Salmo 29
Nem todas as notas que fui escrevendo se referem ao meu tempo de menino e moço, mas a propósito de cada tópico fui avançando e recuando.
Hoje quero voltar atrás e procurar descrever algumas consequências
dessa minha reflexão da juventude. E apontaria duas, para já: a revalorização
do Antigo Testamento (AT) e o aprofundamento da fé.
Para iniciar esta nota sobre o AT vou reproduzir o salmo 29:
1Filhos
de Deus, aclamai o Senhor;
aclamai
a glória e o poder do Senhor;
2aclamai
a glória do nome do Senhor
prostrai-vos
diante do Senhor com pompa sagrada.
3A voz
do Senhor sobre as águas,
trovejou
o Deus da glória,
o
Senhor sobre a imensidade das águas;
4a voz
do Senhor é poderosa,
a
voz do Senhor é majestosa;
5a voz
do Senhor despedaça os cedros,
o
Senhor despedaça os cedros do Líbano;
6faz
saltar o Líbano como um novilho
e
o Sarion como uma cria de búfalo;
7a voz
do Senhor lança chispas de fogo,
8a voz
do Senhor faz tremer o deserto,
o
Senhor faz tremer o deserto de Cades;
9a voz
do Senhor retorce os carvalhos,
o
Senhor desfolha as selvas.
No
seu templo surge um grito unânime: “Glória!”
10O
Senhor está sentado sobre as águas diluvianas
o
Senhor está sentado como rei eterno.
11O
Senhor dá força ao seu povo,
o
Senhor abençoa o seu povo com a paz.
Quando me lembrava do Deus da minha primeira comunhão, o que ficava
muito ofendido por “tocarmos com a hóstia nos dentes”, era este salmo que me
parecia o mais adequado para o descrever. O Deus da minha meninice era o Deus
do salmo 29 e, por extensão, o Deus do AT. Este salmo metia-me medo. Este medo
era ainda mais sentido porque eu tinha muito medo das trovoadas. A partir dos 3
anos vivi junto de uma central eléctrica e da sub-estação respectiva e aí as
trovoadas eram muito tenebrosas. As “máquinas” produtoras de electricidade
”embalavam” (aumentavam as suas rotações) aumentando o seu barulho já de si
quase ensurdecedor. Na sub-estação, descargas eléctricas originavam labaredas
nalguns aparelhos. Barulho a mais, estoiros, fogachos construíam um cenário
dantesco para um miúdo de tenra idade. Recordo-me perfeitamente de, mal via
aparecer umas nuvens negras (“de trovoada”), pegar no terço e desfiar
rapidamente as Avé-marias em frente de um quadro encaixilhado de Nossa Senhora.
E, enquanto rezava oração atrás de oração, ia espreitando para o reflexo das
nuvens no vidro do quadro, esperando ansiosamente que a cor das nuvens mudasse.
E, logo que ficassem claras ou se atenuasse o negro carregado da tempestade,
parava a minha devota oração. Interesseiro!!!
Não admira, pois, que este salmo me fizesse uma impressão tão indelével que ainda hoje, ao lê-lo, recordo essa angústia da minha infância.
Talvez a maior de todas. Maior ainda que aquela que senti, quando a minha mãe ao
ver, numa noite, o meu corpo marcado me disse: “Tens sarampo!”. Fiquei muito
aflito, porque ouvira dizer que o sarampo só se “apanhava uma vez”. E como eu já
o tivera uma vez, a conclusão lógica era a de que ia morrer.
Mais tarde ao ler vários comentários a este Senhor, percebi
rapidamente que não tinha jeito para exegeta. Afinal tratava-se de um hino de louvor
a Javé, verdadeiro Deus cósmico que dominava, ou melhor, era capaz de
desencadear os elementos da natureza sentado calmamente sobre as águas. Mas não
foi esse “desaire intelectual (e não só)” que me retirou o gozo de saborear a
Palavra de Deus, mesmo quando não a entendia bem, pois ela é sempre palavra de vida eterna. Temos é de nos
esforçar por lê-la com o coração. Claro que eu gostaria de ir mais longe. Mas
para interpretar bem a Sagrada Escritura é preciso conhecer os textos e os
contextos. Para quem não os conhece bem, vale sempre aquela palavra de
Jesus: “Eu te bendigo, ó Pai, senhor do céu e da terra, porque escondeste estas
coisas aos sábios e aos entendidos e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11,25).
