Os celíacos
Celíacos são as pessoas que sofrem de alergia ao glúten que entra na composição dos cereais.
Sabe-se que esta sensibilidade está relacionada com um antigene situado na região D do cromossoma 6. Trata-se, portanto, de uma doença genética. É até a mais comum na Europa (cerca de 1 em cada 300 pessoas), sendo rara entre os africanos e asiáticos.
Como o trigo que entra na composição da hóstia, levanta-se o problema da comunhão eucarística.
O problema surgiu de novo na diocese de Huelva quando não foi permitido a uma criança celíaca comungar com uma hóstia sem glúten, porque “as hóstias utilizadas comummente na celebração da Eucaristia estão fabricadas com farinha de trigo e, portanto, contêm glúten”. Entretanto, foi autorizada a comungar uma hóstia confeccionada na Alemanha com amido de trigo e um conteúdo quase imperceptível de glúten.
A diocese, entretanto, elaborou um documento que sugere aos celíacos duas formas de comunhão: “utilizando hóstias especiais, que contêm uma pequena quantidade de glúten de trigo, com o qual a matéria empregada é válida para a consagração eucarística, sem que prejudique a saúde dos celíacos – não são válidas as confeccionadas com milho; ou também sob a espécie do vinho”.
Perante isto, surgem-me algumas perguntas.
Que imagem de Deus, pessoal e amoroso, está ser transmitida? Deus vale pela quantidade de glúten? E em que quantidade? Não haverá um pecado de orgulho da parte dos responsáveis que querem “amarrar” Deus ao glúten? Por onde passa o amor infinito de Deus pelas suas criaturas?
Lembro-me de, quando fiz a primeira comunhão, uma menina começar a chorar convulsivamente porque tinha “tocado com a hóstia nos dentes” e tinha-nos sido dito que tal atitude era um “pecado gravíssimo”. Enquanto foi palavreado, não liguei nada. Mas perante aquele desespero da miúda lembro-me de ter pensado: "Será Deus assim tão mau!” E precisei de vários anos para me recompor. Só quando encontrei Jesus a sério e vi o que dizia do Pai, que é Amor, que é o Pai do filho pródigo, que é providência amorosa, que é Senhor da história, que quer que sejamos felizes já aqui, fiquei revoltado com aquela incrível “pastoral do medo” com que se fazia a evangelização e que tanta gente traumatizou. As maiores questões e dificuldades, pelas quais os meus colegas universitários me diziam ter abandonado e esquecido a Igreja, estavam relacionadas com os traumas gerados pela pastoral do medo: “vais para o inferno”; “ai de ti que peques; Deus está em todo lado, tudo vê e castiga-te”.
Só não abandonei a Igreja, porque percebi que, apesar de todos os seus pecados históricos e os seus truques pastorais e curiais, a Igreja deu-me a conhecer Jesus Cristo. Foi devido a este acontecimento estruturante e absolutamente marcante na minha vida, que eu “perdoo tudo” à Igreja… mas não sem refilar e lutar contra o que me parece incoerente.
Ao ler este episódio de Huelva, foi a minha primeira comunhão que me veio à memória com as suas circunstâncias traumatizantes.
Não estará a Igreja ainda muito marcado por esta mentalidade? Para a Igreja, Deus é mesmo Amor? E já agora outra “incoerência romana”: “sem Eucaristia, não há comunidade cristã” (PO 6); “a Eucaristia edifica a Igreja e a Igreja faz a Eucaristia" (EE, 26). Se é assim, qual é mais importante é a existência da Eucaristia para todos ou o sexo ou o estado civil do presidente da assembleia litúrgica?
Não está a Igreja hierárquica, nestes e noutros casos, a absolutizar o acidental e a ignorar o essencial?
Talvez fosse bom os presidentes das congregações romanas meditarem seriamente a frase de Bento XVI que ontem aqui citei: No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa (Jesus Cristo), que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (DCE 1).
Ou naquelas palavras do Concílio: “Os crentes podem ter tido parte não pequena na génese do ateísmo, na medida em que, pela negligência na educação da fé ou por exposições falaciosas da doutrina ou ainda por deficiências da sua vida religiosa, moral e social, se pode dizer que antes esconderam do que revelaram o autêntico rosto de Deus e da religião” (GS 19).
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