divórcio ou casamento eterno?...

2009-10-01

CinV (31) A ordem estabelecida pelos homens

Para chegar às “estruturas de pecado” foi preciso percorrer um longo caminho de quase 2000 anos. É certo que elas já estavam bem presentes nas condenações que Jesus fazia do seu tempo, mas os nossos olhos olham e não vêem sobretudo quando não nos interessa.
Um bom ponto de partida é a palavra de S. Paulo, tantas vezes citadas em documentos papais: “Que todos se submetam às autoridades públicas, pois não existe autoridade que não venha de Deus e as que existem foram por Deus estabelecidas. Por isso, quem resiste à autoridade opõe-se à ordem querida por Deus e os que se opõem receberão a condenação” (Rom 13,1-2).
Esta ideia veio a ter consequências enormes ao longo de toda a história. Deixando de lado as disputas medievais e os interesses em jogo na doutrina do direito divino dos reis, o que é certo é que, apoiados nesta frase bíblica, os Papas recomendavam, em nome da boa ordem social, esta estratificação, que colocava “cada macaco no seu galho”. Daqui decorrem, entre outras, duas consequências:

1ª. A ordem estabelecida não pode ser posta em causa. Repare-se nestas palavras de Gregório XVI: “Tendo sido divulgadas, em escritos que correm por todo o lado, certas doutrinas que deitam por terra a fidelidade e a submissão que se deve aos príncipes, com o que se fomenta o fogo da rebelião, deve vigiar-se muito para que os povos não se afastem, enganados, dos caminhos do bem. Saibam todos que, como diz o Apóstolo, todo o poder vem de Deus e todas as coisas são ordenadas pelo próprio Deus. Assim, pois, o que resiste ao poder resiste à ordenação de Deus e condena-se a si mesmo (Rom 13,2). Portanto, todos os que, com torpes maquinações de rebelião, se afastam da fidelidade que devem aos príncipes, querendo arrancar-lhes a autoridade que eles têm, oiçam como clamam contra eles todos os preceitos divinos e humanos” (Mirari vos, 13 (15.Agosto.1832)).
Mesmo que os “príncipes” abusem do seu poder a única solução é ter paciência e esperar que Deus lhes peça contas no Além: “Mas se alguma vez suceder que os príncipes exerçam o seu poder temerariamente e fora dos seus limites, a doutrina católica não consente insurreições contra eles, não aconteça que a tranquilidade da ordem pública seja perturbada ou que a sociedade receba por isso maior prejuízo. E se as coisas chegassem a tal ponto que não se vislumbrasse outra esperança de solução, ensina que o remédio se há-de acelerar com os méritos da paciência cristã e as fervorosas preces a Deus” (Leão XIII, Quod apostolici muneris, 6).
Esta doutrina foi tão interiorizada pelos cristãos que ainda hoje muitos são acriticamente subservientes à(s) autoridade(s) e seus acérrimos defensores. Aí poderá estar uma das dificuldades do compromisso sócio-político de muitos cristãos e dos seus medos das mudanças.

2ª. Pela mesma razão os pobres não devem revoltar-se contra os ricos, como explica Leão XIII: "O problema das relações entre ricos e pobres ficará perfeitamente solucionado se se admitir com clareza e firmeza que também a pobreza tem a sua dignidade; que o rico há-de ser misericordioso e generoso para com o pobre e o pobre há-de satisfazer-se com a sua própria sorte e o próprio trabalho, já que nem um nem outro nasceram para estes bens perecedouros e um há-de ganhar o céu com paciência, enquanto o outro deve fazê-lo com a sua liberalidade" (Auspicato concessum,12 (17.Set.1882)).
Razões tinha Marx para chamar a (esta) religião "ópio do povo".

Entre parêntesis, referiria uma outra consequência, que diz respeito à natureza da Igreja: “Esta Igreja é, por essência, uma sociedade desigual, isto é, uma sociedade que compreende duas categorias de pessoas, os pastores e o rebanho; os que ocupam um posto nos diferentes graus da hierarquia e a multidão dos fiéis. E estas categorias são de tal modo distintas uma da outra que só no corpo pastoral residem o direito e a autoridade necessários à promoção e direcção de todos os membros para o fim da sociedade. Quanto à multidão, não tem outro direito senão o de deixar-se conduzir e de, como dócil rebanho, seguir os seus pastores” (Pio X (11.Fev.1906), Vehementer Nos, 8).
E foi preciso chegar ao Vaticano II para “sabermos” que a Igreja não é “rebanho de Deus”, mas “o povo de Deus”. Mas muitos cristãos (e não falo só de leigos) ainda não assimilaram esta realidade!

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