Um exemplo bíblico
Gostaria de voltar às “confusões” que me foram muito importantes, como já disse, para o meu crescimento interior, para a minha aproximação de Deus.
Veja-se a descrição da Aliança de Deus com Abraão. Há dois relatos da
mesma Aliança. Um da tradição javista (Gn 15); outra da tradição sacerdotal (Gn
17). O escrito javista (J) é a primeira fixação em escrita de uma longa
tradição oral e apareceu entre 850 e 750 aC. Chama-se Javista porque
habitualmente utiliza o termo Javé para designar Deus. O escrito sacerdotal (P,
do alemão Priesterkodex, código
sacerdotal), que apareceu depois do Exílio, é uma compilação iniciada por um
grupo de sacerdotes e ultimada com a reforma de Esdras (450 aC).
Primeira narração (Gn
15,1-20):
1Depois
destes acontecimentos, Abrão recebeu, em visão, a palavra do Senhor que lhe
disse:
- Não temas
Abrão: eu sou o teu escudo e a tua recompensa será abundante.
2Abrão
respondeu:
- Senhor, de que
me servem os teus dons se sou estéril e Eliezer de Damasco será o amo da minha
casa?
3E
acrescentou:
- Não me destes
filhos e um criado de minha casa será o meu herdeiro.
4Mas Deus
disse-lhe o seguinte:
- Não será esse o
teu herdeiro; um saído das tuas entranhas te herdará.
5E
Deus, levando-o para fora, disse-lhe:
- Olha o céu; conta
as estrelas se puderes.
E acrescentou:
- Assim será a
tua descendência.
6Abrão
creu em Deus e Deus lho imputou como justiça.
7Deus disse-lhe:
- Eu sou o Senhor
que te tirou da terra de Ur dos Caldeus para te dar esta terra em posse.
8Mas
Abrão retrucou:
- Senhor, como
saberei que vou possuí-la?
9Respondeu
o Senhor:
- Traz-me uma
novilha de três anos, uma cabra de três anos, um carneiro de três anos, uma
rola e um pombinho.
10Abrão
trouxe-os e partiu-os ao meio colocando uma metade frente da outra, mas não
partiu a rola nem o pombinho. Os abutres desceram sobre os cadáveres e Abrão
enxotava-os…
17O
Sol pôs-se e ficou escuro; uma labareda fumegante e um archote ardente passaram
por entre os membros cortados.
18Naquele
dia, o Senhor fez aliança com Abrão, nestes termos:
- Aos teus
descendentes darei esta terra, desde o rio do Egipto até ao Grande Rio, o
Eufrates…
Antes de passar à segunda narração, um pequeno comentário este Deus
que deve ter parecido paradoxal (como as minhas “confusões”!) a Abraão, pois
queria que ele aceitasse: um casal estéril a ter filhos; a ele que abandonara
tudo em Ur e desprezara o ouro de Sodoma, era-lhe assegurada uma terra. Mas
quando? Quando Deus o decidir: o momento é de Deus não é do homem. A fé exige
muito e, às vezes, até o absurdo. Não admira, pois que S. Paulo apresente
Abraão como modelo do crente: “Abraão, esperando contra toda a esperança,
acreditou que haveria de se tornar pai de muitas nações” (Rom 4,18).
Segunda narração (Gn
17,1-14):
1Quando
Abrão tinha noventa e nove anos, apareceu-lhe o Senhor e lhe disse:
- Eu sou o Deus
Todo-poderoso; anda na minha presença e sê perfeito. 2Farei uma
aliança contigo: farei que te multipliques sem medida.
3Abrão
caiu de rosto em terra e deus falou-lhe assim:
- 4Eis
a minha: tornar-te-ei pai de uma multidão de povos. 5De agora em
diante, não te chamarás Abrão, mas Abraão, porque te faço pai de uma multidão
de povos. 6Far-te-ei fecundo sem medida, saindo de ti povos e reis
nascerão de ti. 7Manterei o meu pacto contigo e com a tua
descendência em futuras gerações, como uma aliança perpétua. Serei o teu Deus e
dos teus descendentes depois de ti… 10Eis aminha aliança convosco e
que deveis guardar: circuncidai todos os varões de entre vós.
Comparando as duas versões vemos como são muito diferentes.
Na primeira, temos um Deus mais próximo, mais “humano”: entra em
diálogo com Abraão; “permite” até que Abraão o interpele, que duvide do que lhe
está a ser prometido (v.2: “de que servem os teus dons se sou estéril?”; v. 8: Como
saberei?). Pode perguntar-se se Abraão, com estas dúvidas todas, pode ser
modelo do crente. Mas quem disse que a fé é incompatível com as dúvidas. Poderá
haver fé sem dúvidas? A isso voltarei.
Na segunda temos um Deus, que se apresenta como o “Todo-poderoso”, que
não dialoga, que é normativo (vários imperativos). É um Deus distante, perante
o qual Abraão não só não fala, como cai por terra, numa espécie de teofania,
menos grandiosa que a do Sinai, mas de qualquer maneira uma manifestação na
qual Abraão tem de esconder a cara: “caiu de rosto no chão”. Uma atitude que
vai aparecer em Moisés que não pode ver para lá da sarça ardente (“Não te
aproximes”), porque é terreno sagrado (tem de descalçar os sapatos) e porque
ninguém pode ver Deus directamente: “Moisés cobriu o rosto, temendo olhar para
Deus” (Ex 3,5.6).
Também na primeira narração há uma referência que aponta para uma
teofania (1 versículo em 20: o fogo que passa pelos animais sacrificados). De qualquer modo o que predomina
é o diálogo eu-tu. Por curiosidade acrescentaria que sendo “deuteronómica” a
segunda versão teria de apresentar umarito: a circuncisão.
Deus é pois simultaneamente o Pai que me ama, que fala comigo, me
trata por tu e que sabe o meu nome, mas também o Grande Mistério que eu nunca
posso conhecer na totalidade. Por isso, disse que estas minhas “confusões”
ajudam-me continuamente a ir purificando o Deus em quem acredito.
Vou terminar, dando a palavra do místico do século XVII (1624-1676),
Angelus Silesius (da Silésia). Um dos seus pensamentos, que é um hino à
gratuitidade, influenciou certamente muita gente, mas especialmente o escritor J.
Luís Borges, como ele próprio confessou: “A rosa é sem porquê / Floresce porque
floresce / Não olha para si mesma / Não pergunta se a olham / E sorri para o
Universo / A rosa é sem porquê”.
Pois Angelus Silesius fala assim de Deus:
“O que é Deus não sabemos. Ele não é nem luz, nem espírito, nem
verdade, nem unidade, nem o que chamamos divindade, nem sabedoria, nem razão,
nem amor, nem bondade, nem coisa, nem inexistência tão-pouco, nem essência ou
afecto. Ele é o que nem eu, nem tu, nem criatura alguma jamais experimentam
senão tornando-se o que Ele é” (1).
(1) Recolhi esta citação sobre Deus no excelente livro de Tolentino
Mendonça, O Pai-nosso que estais na Terra
(Paulinas; 2011). Além da sua qualidade é também uma grande fonte de citações.
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