CinV (33) Santa e sempre necessitada de purificação
No contexto que venho analisando, não devo deixar de fora a Igreja, tendo sempre presente o muito que a Igreja deu e dá de bom à humanidade num saldo francamente positivo. E é para que ele seja cada vez maior e mais fiel a Jesus Cristo e aos homens e mulheres de hoje que faço este comentário.
A frase do título é uma das afirmações fortes do Concílio: “Enquanto Cristo «santo, inocente, imaculado», não conheceu o pecado, mas veio apenas expiar os pecados do povo, a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação” (LG 8). Não sei se os padres conciliares teriam presente a “casta meretrix” de S.to Ambrósio: “(A Igreja é) casta meretriz, porque muitos amantes a frequentam pelos atractivos do amor, mas sem a contaminarem de culpa”.
A Igreja é também uma instituição humana, formada por homens e mulheres pecadores, com as suas fraquezas e limitações, como a história mostra e o Concílio recordou: “Ainda que a Igreja, pela virtude do Espírito Santo, se tenha mantido esposa fiel do Senhor e nunca tenha deixado de ser um sinal de salvação no mundo, no entanto, ela não ignora que entre os seus membros, clérigos ou leigos, não faltaram, no decurso de tantos séculos, alguns que foram infiéis ao Espírito de Deus” (GS 43).
João Paulo II, consciente disso, pediu perdão público pelas muitas faltas que os homens da Igreja cometeram ao longo da história. Este seu gesto merece-me três observações:
1ª. A coragem de João Paulo II ao tomar esta atitude inédita, apesar das muitas pressões da Cúria romana, receosa de que tal gesto diminuísse a autoridade moral da Igreja!!!
2ª. O pedido de perdão pelas faltas passadas, esquecendo as presentes, que aliás o Concílio reconhecera sem dificuldade: “E também nos nossos dias, a Igreja não deixa de ver quanta distância separa a mensagem por ela proclamada e a humana fraqueza daqueles a quem foi confiado o Evangelho” (GS 43). Muitos criticam o “atraso” deste mea culpa, pois pode significar que em décadas ou séculos futuros se venha a fazer outra mea culpa por atitudes que hoje a Igreja já comete mas não quer ou não sabe reconhecê-las. Assim sendo, perguntam para que servem estes pedidos de perdão. É que não basta pedir perdão pelo passado; deve olhar-se e viver-se o presente tendo em conta os valores perenes do Evangelho mas no contexto de cada época. E a Igreja corre o risco de andar sempre atrasada e a reboque, quando devia estar na fila da frente já que dispõe de uma força profundamente libertadora desde que se mantenha fiel às palavras de Jesus de Nazaré e não a interpretações de alguns responsáveis aparentemente mais interessados na conservação da (sua?) doutrina do que na libertação total da pessoa e do mundo. A história deve tornar mais humildes os que dispõem de poder, pois mostra quantas vezes foram impostas doutrinas e normas, que mais tarde tiveram de ser abandonadas.
3ª. O cuidado do Papa em falar dos “homens da Igreja” e não “da Igreja”. São homens os que fazem parte de estruturas da Igreja, como o antigo Santo Ofício, nas quais se cometeram faltas gravíssimas contra a “sacralidade” de muitas pessoa. Quem foi o autor dessas faltas: os homens ou as estruturas? Esses homens isoladamente teriam cometido essas faltas? Muito provavelmente não. Sabe-se que essas estruturas foram feitas para defesa da doutrina, do “sagrado depósito da fé”. Mas onde está a prioridade? Não “foi o sábado feito para o homem e não o homem para o sábado”? Acredito que quem ocupa estes cargos deve, por vezes, debater-se com dolorosos problemas de consciência. Mas qual deve ser a prioridade à luz do Evangelho, critério último das nossas acções e intervenções pessoais e comunitárias?
O grande teólogo moralista Häring, no seu livro “A Igreja que eu amo”, conta os mil tormentos a que foi sujeito por duas Congregações (da Doutrina da Fé e da Educação cristã), quando da publicação de alguns dos seus livros, num tempo em que ele ficara doente com “um cancro na garganta, tendo sido submetido a sete intervenções cirúrgicas e a terapia de cobalto, além de outros cuidados muito constrangedores” (p. 53). O relato desta perseguição neste contexto é realmente assustador e sinal de uma absoluta ausência de misericórdia para com alguém que está em profundo sofrimento. De tal modo que “apareceu-me a necessidade de provocar um escândalo que espero seja salutar, precisamente na medida em que pode contribuir para curar uma situação tornada patológica” (p. 51). Neste sentido termina com quatro sugestões, pois “o problema continua a ser o da reforma das instituições: os peixes não poderão viver com muita saúde num lago envenenado” (pp. 79-81).
Passado o tempo eleitoral, de cuja elevação todos certamente nos congratulamos, penso ir intervalando os comentários da encíclica com outros acontecimentos do dia a dia.
0 Comentários:
Enviar um comentário
<< Home