divórcio ou casamento eterno?...

2012-11-26

Salmo 29

Nem todas as notas que fui escrevendo se referem ao meu tempo de menino e moço, mas a propósito de cada tópico fui avançando e recuando.
Hoje quero voltar atrás e procurar descrever algumas consequências dessa minha reflexão da juventude. E apontaria duas, para já: a revalorização do Antigo Testamento (AT) e o aprofundamento da fé.
Para iniciar esta nota sobre o AT vou reproduzir o salmo 29:

1Filhos de Deus, aclamai o Senhor;
aclamai a glória e o poder do Senhor;
2aclamai a glória do nome do Senhor
prostrai-vos diante do Senhor com pompa sagrada.

3A voz do Senhor sobre as águas,
trovejou o Deus da glória,
o Senhor sobre a imensidade das águas;
4a voz do Senhor é poderosa,
a voz do Senhor é majestosa;
5a voz do Senhor despedaça os cedros,
o Senhor despedaça os cedros do Líbano;
6faz saltar o Líbano como um novilho
e o Sarion como uma cria de búfalo;
7a voz do Senhor lança chispas de fogo,
8a voz do Senhor faz tremer o deserto,
o Senhor faz tremer o deserto de Cades;
9a voz do Senhor retorce os carvalhos,
o Senhor desfolha as selvas.

No seu templo surge um grito unânime: “Glória!”
10O Senhor está sentado sobre as águas diluvianas
o Senhor está sentado como rei eterno.
11O Senhor dá força ao seu povo,
o Senhor abençoa o seu povo com a paz.

Quando me lembrava do Deus da minha primeira comunhão, o que ficava muito ofendido por “tocarmos com a hóstia nos dentes”, era este salmo que me parecia o mais adequado para o descrever. O Deus da minha meninice era o Deus do salmo 29 e, por extensão, o Deus do AT. Este salmo metia-me medo. Este medo era ainda mais sentido porque eu tinha muito medo das trovoadas. A partir dos 3 anos vivi junto de uma central eléctrica e da sub-estação respectiva e aí as trovoadas eram muito tenebrosas. As “máquinas” produtoras de electricidade ”embalavam” (aumentavam as suas rotações) aumentando o seu barulho já de si quase ensurdecedor. Na sub-estação, descargas eléctricas originavam labaredas nalguns aparelhos. Barulho a mais, estoiros, fogachos construíam um cenário dantesco para um miúdo de tenra idade. Recordo-me perfeitamente de, mal via aparecer umas nuvens negras (“de trovoada”), pegar no terço e desfiar rapidamente as Avé-marias em frente de um quadro encaixilhado de Nossa Senhora. E, enquanto rezava oração atrás de oração, ia espreitando para o reflexo das nuvens no vidro do quadro, esperando ansiosamente que a cor das nuvens mudasse. E, logo que ficassem claras ou se atenuasse o negro carregado da tempestade, parava a minha devota oração. Interesseiro!!!
Não admira, pois, que este salmo me fizesse uma impressão tão indelével que ainda hoje, ao lê-lo, recordo essa angústia da minha infância. Talvez a maior de todas. Maior ainda que aquela que senti, quando a minha mãe ao ver, numa noite, o meu corpo marcado me disse: “Tens sarampo!”. Fiquei muito aflito, porque ouvira dizer que o sarampo só se “apanhava uma vez”. E como eu já o tivera uma vez, a conclusão lógica era a de que ia morrer.

