E já esquecemos
Reproduzo aqui a minha crónica publicada hoje no Diário de Coimbra, sobre um episódio verdadeiramente desumano que aconteceu na Covilhã. Não sei quantos mais haverá por aí, mas curiosamente aquele exemplo de denúncia de situações degradantes não deu origem a mais nenhuma. Será que só existia aquela em Portugal?
Então aí vai.
A ESCRAVATURA AINDA
EXISTE
As imagens entraram pela casa dentro com a
violência inacreditável de uma realidade que parece ter saltado do passado
negreiro para se instalar no nosso quotidiano. Na Covilhã, sessenta pessoas
africanas estavam, há dois meses, a ser tratadas como animais: num edifício
velho, para passar despercebido, sem água, nem luz, nem esgotos. Um garrafão de
cinco litros de água tinha de dar para a comida e para tomar banho.
Estas imagens quase todos vimos, comentámos e
depois silenciámos. Parece já fazer parte de uma história onde tudo cabe e onde
tudo se esquece. A rotina de uma sociedade sem valores éticos assentes na
dignidade da pessoa justifica as situações e o esquecimento. Mas não há
consequências nem lições a retirar? É isto natural?
Gostaria de deixar apenas três notas.
As empresas envolvidas foram “lavando” as mãos,
recusando responsabilidades. A PT contrata o consórcio Opway-Somague que
subcontratou a uma outra empresa, que terá ainda subcontratado, assim diluindo
a responsabilidade. Certamente, a última da lista decidiu alojar aqueles trabalhadores naquele barracão para não
ficarem à chuva. Não sei se os trabalhadores pagam algum aluguer por tais
instalações. Como é possível esta irresponsabilidade em dominó? A PT não
tem nada a ver com esta obra? E o Opway-Somague? A maioria das empresas e
cidadãos alemães também não tiveram nada a ver directamente com Auschwitz. Portanto,
deve perguntar-se: Onde está a responsabilidade social das empresas? Ou basta
ir descartando responsabilidades para cima de outros? Quem é o principal
beneficiário da obra? Todas as empresas vão ganhando com a exploração destes
homens, porque a escolha do subempreiteiro é sempre pelo menor preço. Como é
possível haver empresário sem quaisquer escrúpulos morais que dormem
descansados escravizando outras pessoas? O que irá suceder às empresas envolvidas, aos empreiteiros e aos
subempreiteiros? Nada?
O ministro
Pedro Mota Soares diz que actuará se existirem casos graves. O que são casos
graves, para quem está no alto do poder? Será necessário nomear alguma
comissão de inquérito para clarificar o assunto? E irá descobrir que alguns
deles são “ilegais”, o que é muito grave, pelo que terá de se exigir o seu
repatriamento. Veremos! Mas, apesar de infeliz esta observação, é evidente que
não se pode acusar o ministro desta situação. O Ministério do Trabalho tem organismos
e competências para fiscalizar e detectar estas situações. Estão estes
organismos a actuar diligentemente? E possuem meios suficientes? E quem
fiscaliza as condições dos trabalhadores que vivem fora dos estaleiros? Há uma
especial atenção aos emigrantes, terreno fértil para o aparecimento de
situações de exploração, redução de direitos e até também de escravatura?
Mas há um terceiro actor fundamental. Dada a falta
de escrúpulos de tantos empresários e a impossibilidade de fazer uma adequada
fiscalização em todas as obras, torna-se insubstituível o papel da comunidade,
sobretudo da comunidade de vizinhança. Nada nem ninguém pode substituí-la. São
os vizinhos quem melhor pode detectar estas situações e depois denunciá-las às
instâncias apropriadas. Mas falta-nos muito essa preocupação cívica. Um
funcionário de um supermercado reconheceu que suspeitara de qualquer coisa
quando via aquelas pessoas sujas vir quase todos os dias fazer compras, mas
reconheceu que falhou na sua responsabilidade cívica, certamente mais por
inércia do que convicção.
Quantas situações destas estarão a acontecer só
porque nós, cada um de nós, como vizinhos, não estamos atentos? Aliás, veja-se
a rapidez com que os trabalhadores foram “bem” instalados (mas por quanto
tempo?), logo que a situação se tornou pública.
Quando perceberemos que “todos somos
verdadeiramente responsáveis por todos” (João Paulo II) e que ninguém nos pode
libertar dessa obrigação se queremos construir uma sociedade cada vez mais
humana?
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