divórcio ou casamento eterno?...

2009-11-22

CRISTO REI: QUE REI?

Esta foi a reflexão que preparei para o jornal. Mas, como muitos não o lêem, resolvi "postá-lo" aqui no blog.

Gostaria de partilhar a minha reflexão sobre a festa de Cristo Rei, Rei-Deus que há dois mil anos quis, por Amor incondicional e gratuito, irromper visivelmente na história dos homens.
Ao olharmos para este Deus que se anulou para se tornar homem como nós, vemos muito pouco de rei. Nasceu não se sabe onde; cresceu como os miúdos da sua idade, com a diferença de ter escapado a um massacre e de ter de fugir para longes terras; viveu como nós, excepto no pecado. Teve uma vida inteira tão discreta que, quando decidiu assumir-se como anunciador de uma Boa Nova Libertadora, foi logo apontado a dedo pelos seus vizinhos e amigos: “Não é este o filho do carpinteiro?”. Por entre a multidão anónima dos que se iam baptizar, só João Baptista desconfiou quem seria Ele, pois, apesar de se achar indigno de lhe desapertar as correias do sapato, mais tarde sentiu-se obrigado a mandar perguntar-lhe “se era ele que havia de vir ou deviam esperar outro”. Endureceu na solidão, assassina do corpo e da alma, que é o deserto.
Depois tornou-se conhecido, mas não por boas razões para os sábios e o povo da época.
Era assim uma espécie de sem-abrigo que não tinha onde reclinar a cabeça. Não ligava muito às exigentes exigências da Lei que os homens sagrados tinham construído manipulando a Palavra de Deus. Falava com as mulheres em público, reconhecendo assim a sua igual dignidade, o que era inadmissível; denunciava a carta do divórcio porque o homem não era dono da mulher; perdoou à mulher adúltera, escandalizando escribas e fariseus zelosos respeitadores da lei, mas igualmente clientes seus. Convivia com a ralé da sociedade. Comia e bebia com os marginalizados: partilhar a mesa era sinal da hospitalidade e da amizade. Dava prioridade aos publicanos e às prostitutas, prometendo-lhe os primeiros lugares no seu Reino (“Que Reino?” sonhariam eles!). Tocava nos intocáveis, os leprosos, absolutamente excluídos da sociedade. Zurzia a roubalheira e a desonestidade dos donos do Templo, único lugar onde Deus podia ser adorado. Tudo isto lhe trouxe “mau nome” aos bem-comportados da época.
Mas também a sua família, com grande sofrimento de Maria sua mãe, que meditava todas as suas palavras no seu coração, o abandonou porque o considerava maluco. Correu o perigo de ser atirado de um alto rochedo, de que nem os anjos o salvariam, porque ele recusava tal ajuda.
O comportamento dos seus discípulos deve tê-lo feito sofrer muito e multiplicado a sua solidão: uns, deixaram-no porque tinha palavras tão duras que não podiam suportá-las; outros exigiam que lhes desse um lugar de poder; outros traíram-no, entregando-o às autoridades, adormecendo quando ele sofria uma agonia insuportável, negando-o quando foi preso, fugindo quando foi crucificado. Mesmo depois de ressuscitado, os discípulos de Emaús não o (re)conheceram; Tomé não acreditou naquelas balelas dos colegas; só Madalena, uma mulher e, portanto, sem qualquer credibilidade, o conheceu, o amou e o testemunhou junto dos apóstolos e discípulos que não quiseram acreditar nela. Três anos passaram juntos e no fim não tinham percebido nada, pois no momento da Ascensão ainda perguntavam, com “ar de estúpidos”: “Então é agora que vais libertar Israel?” das legiões romanas, pensariam eles certamente.
Foi odiado pelos que esperavam um Messias guerreiro e libertador. Foi perseguido pelos sacerdotes, pois pregava com uma autoridade que eles não tinham, e pelos que temiam que lhes tirasse o poder: “Mas tu és rei?”. Foi amado pelo povo quando lhes dava pão e fazia milagres; e odiado pelo mesmo povo quando os poderosos o manipularam, como tão bem eles sabem fazer.
Quis “apenas” denunciar uma sociedade injusta, corrupta, marginalizadora, incapaz de respeitar a dignidade inviolável de cada pessoa, propondo o modelo das Bem-aventuranças. Estigmatizou os poderosos, civis e religiosos. E eles não aguentaram: como é que um Zé-niguém lhes estava a fazer frente sem armas nem exército? Só havia uma solução: matá-lo.
Humanamente Jesus foi um fracassado. O fracasso atingiu o clímax no alto da cruz, suplício atroz destinado apenas aos mais reles da sociedade, tão humilhante que era escândalo para judeus e loucura para pagãos. Mas foi aí também que ele mostrou que não era um fracassado, porque cumprira, até à morte, a vontade do Pai (“Tudo está consumado (cumprido como querias)”) e porque punha o perdão como suporte de qualquer sociedade: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”. O fracasso da cruz anunciava já a glorificação do Rei.
Pois é este farrapo humano, porque desprezado, vilipendiado, odiado, abandonado, que viveu uma solidão humana que não podemos imaginar, que Deus ressuscita. E ao ressuscitá-lo está a dar-lhe razão contra todos os poderes e algozes do mundo. Porque na cruz estavam todas as vítimas da história, os esquecidos, os perseguidos, os excluídos, a Ressurreição veio dizer que o futuro pertence a estes, porque Aquele crucificado é efectivamente Rei. Rei, como explicou a Pilatos, “mas não deste mundo”, onde “o peso do pecado” parece sobrepor-se ao “sopro do Espírito”. Rei, sim, mas de um “reino eterno e universal: reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz” (GS 39).
É este o REI, que recusa ser como os reis deste mundo, que queremos ter como modelo de vida ou preferimos um Rei, triunfal Pantocrator, que nos permita fechar, de consciência tranquila e de um modo humanamente digno, o nosso ciclo litúrgico?

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