Mais tarde ao ler vários comentários a este Senhor, percebi rapidamente que não tinha jeito para exegeta. Afinal tratava-se de um hino de louvor a Javé, verdadeiro Deus cósmico que dominava, ou melhor, era capaz de desencadear os elementos da natureza sentado calmamente sobre as águas. Mas não foi esse “desaire intelectual (e não só)” que me retirou o gozo de saborear a Palavra de Deus, mesmo quando não a entendia bem, pois ela é sempre  palavra de vida eterna. Temos é de nos esforçar por lê-la com o coração. Claro que eu gostaria de ir mais longe. Mas para interpretar bem a Sagrada Escritura é preciso conhecer os textos e os contextos. Para quem não os conhece bem, vale sempre aquela palavra de Jesus: “Eu te bendigo, ó Pai, senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos entendidos e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11,25). Mas, mais uma vez, tenho de me socorrer dos peritos. E eles ajudaram-me: sábios e entendidos refere-se aos doutores da lei, que pensavam que nada tinham a aprender de uma pessoa humilde como Jesus. A sua pretensão de ser sábios fechava-lhes os olhos, os ouvidos e a inteligência à presença de Deus em Jesus de Nazaré. Ao fazer esta afirmação, Jesus punha em causa e desafiava a autoridade social e religiosa dos peritos na Lei e, mais uma vez, propõe um ensinamento que contradiz as ideias correntes no judaísmo de que são precisamente os sábios e os inteligentes que recebem a revelação. Aos referir-se aos pequeninos não quer apresentar a ignorância como uma virtude querida por Deus mas mostrar a indispensabilidade de sermos como crianças: abertas, sinceras e confiantes.

Para muitos, este salmo 29 terá sido inspirado, ou melhor, adaptado de “um antigo hino cananeu em honra de Baal”, deus da tempestade, que foi radicalmente reinterpretado para se tornar num hino a Javé. Realmente a palavra "Javé" aparece 18 vezes (7 na expressão “a voz de Javé”), havendo, no final, uma identificação com o Deus de Israel, “o seu povo”. Pode ter aparecido como resposta a uma pergunta habitual na época: “Qual é o deus verdadeiro: o nosso ou o dos pagãos?”.
Daqui também se deve retirar uma lição histórica: o judaísmo e mais tarde o cristianismo, nos primeiros séculos, sempre souberam “traduzir” a Palavra de Deus na linguagem de cada época, recuperando episódios ou festas “pagãs”. Mas nos últimos séculos, os hierarcas adaptaram uma posição defensiva, indo muitas vezes a reboque da história e das mudanças da sociedade, perdendo muita da sua capacidade e sabedoria para influenciar o desenrolar dos acontecimentos. Uma das grandes dificuldades da Igreja hoje é a de traduzir em linguagem do nosso tempo as verdades e a Pessoa de Jesus Cristo de modo a que os homens e mulheres de hoje as entendam. Há que rever a linguagem não só do ponto de vista formal (a maneira simples e clara de se expressar), mas também de conteúdo: traduzir em palavras e conceitos de hoje os velhos dogmas e as velhas normativas já tão desajustadas no nosso tempo. Era bom regressar à simplicidade de expressão de Jesus, que “seduzia” as pessoas, que ficavam maravilhadas com o que Ele dizia e como o diz, apesar da radicalidade das suas propostas que obrigavam os ouvintes a fazer opções. Por isso, alguns o abandonaram porque tinha “palavras duras” (Jo 6,60); o jovem foi embora triste porque era muito rico e Jesus lhe mandara vender tudo e dá-lo aos pobres (Mt 16,22). Devido a esta dificuldade de comunicação corre-se o risco de afastar os cristãos de base do Magistério, deixando-o muitas vezes sem feed-back daqueles que vivem e conhecem os problemas reais de cada época e acabando por originar uma Igreja a duas velocidades. Assim, correm um outro risco: o de ficarem presos no Monte Tabor. “Nascia a sociedade burguesa e os homens da Igreja, separados do povo, defendiam as sociedades aristocráticas. Nasciam as sociedades nacionais e democráticas e os homens da Igreja, separados do povo, defendiam os monarcas e o concerto europeu saído do congresso de Viena. Nascia a sociedade industrial e os homens da Igreja, separados do povo, elogiavam e defendiam a sociedade agrícola. Nascia a sociedade científica e os homens da Igreja, separados do povo, só viam os riscos das ciências para a fé e a vida cristã. Tenta nascer a sociedade em que a mulher seja verdadeiramente igual ao homem e os homens da Igreja, separados do povo, parecem cortejar ainda uma cidade em que o primeiro posto corresponda ao homem varão. Tudo isto, porque separados do povo, fechados numa atmosfera sacral ou burocraticamente mundana apesar das aparências espirituais e vítimas de um eficientismo eclesiástico, que não é por ser tecnologicamente moderno que está mais próximo do Evangelho, carecemos dos meios de compreensão e discernimento, de simpatia real para compreender, isto é, para discernir e depois interpretar os acontecimentos” (G. Gennari).

