Caim
Não li nem faço intenções de ler o livro. Mas as palavras públicas de Saramago e outros intervenientes sugerem-me algumas reflexões.
Vou partir do princípio de que Saramago quando fala da Bíblia e de Deus se refere ao AT. O que é, já de si estranho, para quem escreveu um “Evangelho”.
Efectivamente o AT descreve alguns episódios e atribui a Javé ordens que podem ser classificadas de cruéis. "A Bíblia nem sempre é um livro edificante" dizia o meu professor de Hagiógrafos (Sapienciais). O problema é que o AT não pode ser reduzido a essa meia dúzia de páginas num total de 1500. É verdade que no AT se cruzam várias concepções de Deus. Mas falar apenas do Deus cruel é ignorar, propositadamente ou não:
- o Deus que cria o ser humano à sua imagem e semelhança, isto é, livre, comunitário, com igualdade de género, num mundo cultural onde os deuses criaram o homem para ser seu escravo e bode expiatório;
- o Deus libertador que luta contra o faraó e liberta os hebreus e lhes dá uma terra “onde corre leite e mel”;
- o Deus que faz opção decidida pelos pobres: “Ai de vós se a viúva, o órfão e o estrangeiro se queixar do vosso comportamento”;
- o Deus que detesta os cultos sem o cumprimento d justiça social: “Já me enjoa a gordura dos vossos cordeiros (imolados), o ruído das vossas assembleias litúrgicas. Cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem, procurai o que é justo, socorrei os oprimidos, fazei justiça aos órfãos, defendei as viúvas”;
- o Deus “lento na ira e cheio de misericórdia”.
E já nem falo do NT, que nos mostra Deus como o Pai do Filho pródigo, que é Amor, e que aponta como característica dos seus discípulos o amor; o Deus, que, em Jesus Cristo fala publicamente com as mulheres, que toca fisicamente nos leprosos, que come com os pecadores, etc.
Ora de um prémio Nobel espera-se que investigue aquilo de que fala. Que escreva, como outros, ficcionando, óptimo. Mas a liberdade de expressão não pode desvirtuar os factos. Nem serve o o argumento da liberdade de opinião. Se assim fosse, poderia dizer-se que o Holocausto não existiu ou que o grande responsável pela descoberta do caminho marítimo para a Índia foi exclusivamente D. Manuel I não cabendo nenhum mérito a D. João II.
Enquanto crente, não me sinto ofendido com as suas palavras. Não ofende quem quer.
O que disse antes é mais como cidadão, que espera que haja algum respeito pelos factos históricos, agradáveis ou desagradáveis.
Penso que a reacção dos responsáveis da Igreja deveria ser muito mais no sentido de mostrar a bondade do nosso Deus, o seu amor infinito pela humanidade, a sua infinita misericórdia, que a Igreja nem sempre manifesta devidamente.
Mas é importante não esquecer que esse Deus de que fala Saramago foi o Deus que foi ensinado na catequese antes do Vaticano II, o que eu chamo o Deus do Salmo 29, um Deus que eu não conseguia aceitar. Um Deus de que me libertei ou então deixaria de acreditar nele, quando descobri Jesus Cristo que nos veio revelá-lo (“fazer a sua exegese”, diz a versão grega): “A Deus jamais alguém o viu. O Filho Unigénito, que é Deus e está no seio de Deus, foi ele quem o deu a conhecer (exegesato)” (Jo 1, 18).
Finalmente esta insistência de alguém, que aparece como ateu, em temas bíblicos faz-me lembrar a célebre abertura das Confissões de S.to Agostinho: “O homem, fragmentozinho da criação, deseja louvar-Vos. Vós o incitais a que se deleite nos vossos louvores, porque nos criastes para Vós e o nosso coração vive inquieto enquanto não repousa em Vós”.
2 Comentários:
Caro Zé Dias: A frase de Stº Agostinho que citas talvez revele a ânsia da busca de JS que O não encontra mas que O procura.Gostei deste teu escrito que o Zé V.L. nos indicou -ele é teu leitor assíduo-. Verifico que continuas uma máquina de escrever (...maior que o JS...)com estes teus imensos comentários à CinV. Publica-as e envia-me um exemplar...
Desejo que tudo te corra bem quanto à saúde (o que parece estar a acontecer).
FF
28/10/09 13:51
Caro amigo
Obrigado pelas tuas palavras amigas, eliminado que seja o parêntese... A grande amizade do
ZéVL leva-o a exageros pouco recomendáveis num pessoa do seu saber e honestidade. Mas enfim, como os amigos são para as ocasiões, temos de lhe dar o devido desconto.
Os comerntários à Varitas in Veritate não são textos "publicáveis" porque não passam de reflexões pessoais, embora, espero, que sem erros graves teológico-pastorais, que achei poder partilhar no blog. Propus-me esta partilha pois se não a fizesse possivelmente não reflectiria a encíclica com tanto cuidado... e sobretudo até ao fim, como impõe um compromisso.
Decidi não publicar um comentário por dia por três razões: alguns amigos queixaram-se de que mal tinham tempo de ler um comentário e já tinham outro em cima; segundo, há outros assuntos que não posso ignorar, pois vivo neste mundo; mas fui "obrigado" a esperar pelo final do período eleitoral pois foi um tempo doloroso para a minha (nossa) ciadadnia; terceiro, porque com o fim das férias tenho mais compromissos e cada comentário, às vezes, leva-me quase uma manhã, embora seja um pouco preguiçoso para me levantar.
28/10/09 19:01
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