CinV (36) Fundamentos da convivência entre pessoas e povos
Uma leitura mesmo superficial desta primeira parte da encíclica mostra os pilares de um desenvolvimento ao serviço do bem comum: justiça (6), liberdade (17), verdade (18) e caridade (19).
Quem introduziu formalmente esta tetralogia foi João XXIII, que a apresenta logo no título de uma das suas grandes encíclicas: “Pacem in Terris, sobre a paz de todos os povos na base da verdade, justiça, caridade e liberdade” e a coloca, como recapitulação, já na parte final: “A paz será uma palavra vazia de sentido, se não estiver fundada sobre aquela ordem que, com confiante esperança, esboçamos nas suas linhas gerais nesta nossa encíclica: ordem que tem de ser fundada na verdade, construída segundo a justiça, vivida e integrada pela caridade e, por fim, na liberdade” (167).
Como se sabe esta foi uma encíclica que ficou muito famosa e é a primeira inteiramente dedicada à paz, que era uma sua preocupação fundamental e um “profundo anseio que sabemos ser comum a todos os homens de boa vontade: o desejo da consolidação da paz neste mundo" (166). Esta declaração final fecha o círculo, ao fazer-se eco das suas primeiras palavras: "A paz na terra, profunda aspiração dos homens de todos os tempos…" (1).
Apenas três notas sobre esta reflexão inovadora feita por João XXIII sobre a paz e seus fundamentos.
1ª. João XXIII não segue o esquema clássico sobre a paz nem sequer repete o que disse Pio XII, não só porque o considerava conhecido, mas sobretudo porque se coloca num plano diferente. Enquanto Pio XII aborda o problema principalmente como moralista, João XXIII põe de lado a casuística, isto é, não se põe a dizer o que devemos fazer se a guerra rebentar de novo, mas espera que ela não comece, assumindo uma abordagem profética. Prefere, portanto, partir da aspiração de todos à paz, o que significa que ela é possível, pois trata-se de uma causa que não só “se impõe pelos princípios da recta razão mas que é sumamente desejável e fecunda em preciosos resultados” (113). João XXIII aposta na natureza humana. A guerra não é conforme à verdadeira natureza humana; a guerra é demasiado cruel para ser uma fatalidade. Em vez de apresentar a sua doutrina da paz a partir de fora, parte do sujeito humano e leva-o a descobrir o sentido das suas aspirações: mostra aos homens que, partindo quer das suas inquietações (113), quer dos seus entusiasmos (2), só uma comunidade fundada sobre a verdade, a justiça, o amor e a liberdade pode satisfazer a sua vontade histórica e incoercível de progresso e que a paz constitui antes de mais uma realidade de ordem espiritual (36; 45).
2ª. Especial destaque merece a afirmação de que os critérios, que devem regular as relações entre as pessoas, são exactamente os mesmo que devem regular as relações entre os povos. Isto é, as nações no concerto internacional estão sujeitas às mesmas leis morais que as pessoas na sua comunidade, “porque é necessário que a mesma lei natural que regula as relações entre os cidadãos regule as relações entre as respectivas comunidades políticas” (80).
“A convivência entre os seres humanos só poderá, pois, ser considerada ordenada, fecunda e conforme à dignidade humana, quando fundada na verdade (…). Isto obter-se-á se cada um reconhecer devidamente tanto os direitos recíprocos e os correspondentes deveres (…), quando os cidadãos, guiados pela justiça, respeitarem efectivamente esses direitos e cumprirem os respectivos deveres; quando se deixarem conduzir por um amor que sinta as necessidades alheias como próprias, fazendo os outros participantes dos próprios bens (…) Mas isto não basta. A sociedade humana tem de realizar-se na liberdade, ou seja, no modo que convém à dignidade de cidadãos que, sendo por natureza dotados de razão, devem assumir responsabilidade dos seus actos” (35).
“As comunidades políticas, umas em relações às outras, são de igual modo sujeitos de direitos e deveres e, por isso, as suas relações têm também de ser reguladas pela verdade, pela justiça, pela solidariedade generosa e pela liberdade” (80).
3ª. Assim, João XXIII antecipa a decidida aceitação pelo Concílio da célebre trilogia da Revolução francesa: liberdade (a grandeza da liberdade: GS 17), igualdade (a igualdade essencial de todos: GS 29) e fraternidade (o Verbo incarnado como fundamento da fraternidade e da solidariedade: GS 32).
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