CinV (32) Estruturas de pecado
Durante muitos séculos era impensável pôr em causa a organização social, pois a doutrina da Igreja considerava-a, de algum modo, de origem divina. Esta mentalidade fixista e alérgica a qualquer mudança ainda hoje, como referi, faz parte estrutural da mentalidade de muitos cristãos. E não só leigos. Pois até no Catecismo da Igreja Católica se pode ainda ler: “Os que estão sujeitos à autoridade considerarão os seus superiores como representantes de Deus, que os instituiu ministros dos seus dons” (nº 2238)!
João XXIII acrescentou três “novas desigualdades” para lá da já conhecida entre operários e patrões: “entre os diversos sectores económicos, entre zonas economicamente desenvolvidas e zonas economicamente menos desenvolvidas dentro da economia nacional, e, no plano, mundial, entre países desigualmente desenvolvidos em matéria económica e social” (MM 122). O Concílio retoma esta ideia: “Enquanto multidões imensas carecem ainda do estritamente necessário, alguns, mesmo nas regiões menos desenvolvidas, vivem na opulência e na dissipação. Coexistem o luxo e a miséria. Enquanto um pequeno número dispõe dum grande poder de decisão, muitos estão quase inteiramente privados da possibilidade de agir por própria iniciativa e responsabilidade, e vivem e trabalham em condições indignas da pessoa humana” (GS 63). E aponta alguns princípios orientadores, nomeadamente a pessoa como destinatário e medida do desenvolvimento (64-66), o carácter instrumental dos vários elementos da economia (67-68), o destino universal dos bens (69).
De Paulo VI já muito se disse. Mas foi sobretudo João Paulo II que deu o passo decisivo ao contrapor esta organização social, que décadas antes era considerada intocável, como incompatível com a ordem realmente querida por Deus. O papa evita a expressão “pecado social”, preferindo falar claramente de “mecanismos perversos” e de “estruturas de pecado” porque estas “estão sempre ligadas a actos concretos das pessoas que as fazem aparecer, as consolidam e tornam difícil removê-las”. O problema é que elas depois como que se autonomizam e controlam os acontecimentos: “E assim, elas reforçam-se, expandem-se e tornam-se fontes de outros pecados, condicionando o comportamento dos homens” (SRS 36).
Contudo no Sínodo de 1983, “pecado social” foi muito referido o que levou João Paulo II a esclarecer, na Exortação apostólica que publicou na sequência do Sínodo, que “a Igreja, quando fala de situações de pecado ou denuncia como pecados sociais certas situações ou certos comportamentos colectivos ou de grupos sociais, mais ou menos vastos, ou até mesmo de nações inteiras e blocos de nações, sabe e proclama que tais casos de pecado social são o fruto, a acumulação e a concentração de muitos pecados pessoais. Trata-se dos pecados pessoalíssimos de quem gere ou favorece a iniquidade ou dela desfruta; de quem, podendo fazer alguma coisa para evitar, eliminar ou, pelo menos, limitar certos males sociais, deixa de o fazer por preguiça, por medo e temerosa conivência, por cumplicidade disfarçada ou por indiferença; de quem procura escusas na pretensa impossibilidade de mudar o mundo; e, ainda, de quem pretende esquivar-se ao cansaço e ao sacrifício, aduzindo razões especiosas de ordem superior. As verdadeiras responsabilidades, portanto, são das pessoas” (RP 16).
Por isso, lembra que muitas iniciativas boas se podem tornar estruturas de pecado, concretamente os empréstimos internacionais: “Por força deste mecanismo, o meio destinado ao desenvolvimento dos povos tornou-se um travão e, em certos casos, até mesmo uma acentuação do subdesenvolvimento” (SRS 19).
Há várias razões para isto: por exemplo, os condicionalismos impostos pelos doadores e a corrupção de muitos responsáveis beneficiários têm um peso muito elevado. Mas, sem ignorar estas realidades, Bento XVI destaca um outro aspecto menos referido: “Às vezes sucede que o destinatário das ajudas seja utilizado em função de quem o ajuda e que os pobres sirvam para manter de pé dispendiosas organizações burocráticas que reservam para a sua própria conservação percentagens demasiado elevadas dos recursos que, ao invés, deveriam ser aplicados no desenvolvimento” (47). É o que J. Sachs mostra de modo quantitativo: “Ao contrário da percepção pública, o montante anual, por cada habitante da África subsariana, foi de apenas 30 dólares em 2002. Desta modesta verba, quase 5 dólares foram na verdade para consultores dos países doadores, mais de 3 destinaram-se a comprar alimentos e outra ajuda de emergência, 4 foram para o serviço da dívida e mais 5 para operações de alívio da dívida. Só o restante, 12 dólares, chegou à África”. Mas mesmo que chegasse tudo o que fora doado, cada pessoa teria por dia … 0,084 dólares!
A ajuda é já ela própria,indepentemente de chegar ou não na sua totalidade, uma autêntica “estrutura de pecado”.
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