de só se falar propostas centradas nos números frios e impessoais. Por isso falei de uma sociedade “nosista”, na qual cada um – pessoas e os grupos tribais – só vê nevoeiro à sua volta, “líquida”, que se molda a qualquer forma, e “gasosa” assimétrica, porque apenas os ricos e o capital se movem livremente por onde querem enquanto os pobres são engaiolados por muros e barreiras intransponíveis. Faz-me falta, muita falta, ouvir poetas, místicos, profetas, gente que vê para lá da fachada do imediato.
Neste contexto, quero partilhar duas ideias herdadas do mundo grego e do judaico-cristão.
Sem esquecer o quanto de bom recebemos da cultura grega, há dois aspectos que, penso, nos marcam negativamente: a “evidência” e o relacionamento com o outro. Da evidência física (não é evidente que “o Sol anda em volta da Terra”?) passámos à evidência como critério de avaliação do outro – “Parece que ele é assim! Dizem que ele disse isto!” – acreditando piamente na evidência do “diz-se que disse”. Do segundo, recordaria o mito platónico dos “seres andróginos”. No início, os seres humanos eram redondos e tinham tudo em duplicado (braços, pernas, cabeça). Fortes e arrogantes, Zeus teve que parti-los ao meio para os dominar. Ficaram, ficámos, assim, incompletos. Para recuperar a sua identidade, “o semelhante sempre do semelhante se aproxima”. É que “a nossa antiga natureza era assim e nós éramos um todo; é ao desejo e procura desse todo que se dá o nome de amor (eros)”.
Esta mentalidade marca a nossa convivência e está na origem da nossa relação com os outros. Como seres incompletos procuramos a nossa outra parte, a que mais se assemelha a nós. Esta busca da parte perdida, que dá sentido à nossa vida, apenas se encontra entre os meus semelhantes, os que se identificam comigo. No limite, deixa-me sem espaço para o outro, para o diferente, que, assim, perde a sua importância para mim.
                A tradição judaico-cristã, pelo contrário, condena o julgamento pelas aparências e pelo que se ouve dizer (Is 11,3). A procura do semelhante é substituída pela eleição entre vida e morte, bem e mal, bênção e maldição (Dt 30,15.19), que passa pelo “amarás o próximo como a ti mesmo” (Lev 19,18). Pode ainda subsistir a dúvida legítima, de se esta atitude é muito diferente da grega, já que “próximo” é o que pertence ao meu grupo. Mas Jesus termina com as dúvidas: contrapõe ao “odiarás o inimigo” a exigência do “amai os vossos inimigos” (Mt 5,43.44) e denuncia o sacerdote e o levita, por trocar o serviço ao outro pelo serviço à Lei e ao Templo. O modelo não está na fidelidade cultual desumana, mas na atitude do samaritano, herético mas humano, porque abandona tudo, para cuidar do outro. Esta parábola torna-nos próximos de todos, estilhaçando as fronteiras da nossa tribo ou grupo de amigos. Aquele farrapo humano à beira do caminho é sempre o Outro cujo acolhimento, ou não, define o sentido da minha vida. As vítimas da História são a chave do progresso da Humanidade e da sua libertação definitiva.
                Na tradição grega, o critério da “humanidade”, da felicidade, é a semelhança. Isto é, “o segredo da felicidade está em encontrar o (meu) semelhante, o outro como projecção de mim mesmo” (J.G. Roca), como a metade que me falta para me completar. E, porque só me realizo através dos semelhantes, os outros só vêm baralhar e destruir a minha identidade e felicidade. Portanto, passo a ignorá-lo, a combatê-lo e até a excluí-lo. Esta é a base real do “racismo”.
                A tradição cristã assume do eros a capacidade de busca, mas mostra a necessidade de sair de si mesmo e se transformar em ágape: “Eros e ágape nunca se deixam separar completamente um do outro. Quanto mais os dois encontrarem a justa unidade, embora em distintas dimensões, na única realidade do amor, tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral. Embora o eros seja inicialmente sobretudo ambicioso — fascinação pela grande promessa de felicidade — depois, à medida que se aproxima do outro, far-se-á cada vez menos perguntas sobre si próprio, procurará sempre mais a felicidade do outro, preocupar-se-á cada vez mais dele, doar-se-á e desejará «existir para» o outro. Assim se insere nele o momento da agape; caso contrário, o eros decai e perde mesmo a sua própria natureza. Por outro lado, o homem também não pode viver exclusivamente no amor oblativo. Não pode limitar-se sempre a dar, deve também receber.” (DCE 7). É assim que o agape, amor gratuito e oblativo, “salva” o eros.
Ficar-se pela semelhança, como faz o eros, é acreditar que a felicidade só pode acontecer no encontro com os iguais, fazendo dos diferentes silhuetas que atiro para o nevoeiro em que me embrulho e põe em perigo o casulo onde me fecho com os meus semelhantes. Mas ao transcender o eros com o ágape, “o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro. Já não se busca a si próprio, não busca a imersão no inebriamento da felicidade; procura, ao invés, o bem do (outro) amado: torna-se renúncia, está disposto ao sacrifício, antes procura-o” (DCE 6).
Tempo de crise, tempo de encruzilhadas, tempo de opções: ou nos abrimos, com confiança, à riqueza e à pluralidade dos talentos de todos os outros, os diferentes, ou ficamos confinados à fortaleza tão débil e mesquinha do nosso clã e, cada vez mais empobrecidos, acabamos por nos cobrir com a poeira da inutilidade e da incapacidade de contribuir para a construção da História.

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