divórcio ou casamento eterno?...

2012-11-23

Um exemplo bíblico

Gostaria de voltar às “confusões” que me foram muito importantes, como já disse, para o meu crescimento interior, para a minha aproximação de Deus.
Veja-se a descrição da Aliança de Deus com Abraão. Há dois relatos da mesma Aliança. Um da tradição javista (Gn 15); outra da tradição sacerdotal (Gn 17). O escrito javista (J) é a primeira fixação em escrita de uma longa tradição oral e apareceu entre 850 e 750 aC. Chama-se Javista porque habitualmente utiliza o termo Javé para designar Deus. O escrito sacerdotal (P, do alemão Priesterkodex, código sacerdotal), que apareceu depois do Exílio, é uma compilação iniciada por um grupo de sacerdotes e ultimada com a reforma de Esdras (450 aC).

Primeira narração (Gn 15,1-20):
1Depois destes acontecimentos, Abrão recebeu, em visão, a palavra do Senhor que lhe disse:
- Não temas Abrão: eu sou o teu escudo e a tua recompensa será abundante.
2Abrão respondeu:
- Senhor, de que me servem os teus dons se sou estéril e Eliezer de Damasco será o amo da minha casa?
3E acrescentou:
- Não me destes filhos e um criado de minha casa será o meu herdeiro.
4Mas Deus disse-lhe o seguinte:
- Não será esse o teu herdeiro; um saído das tuas entranhas te herdará.
5E Deus, levando-o para fora, disse-lhe:
- Olha o céu; conta as estrelas se puderes.
E acrescentou:
- Assim será a tua descendência.
6Abrão creu em Deus e Deus lho imputou como justiça.
7Deus disse-lhe:
- Eu sou o Senhor que te tirou da terra de Ur dos Caldeus para te dar esta terra em posse.
8Mas Abrão retrucou:
- Senhor, como saberei que vou possuí-la?
9Respondeu o Senhor:
- Traz-me uma novilha de três anos, uma cabra de três anos, um carneiro de três anos, uma rola e um pombinho.
10Abrão trouxe-os e partiu-os ao meio colocando uma metade frente da outra, mas não partiu a rola nem o pombinho. Os abutres desceram sobre os cadáveres e Abrão enxotava-os…
17O Sol pôs-se e ficou escuro; uma labareda fumegante e um archote ardente passaram por entre os membros cortados.
18Naquele dia, o Senhor fez aliança com Abrão, nestes termos:
- Aos teus descendentes darei esta terra, desde o rio do Egipto até ao Grande Rio, o Eufrates…
Antes de passar à segunda narração, um pequeno comentário este Deus que deve ter parecido paradoxal (como as minhas “confusões”!) a Abraão, pois queria que ele aceitasse: um casal estéril a ter filhos; a ele que abandonara tudo em Ur e desprezara o ouro de Sodoma, era-lhe assegurada uma terra. Mas quando? Quando Deus o decidir: o momento é de Deus não é do homem. A fé exige muito e, às vezes, até o absurdo. Não admira, pois que S. Paulo apresente Abraão como modelo do crente: “Abraão, esperando contra toda a esperança, acreditou que haveria de se tornar pai de muitas nações” (Rom 4,18).

Segunda narração (Gn 17,1-14):
1Quando Abrão tinha noventa e nove anos, apareceu-lhe o Senhor e lhe disse:
- Eu sou o Deus Todo-poderoso; anda na minha presença e sê perfeito. 2Farei uma aliança contigo: farei que te multipliques sem medida.
3Abrão caiu de rosto em terra e deus falou-lhe assim:
- 4Eis a minha: tornar-te-ei pai de uma multidão de povos. 5De agora em diante, não te chamarás Abrão, mas Abraão, porque te faço pai de uma multidão de povos. 6Far-te-ei fecundo sem medida, saindo de ti povos e reis nascerão de ti. 7Manterei o meu pacto contigo e com a tua descendência em futuras gerações, como uma aliança perpétua. Serei o teu Deus e dos teus descendentes depois de ti… 10Eis aminha aliança convosco e que deveis guardar: circuncidai todos os varões de entre vós.

Comparando as duas versões vemos como são muito diferentes.
Na primeira, temos um Deus mais próximo, mais “humano”: entra em diálogo com Abraão; “permite” até que Abraão o interpele, que duvide do que lhe está a ser prometido (v.2: “de que servem os teus dons se sou estéril?”; v. 8: Como saberei?). Pode perguntar-se se Abraão, com estas dúvidas todas, pode ser modelo do crente. Mas quem disse que a fé é incompatível com as dúvidas. Poderá haver fé sem dúvidas? A isso voltarei.
Na segunda temos um Deus, que se apresenta como o “Todo-poderoso”, que não dialoga, que é normativo (vários imperativos). É um Deus distante, perante o qual Abraão não só não fala, como cai por terra, numa espécie de teofania, menos grandiosa que a do Sinai, mas de qualquer maneira uma manifestação na qual Abraão tem de esconder a cara: “caiu de rosto no chão”. Uma atitude que vai aparecer em Moisés que não pode ver para lá da sarça ardente (“Não te aproximes”), porque é terreno sagrado (tem de descalçar os sapatos) e porque ninguém pode ver Deus directamente: “Moisés cobriu o rosto, temendo olhar para Deus” (Ex 3,5.6).
Também na primeira narração há uma referência que aponta para uma teofania (1 versículo em 20: o fogo que passa pelos animais sacrificados). De qualquer modo o que predomina é o diálogo eu-tu. Por curiosidade acrescentaria que sendo “deuteronómica” a segunda versão teria de apresentar umarito: a circuncisão.

Deus é pois simultaneamente o Pai que me ama, que fala comigo, me trata por tu e que sabe o meu nome, mas também o Grande Mistério que eu nunca posso conhecer na totalidade. Por isso, disse que estas minhas “confusões” ajudam-me continuamente a ir purificando o Deus em quem acredito.
Vou terminar, dando a palavra do místico do século XVII (1624-1676), Angelus Silesius (da Silésia). Um dos seus pensamentos, que é um hino à gratuitidade, influenciou certamente muita gente, mas especialmente o escritor J. Luís Borges, como ele próprio confessou: “A rosa é sem porquê / Floresce porque floresce / Não olha para si mesma / Não pergunta se a olham / E sorri para o Universo / A rosa é sem porquê”.
Pois Angelus Silesius fala assim de Deus:
“O que é Deus não sabemos. Ele não é nem luz, nem espírito, nem verdade, nem unidade, nem o que chamamos divindade, nem sabedoria, nem razão, nem amor, nem bondade, nem coisa, nem inexistência tão-pouco, nem essência ou afecto. Ele é o que nem eu, nem tu, nem criatura alguma jamais experimentam senão tornando-se o que Ele é” (1).

(1) Recolhi esta citação sobre Deus no excelente livro de Tolentino Mendonça, O Pai-nosso que estais na Terra (Paulinas; 2011). Além da sua qualidade é também uma grande fonte de citações.

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