Confiança na Providência
O Sermão da Montanha era um manancial de “dados” que inundavam a minha alma. O primeiro texto, que me absorveu a atenção, foi o “Não vos preocupeis com o dia de amanhã” (Mt 6,25-34). Aliás é um texto que hoje ainda leio muitas vezes. Portanto as considerações que se seguem já são uma mistura de muitos anos de reflexão.
Eu vivia numa situação de alguma
carência afectiva, o que me abria a necessidade de ter alguém em quem pudesse
confiar plenamente. Este texto vinha mesmo a propósito para a minha situação.
Em tão poucos versículos aparece
quatro vezes o verbo “preocupar” (vv. 25, 27, 28, 31). Há aqui uma insistência
no isentar a nossa vida da preocupação ou até da angústia de um presente não
muito agradável a anunciar um futuro pouco risonho. Jesus quer que os seus
seguidores superem não só a preocupação excessiva pelo dia de amanhã, que pode
limitar ou impossibilitar a nossa busca de Deus, mas até as angústias e
preocupações da vida do dia a dia. Daí a sua insistência em que confiemos
absolutamente em Deus, ponhamos nele a nossa confiança, desvalorizemos as
nossas preocupações, porque Ele é Pai e sabe bem do que temos necessidade.
Mais: esta confiança em Deus é uma característica essencial do discípulo de
Jesus, porque são “os pagãos, esses sim, que se afadigam com tais coisas”. Amar
a Deus, amar a Jesus implica esta confiança incondicional. E eu comecei a
sentir-me mais protegida, a perceber que não tinha que me preocupar
angustiadamente nem com o presente nem com o futuro. Que Deus é Providência.
A assunção de Deus como
Providência foi um processo rápido. Passei a não me preocupar muito com o que
havia de vir. Fazia o meu trabalho, mas não andava angustiado. Não sabia bem
como é que Deus ia resolver os meus problemas, mas tinha a certeza de que não
haveria dificuldades. E isto dava muita calma. E até percebia que não podia nem
tinha que viver com a despreocupação dos lírios do campo ou das aves do céu.
Aliás Jesus recorda que na vida há que trabalhar, planear a vida. Aí está a
crítica as virgens loucas pela sua falta de previsão (Mt 25,1-13). Louva o
servo bom e previdente que cumpre as tarefas que lhe estão confiadas (Mt
24,25-51) bem como os servos que puseram a render os seus talentos (Mt 25,
14-30). E até louva o mordomo desonesto, não por ele ser desonesto mas porque teve
criatividade e esperteza (“os filhos das trevas são mais sagazes que os filhos
da luz no trato com os seus semelhantes”) para acautelar o seu futuro (Lc
16,1-9), um parábola que me inquietava bastante.
Mas voltando à Providência.
Devemos organizar a nossa vida, planear o nosso futuro, mas sem nunca perder de
vista e de lhe subordinar o mais importante, o que é essencial: a confiança em
Deus. Eu confiava cegamente, embora não soubesse como Deus me ajudaria. Mas
aquela força cega na Providência ajudava muito. Mas depressa percebi que essa
fé cega não me dispensava de viver a vida a sério, se ser agente da história, digo
eu hoje.
Um primeiro aviso como ir vivendo
este “providencialismo” aconteceu num dada altura, quando encontrei um
empregado do Seminário com um enorme abcesso num dente. Aquilo devia doer. E
por isso perguntei-lhe: “Então já foi ao médico?”. “Não – respondeu ele – se
Deus me mandou esta dor é porque quer que a sofra!”. Fiquei feito parvo a olhar
para ele, mas percebi uma coisa: aceitar Deus como Providência não significa,
não podia significar ficar debaixo da banheira à espera que a banana caia. Eu
tinha de responder aos desafios da vida. Eu tinha de ser activo. Não podia
estar à espera de Deus para me resolver os problemas do dia a dia. Então como
viver esta providência? A resposta que me foi surgindo é que Deus (também) nos
fala pelos acontecimentos e pelas pessoas. É lendo esses sinais – na altura não
sabia que se tratava dos “sinais dos tempos” – que eu tenho de ir vivendo. Deus
vai-me apontando o caminho, mas não me tira necessariamente as pedras do
caminho. Tenho de ser eu a contorná-las ou a superá-las. Assim fui ajustando a
minha vida à confiança em Deus. E todas as decisões importantes da minha vida
resultaram dessa leitura dos sinais dos tempos. Não sei se sempre decidi bem ou
não, mas decidi convencido que era essa a indicação de Deus.
Naturalmente que aqui se coloca o
problema. Os acontecimentos podem ser lidos historicamente, mas também
teologicamente. A minha atitude era de fazer uma leitura teológica, sem tirar a
minha vida do contexto (leitura histórica). E assim fui vivendo e dei-me muito
bem com essa maneira de lidar com o problema. Como já disse, foi assim que
tomei as grandes decisões da minha vida. E, olhando para trás, sinto que
procedi bem.
Mas, e como anedota final, vou
recordar um caso, como exemplo de outros que me aconteceram. Creio que nunca
contei esta história aos meus amigos. Mas vou partilhá-la neste contexto. Agi,
não pela leitura dos acontecimentos, mas por um impulso tão estranho, que me
pareceu indicado por Alguém. Eu vinha de visitar um amigo dos arredores,
quando, sem saber como, me desviei da estrada normal e fui por outra que nunca
utilizara. De repente alguém à beira da estrada me pedia boleia, coisa que
habitualmente não dava. Mas senti um impulso para parar e dar boleia. O senhor
começou com um paleio de banha da cobra: que precisava de dinheiro, etc. e tal.
Uma história claríssima de um burlão. A dada altura, deixei de o ouvir para me
concentrar. Aconteceram várias coisas estranhas que me levaram a encontrar
aquela pessoa. Não será um sinal de Deus de que devo ajudá-lo? E acabei por lhe
dar dinheiro! Fiz bem, fiz mal? Não sei. Acho que respondi a um apelo
esquisito. Mas, já estou a imaginar que me acham maluco!
0 Comentários:
Enviar um comentário
<< Home