Confusões
Como disse, Jesus ensinou-me quem era o Pai, sobretudo com a parábola do Filho pródigo. Mas na minha oração, eu, com relativa frequência, confundia Jesus e o Pai. Nas palavras ou nos silêncios a confusão aparecia. Só de passagem, acho que só comecei a rezar realmente, quando estabeleci ou aceitei esta relação eu-tu, com Jesus ou com Deus.
Afinal o próprio Jesus já deixara
clara essa “confusão”: “Disse-lhe Filipe: «Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos
basta!» Jesus disse-lhe: «Há tanto tempo que estou convosco e não me ficaste a
conhecer, Filipe? Quem me vê, vê o Pai. Como é que me dizes então ‘mostra-nos o
Pai’? Não crês que Eu estou no Pai e o Pai está em Mim? As coisas que Eu vos
digo não as manifesto por Mim mesmo: é o Pai que, estando em Mim, realiza as
suas obras. Crede-me: Eu estou no Pai e o Pai está em Mim»” (Jo 14,8-11). Jesus
está tão intimamente ligado ao Pai que quem vê um vê o outro. É essa intimidade
que o leva a dizer “Abbá”.
E nos permite que também nós
tratemos Deus por “Abbá”, Pai, paizinho, ao ensinar-nos o “Pai-nosso”. De
qualquer maneira não tenho ideia de inicialmente ter percebido que aquele “nosso”
do Pai-nosso não era um adjectivo majestático mas uma real extensão a todos da
sua qualidade de filhos de Deus. Foi noutro contexto que eu interiorizei essa
ideia. Talvez porque o Pai-nosso era uma oração tão repetida que eu a dizia sem
pensar. Este era um dos perigos da catequese do “meu tempo”: decorar fórmulas
de que não sabíamos o significado; memorizar a letra da doutrina sem descer ao
espírito, repetir e “saber de cor a doutrina”. Ainda me lembro de ficar perplexo
por Deus “ser encarnado” e não de outra cor qualquer. Parece anedótico, mas não
é. Durante algum tempo também me era difícil de entender porque seria Nossa Senhora
bendita “em três (entre) mulheres”. Por que apenas entre três mulheres e que
mulheres? Felizmente que estes casos concretos rapidamente se esclareceram. Mas
estes são exemplos ridículos de muitos outros não tão ridículos que me/nos
foram ficando da catequese da minha infância. Muita ganga foi preciso tirar
para chegar ao miolo, ao essencial. Como poderia viver-se um cristianismo a
sério nesses tempos?!
Mais tarde, encontrei passagens nas
quais S. Paulo explicava esta “extensão” do Pai a todos nós. Na carta aos
romanos: “Todos os que são movidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Na
verdade, vós não recebestes um espírito de escravos para cair de novo no temor;
recebeste, pelo contrário, um espírito de filhos adoptivos, pelo qual chamamos «Abbá, Pai». O próprio Espírito atesta,
em união com o nosso espírito, que somos filhos de Deus e, se somos filhos,
somos também herdeiros. Herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo, pois
sofremos com Ele para também com Ele sermos glorificados” (Rom 8,14-17). Na carta
aos gálatas: “Mas, ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho,
nascido de mulher, submetido à Lei para remir os que estavam sob a Lei a fim de
que recebêssemos a adopção filial. E, porque sois filhos, Deus enviou aos
nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama «Abbá, Pai», de modo que já não és escravo, mas filho; e, se és
filho, também és herdeiros, pela graça de Deus” (Gal 4,4-7).
Uma outra ideia que nestas
passagens me chamou a atenção foi a da passar de servos/escravos (no grego, doulos) que têm medo a filhos que têm amor.
Aos filhos dá-se mais que aos servos: “Pois Deus não nos deu um espírito de
timidez (ou melhor, cobardia: deilía),
mas de fortaleza, amor e domínio próprio. Portanto não te envergonhes de dar
testemunho de nosso Senhor” (2Tim 1,7-8a).
E chamou-me a atenção porque eu
utilizava muitas a palavra de Lucas: “Somos servos (escravos, mas não se pode
seguir sempre uma tradução literal!) inúteis, que fizemos o que tínhamos de
fazer” (Lc 17,10). Não gostei, a princípio, daquele “inúteis”, mas acabei por
assumir a situação como disponibilidade para cumprir a vontade de Deus. Mas
havia aqui coisas que não percebia. E fiquei a saber que ler a Bíblia poderia
tornar-se um exercício complicado. Mas nem por isso deixava de ser a Palavra de
Deus, que me animava, me dava forças e segurança.
Alguns anos depois de ter saído
do Seminário, voltei lá para ir fazendo algumas cadeiras. E escolhi começar
pelas que tratavam das várias secções da Bíblia. Claro que não fiquei a saber
muito mais, até porque não as fiz todas pois entretanto surgiram afazeres familiares
que me impediram de continuar. Mas ajudou-me um pouquinho.
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