O poema avança rapidamente com mudanças abruptas de cenário. Um dos comentários que li avança uma observação curiosa. É como se o autor conhecesse “a mecânica vibratória do som”. Trata-se de um fenómeno chamado “ressonância” que tem aplicação em várias áreas do saber. A ressonância é um processo que autoamplia as vibrações ou oscilações de um objecto induzidas pelas vibrações de outro. Quando se encontram, as vibrações como que actuam em uníssono adquirindo amplitudes cada vez maiores. Talvez um exemplo torne isto mais claro. Uma companhia de soldados não pode marchar sobre um ponte, porque a cadência sempre exacta das sapatadas no tabuleiro da ponte pode assemelhar-se à cadência das vibrações naturais de ponte, que começa a oscilar cada vez mais até que pode ruir. Há quem diga que tal fenómeno aconteceu com um regimento de Napoleão e a partir daí os soldados deixam de marchar alinhados nas pontes. Mas o que não é lenda foi o que aconteceu, em 7.Nov.1940, com a ponte sobre o estreito de Tacoma, em S. Francisco. Aqui a causa foi o vento. A partir de uma certa vibração, o vento entrou em ressonância com a ponte e esta caiu. Pode ver imagens no youtube. Sons musicais, quer de órgãos, por exemplo, ou até de alguns cantores, podem partir os vidros da sala de concertos se estes não estiverem preparados para evitar o fenómeno.
Mas o autor do salmo 29 não podia estar a aplicar um princípio da física que desconhecia. Contudo o comportamento do Líbano assemelha-se de alguma maneira a este fenómeno: as vibrações da “voz de Javé” eram tais que o Líbano, entrando em ressonância, “saltou como um novilho”. Claro que isto é uma brincadeira. O autor sagrado não conhecia tal fenómeno, nem faz parte da pedagogia de Deus antecipar explicações científicas, deixando que o ser humano vá progredindo ao seu ritmo: “por causa da dureza dos vossos corações” (Mt 19,8) … e das vossas inteligências. Eu é que achei muita piada a esta observação, por causa da minha velhinha licenciatura em físico-químicas. Espero que esteja perdoado por este anacronismo! De qualquer modo, deixo-lhes mais um exemplo: "E tremiam os gonzos das portas (do Templo) ao clamor da sua voz (dos anjos Serafins)” (Is 6,4)!!!

É unanimemente reconhecido que este Salmo é um poema muito bem construída mas que impressiona e mete medo. Aliás o próprio autor deve ter tido consciência disso, pois antecedeu a descrição da tempestade de um “invitatório” (apelo inicial de uma oração ou salmo que convida as pessoas a abrirem-se à palavra de Deus) onde utiliza quatro vezes o imperativo para incentivar os “filhos de Deus” a louvar o Senhor. E a parte final (vv. 10-11) responde a este Invitatório (vv. 1 -2) segundo o velho refrão: “depois da tempestade vem a bonança”, a calma, a paz. A paz é sugerida pela posição de Javé – sentado sobre as águas, como um caçador sobre a fera que abateu – e pelo controlo e pela vitória sobre os elementos naturais. Na última frase (11b), Javé abençoa o seu povo com a paz. 
Neste sentido, o salmo é uma magnífica ilustração do cântico dos anjos, sobre a gruta de Belém: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos que gozam do seu amor” (Lc 2,14).

Mas não foi esta interpretação do salmo 29 que reabilitou o AT aos meus olhos. Antes destes comentários todos, encontrei muito perto o “culpado” desta reabilitação: o salmo 23.

1 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Continuo a aprender consigo.
Já cá vim ler este post pelo menos três vezes. Bem-haja.
CG

2/12/12 17:52

 

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