divórcio ou casamento eterno?...

2011-06-11

Está a nossa sociedade preparada para as crianças?

Vivemos numa sociedade em que sentimos que cada vez menos se valoriza e considera a pessoa, seja ela qual for. Mas há faixas etárias mais ignoradas: os idosos, apesar do seu muito saber de experiência feito já não têm qualquer estatuto e as crianças, a quem ninguém dá o estatuto devido. Algumas são verdadeiramente amadas pelos pais e tenho a sensação de que são cada vez mais; outras são compradas pelos pais sobretudo quando estão divorciadas. Mas quando olhamos para a nossa legislação vemos que não há grande consideração legal por elas. Outros valores mais altos se “alevantam”, como aliás referia o artigo que aqui reproduzi no último post.
Falta referir o outro colectivo – os jovens licenciados – que andam por aí a poluir esquinas porque não há espaço para eles. Mas aqui, também quero fazer uma ressalva. É evidente que o nosso ensino não estimula a criatividade nem a capacidade de arriscar nem utiliza o velho método socrático – a arte maiêutica – que consistia em fazer desabrochar, dar à luz (a sua mãe era parteira) os muitos talentos em potência que os jovens têm e só esperam por ser estimulados e trazidos à luz do dia. Dito isto e reconhecida esta dificuldade quase congénita, também verificamos que muitos ficam de braços cruzados à espera que a banana lhes caía da bananeira. Conheço alguns que se atiraram para a frente, puxaram pelos seus galões, tomaram a iniciativa, sonharam projectos, converteram-nos em realidade concreta, tiveram dificuldades, mas a maior parte singra na vida e até, com meia dúzia de amigos, estão a exportar o produto do seu trabalho.

Mas voltemos às crianças. Aqui deixo o meu último artigo, onde desafio a sociedade e a Igreja a tomarem a sério as crianças.

TODA A CRIANÇA É PESSOA
Nesta última semana em que a cavalgada eleitoral trouxe a alguns as últimas alegrias antes de entráramos na real realidade dura e violenta que nos espera, aconteceu, como por acaso, o Dia da Criança. Das várias iniciativas, queria destacar a criação, por especialistas em direito da família, de uma associação inédita para dar voz às crianças na barra dos tribunais.
Congratulo-me vivamente com esta iniciativa, pois tenho a sensação, como muitos outros, que as crianças não estão na primeira linha das opções, mesmo jurídicas, muito mais preocupadas em defender o direito dos pais, em “fazer variações” sobre o direito paternal, a responsabilidade parental, a guarda parental, em guiar-se pelas emoções na luta entre os pais biológicos e os pais adoptivos, os longos e imorais processos de adopção, a custódia de filhos de casamentos entre pessoas de diferentes nacionalidades que entretanto se divorciam ou fogem com os filhos, um direito que parece favorecer quem adopta, mas ignora quem devia ser adoptado. Uma salgalhada legislativa que nunca honra a criança. Por isso, bem-vindo seja um Código da Criança, que pense prioritariamente na criança, no seu bem, nos seus interesses, já que, pelo que se li na altura, tal Código não existe, no ordenamento jurídico português.
Depois há a própria (in)sensibilidade dos pais que se divorciam e para quem as crianças são um encargo de que se devem desfazer ou um troféu por que devem lutar até à morte. Encargo ou troféu que não são coisas, mas pessoas com igual dignidade dos pais e com igual ou maior direito a serem defendidos pela sociedade de um conjunto de egoístas, que convocam testemunham, pagam bem a advogados para ganhar em termos de propriedade. Como denuncia um advogado: "Há testemunhas dos pais e das mães, mas quem é a voz da criança? É preciso uma participação maior do menor, quer de forma directa, através da sua audição em tribunal, quer através das pessoas que estão em contacto com ela, como professores ou educadores". Depois vemos movimentos tipos Pró-Vida, para quem a vida, por vezes, parece só ter valor na “barriga da mãe”. Desde que saiam “cá para fora”, o resto seja o que Deus quiser.
Trata-se no fundo de continuar uma longa tradição melhorada lentamente. A mentalidade greco-romana dava o poder absoluto ao pai, que dispunha até da vida dos filhos. Não fora a sua necessidade para garantir a continuação da espécie possivelmente eram todos eliminados. A cultura judaica, embora considerassem os filhos uma bênção de Deus, não lhe atribuía nenhuma importância social nem sequer religiosa, a não ser para algum sacrifício de fundação do Templo, como os filhos de Hilel em Jericó (1Rs 16,34) ou para garantir a sobrevivência do trono como o filho do rei Acab que, quando subiu ao trono, “imitando o comportamento de outros reis de Israel, sacrificou o seu filho na fogueira, conforme os costumes abomináveis das nações que o Senhor expulsara diante dos israelitas” (2Rs 16,2-3). Não seria a regra geral, mas o que é certo é que Deus teve que pôr cobro a essa situação dos pais sacrificarem os filhos, como mostra o episódio de Abraão e Isaac (Gn 22,13).
Jesus introduziu uma verdadeira ruptura no modo como entender as crianças. “Quem não receber o reino dos céus como uma criança não entrará nele” (Mc 10,15). Portanto, as crianças são o modelo, indicam o modo como cada cristão pode entrar no Reino de Deus. Não porque as crianças possam assumir propositadamente uma posição a favor do Reino, mas porque diante do Deus só o estado de “menoridade” é que conta. É este aspecto que Jesus quer destacar: como o Reino de Deus é graça (gratuidade) é dom, só as crianças têm um coração suficientemente livre para acolher o gratuito. Como o Reino de Deus nunca é “merecido”, isto é, não depende dos nossos méritos, só um coração de criança é capaz de o acolher sem reservas nem condições.
É esta disponibilidade que os torna não só capazes de entrar no Reino de Deus mas também de receber a revelação de Deus: “Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelastes aos pequeninos” (Lc 10,21).
Ora, como aconteceu por vezes, a própria Igreja preferiu às palavras de Jesus as recomendações dos “códigos domésticos” das Epístolas, que exortam as crianças a obedecerem aos pais e os pais a não provocarem a ira de seus filhos (por ex., Col 3.20-21; Ef 6.1-4), parecendo esquecer que Deus as ama especialmente e que as devemos acolher como acolhemos Deus: “Quem acolhe uma criança a Mim acolhe”. É urgente retomar a radicalidade do ensino de Jesus. As crianças não estão apenas subordinadas aos adultos, partilham com eles a sua vida e a sua fé; não devem ser apenas formadas, mas imitadas; não são apenas ignorantes, mas capazes de discernimento espiritual; não são “apenas” crianças, mas representantes de Cristo. “O que torna o desafio tão difícil é que Jesus requer a mudança não apenas da forma como os adultos se relacionam com as crianças, mas do modo como concebemos nosso mundo social. Ele não apenas ensinou como fazer um mundo adulto mais justo e agradável para as crianças; ele também ensinou o nascimento de um mundo social em parte definido e organizado em relação às crianças. Ele pôs em julgamento o mundo adulto porque não é o mundo das crianças” (Gundry-Volf).




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