Cântico dos Cânticos
Não há certamente nenhum livro bíblico onde a mulher tenha maior protagonismo. E ainda para mais, o livro que tem o título mais bonito: o melhor dos cânticos. Cântico dos cânticos é um superlativo, como o é “luz da luz”, “Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”.
Neste livro que é um conjunto de poemas de amor, a mulher não tem qualquer pudor em manifestar o seu amor, recusando a ideia da mulher passiva, sempre à espera que alguém se lhe declare. O livro começa logo com um pedido:
Que ele me beije com beijos da sua boca!
As tuas carícias são melhores que o vinho
ao olfacto são agradáveis os teus perfumes.
O teu nome é como um bálsamo fragrante
e por isso se enamoram de ti todas as raparigas.
Arrasta-me contigo. Corramos
e conduz-me à tua alcova, ó meu rei,
para celebrar contigo a nossa festa
e recordar as tuas carícias melhores que vinho (1,2-4).
Há uma busca mútua e uma mútua troca de piropos, cada um deles dizendo as coisas mais bonitas do outro.
Ela toma a iniciativa sem quaisquer pruridos: não o sentindo na cama levanta-se percorre o jardim e a cidade à procura do seu amado:
Na minha cama, toda a noite,
Procurei o amor da minha alma;
Procurei-o mas não o encontrei.
Vou levantar-me dar voltas pela cidade:
Pelas praças e pelas ruas procurarei
Aquele que o meu coração ama (3,2-2).
Há aqui uma dialéctica de encontros e desencontros, um movimento de ida e volta, numa construção numa acabada, mas sempre recomeçada, como é todo o amor que se quer sério. Mas no final, vence o amor:
porque forte como a morte é o amor,
implacável como o abismo é a paixão;
os seus ardores são chamas de fogo,
são labaredas divinas.
Nem as águas caudalosas conseguirão
apagar o fogo do amor,
nem as águas torrenciais o podem submergir.
Se alguém quisesse comprar o amor
com todas as riquezas da sua casa
seria objecto do maior desprezo (8,6-7).
Esta linguagem tão profana, erótica mesma, assustou os primeiros exegetas que logo concluíram que só poderia tratar-se de uma alegoria sobre o amor entre Deus e Israel. Aliás a imagem conjugal é frequente para representar este amor (Os 1-3; Is 54-62; Jer 2-3; 31; Ez 16,23). Como se o amor físico só pudesse ser um assunto indigno de Deus. Parece que não leram a primeira página da Bíblia onde Deus cria o ser humano como um ser sexuado chamado a reproduzir-se e oljando para a sua obra concluiu que tudo aquilo era “muito bom”.
Por isso é que só mais tarde se aceitou sem reservas que se tratava daquilo “que realmente é: um epitalâmio, canto de admiração e de um grande amor entre uma mulher e um homem, onde o desejo e o corpo fazem parte do jogo de sedução e fruição” (Difusora Bíblica).
Neste contexto interpretativo, parece-me importante recordar o comentário de Bento XVI na sua encíclica Deus caritas est (a primeira vez que este livro bíblico terá sido citado numa encíclica, segundo a minha ignorância):
Como deve ser vivido o amor, para que se realize plenamente a sua promessa humana e divina? Uma primeira indicação importante, podemos encontrá-la no Cântico dos Cânticos, um dos livros do Antigo Testamento bem conhecido dos místicos. Segundo a interpretação hoje predominante, as poesias contidas neste livro são originalmente cânticos de amor, talvez previstos para uma festa israelita de núpcias, na qual deviam exaltar o amor conjugal. Neste contexto, é muito elucidativo o facto de, ao longo do livro, se encontrarem duas palavras distintas para designar o «amor». Primeiro, aparece a palavra «dodim», um plural que exprime o amor ainda inseguro, numa situação de procura indeterminada. Depois, esta palavra é substituída por «ahabà», que, na versão grega do Antigo Testamento, é traduzida pelo termo de som semelhante «ágape», que se tornou, como vimos, o termo característico para a concepção bíblica do amor. Em contraposição ao amor indeterminado e ainda em fase de procura, este vocábulo exprime a experiência do amor que agora se torna verdadeiramente descoberta do outro, superando assim o carácter egoísta que antes claramente prevalecia. Agora o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro. Já não se busca a si próprio, não busca a imersão no inebriamento da felicidade; procura, ao invés, o bem do amado: torna-se renúncia, está disposto ao sacrifício, procura-o até (6).
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