Mas, mais uma vez, tenho de me socorrer dos peritos. E eles ajudaram-me: sábios
e entendidos refere-se aos doutores da lei, que pensavam que nada tinham a
aprender de uma pessoa humilde como Jesus. A sua pretensão de ser sábios fechava-lhes
os olhos, os ouvidos e a inteligência à presença de Deus em Jesus de Nazaré. Ao
fazer esta afirmação, Jesus punha em causa e desafiava a autoridade social e
religiosa dos peritos na Lei e, mais uma vez, propõe um ensinamento que
contradiz as ideias correntes no judaísmo de que são precisamente os sábios e
os inteligentes que recebem a revelação. Aos referir-se aos pequeninos não quer
apresentar a ignorância como uma virtude querida por Deus mas mostrar a
indispensabilidade de sermos como crianças: abertas, sinceras e confiantes.
Para muitos, este salmo 29 terá sido inspirado, ou melhor, adaptado de
“um antigo hino cananeu em honra de Baal”, deus da tempestade, que foi
radicalmente reinterpretado para se tornar num hino a Javé. Realmente a palavra "Javé" aparece 18 vezes (7 na expressão “a voz de Javé”), havendo, no final, uma
identificação com o Deus de Israel, “o seu povo”. Pode ter aparecido como
resposta a uma pergunta habitual na época: “Qual é o deus verdadeiro: o nosso
ou o dos pagãos?”.
Daqui também se deve retirar uma lição histórica: o judaísmo e mais
tarde o cristianismo, nos primeiros séculos, sempre souberam “traduzir” a Palavra
de Deus na linguagem de cada época, recuperando episódios ou festas “pagãs”. Mas
nos últimos séculos, os hierarcas adaptaram uma posição defensiva, indo muitas
vezes a reboque da história e das mudanças da sociedade, perdendo muita da sua
capacidade e sabedoria para influenciar o desenrolar dos acontecimentos. Uma
das grandes dificuldades da Igreja hoje é a de traduzir em linguagem do nosso
tempo as verdades e a Pessoa de Jesus Cristo de modo a que os homens e mulheres
de hoje as entendam. Há que rever a linguagem não só do ponto de vista formal (a
maneira simples e clara de se expressar), mas também de conteúdo: traduzir em
palavras e conceitos de hoje os velhos dogmas e as velhas normativas já tão
desajustadas no nosso tempo. Era bom regressar à simplicidade de expressão de
Jesus, que “seduzia” as pessoas, que ficavam maravilhadas com o que Ele dizia e
como o diz, apesar da radicalidade das suas propostas que obrigavam os ouvintes
a fazer opções. Por isso, alguns o abandonaram porque tinha “palavras duras” (Jo
6,60); o jovem foi embora triste porque era muito rico e Jesus lhe mandara
vender tudo e dá-lo aos pobres (Mt 16,22). Devido a esta dificuldade de comunicação
corre-se o risco de afastar os cristãos de base do Magistério, deixando-o
muitas vezes sem feed-back daqueles que vivem e conhecem os problemas reais de cada
época e acabando por originar uma Igreja a duas velocidades. Assim, correm um
outro risco: o de ficarem presos no Monte Tabor. “Nascia a sociedade burguesa e os homens da Igreja, separados do povo,
defendiam as sociedades aristocráticas. Nasciam as sociedades nacionais e
democráticas e os homens da Igreja, separados do povo, defendiam os monarcas e
o concerto europeu saído do congresso de Viena. Nascia a sociedade industrial e
os homens da Igreja, separados do povo, elogiavam e defendiam a sociedade
agrícola. Nascia a sociedade científica e os homens da Igreja, separados do
povo, só viam os riscos das ciências para a fé e a vida cristã. Tenta nascer a
sociedade em que a mulher seja verdadeiramente igual ao homem e os homens da
Igreja, separados do povo, parecem cortejar ainda uma cidade em que o primeiro posto
corresponda ao homem varão. Tudo isto, porque separados do povo, fechados numa
atmosfera sacral ou burocraticamente mundana apesar das aparências espirituais
e vítimas de um eficientismo eclesiástico, que não é por ser tecnologicamente
moderno que está mais próximo do Evangelho, carecemos dos meios de compreensão
e discernimento, de simpatia real para compreender, isto é, para discernir e
depois interpretar os acontecimentos” (G. Gennari).
O poema avança rapidamente com mudanças abruptas de cenário. Um dos
comentários que li avança uma observação curiosa. É como se o autor conhecesse
“a mecânica vibratória do som”. Trata-se de um fenómeno chamado “ressonância”
que tem aplicação em várias áreas do saber. A ressonância é um processo que
autoamplia as vibrações ou oscilações de um objecto induzidas pelas vibrações de
outro. Quando se encontram, as vibrações como que actuam em uníssono adquirindo
amplitudes cada vez maiores. Talvez um exemplo torne isto mais claro. Uma
companhia de soldados não pode marchar sobre um ponte, porque a cadência sempre
exacta das sapatadas no tabuleiro da ponte pode assemelhar-se à cadência das
vibrações naturais de ponte, que começa a oscilar cada vez mais até que pode
ruir. Há quem diga que tal fenómeno aconteceu com um regimento de Napoleão e a
partir daí os soldados deixam de marchar alinhados nas pontes. Mas o que não é
lenda foi o que aconteceu, em 7.Nov.1940, com a ponte sobre o
estreito de Tacoma, em S. Francisco. Aqui a causa foi o vento. A partir de uma certa vibração, o
vento entrou em ressonância com a ponte e esta caiu. Pode ver imagens no youtube.
Sons musicais, quer de órgãos, por exemplo, ou até de alguns cantores, podem
partir os vidros da sala de concertos se estes não estiverem preparados para
evitar o fenómeno.
Mas o autor do salmo 29 não podia
estar a aplicar um princípio da física que desconhecia. Contudo o comportamento do
Líbano assemelha-se de alguma maneira a este fenómeno: as vibrações da “voz de
Javé” eram tais que o Líbano, entrando em ressonância, “saltou como um novilho”. Claro que isto é uma brincadeira. O autor sagrado não conhecia tal fenómeno,
nem faz parte da pedagogia de Deus antecipar explicações científicas, deixando
que o ser humano vá progredindo ao seu ritmo: “por causa da dureza dos vossos
corações” (Mt 19,8) … e das vossas inteligências. Eu é que achei muita piada a esta observação, por causa da minha velhinha licenciatura em físico-químicas. Espero
que esteja perdoado por este anacronismo! De qualquer modo, deixo-lhes mais um
exemplo: "E tremiam os gonzos das portas (do Templo) ao clamor da sua voz (dos anjos Serafins)” (Is 6,4)!!!
É unanimemente reconhecido que este Salmo é um poema muito bem
construída mas que impressiona e mete medo. Aliás o próprio autor deve ter tido
consciência disso, pois antecedeu a descrição da tempestade de um “invitatório”
(apelo inicial de uma oração ou salmo que convida as pessoas a abrirem-se à
palavra de Deus) onde utiliza quatro vezes o imperativo para incentivar os
“filhos de Deus” a louvar o Senhor. E a parte final (vv. 10-11) responde a este
Invitatório (vv. 1 -2) segundo o velho refrão: “depois da tempestade vem a
bonança”, a calma, a paz. A paz é sugerida pela posição de Javé – sentado sobre
as águas, como um caçador sobre a fera que abateu – e pelo controlo e pela
vitória sobre os elementos naturais. Na última frase (11b), Javé abençoa o seu
povo com a paz.
Neste sentido, o salmo é uma magnífica ilustração do cântico
dos anjos, sobre a gruta de Belém: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra
aos que gozam do seu amor” (Lc 2,14).
Mas não foi esta interpretação do salmo 29 que reabilitou o AT aos
meus olhos. Antes destes comentários todos, encontrei muito perto o “culpado”
desta reabilitação: o salmo 23.
1 Comentários:
Continuo a aprender consigo.
Já cá vim ler este post pelo menos três vezes. Bem-haja.
CG
2/12/12 17:52
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