divórcio ou casamento eterno?...

2008-03-30

Oitava da Páscoa

Há dois meses que aqui não venho.
O principal culpado foi uma operação que tive de fazer ao pulmão direito.
A recuepração foi um pouco lenta e os momentos livres dediquei-os a uma Antologia que estou a preparar de textos da Patrística relacionados com a doutrina social da Igreja.

Como vou ser internado esta segunda-feira para mais uma operação agora ao pulmão esquerdo, vim aqui só dar uma espreitadinha e dizer um olá aos que porventura ainda aqui venham dar uma vista de olhos.

E aproveito para deixar o artigo que mandei para publicação no Correio de Coimbra e Notícias de VIla Real, resultante da minha reflexão sobre o que os relatos da Paixão nos (me) poderiam inspirar.

E até à próxima. Espero que não sejam dois meses de ausência!

ESCÂNDALO E LOUCURA

Estas conhecidas palavras de S. Paulo (1Cor 1,23) resumem a dificuldade com que se depararam as comunidades primitivas para vencer a dupla incredulidade que resultou da morte de Jesus. Para os judeus era inconcebível (um escândalo) que Deus morresse na cruz. Para os pagãos era inaceitável (uma loucura) que um homem fosse Deus, muito menos, um homem condenado a um suplício aplicado sobretudo a escravos, ladrões e outros representantes do sub-mundo humano.
Contudo, estas palavras continuam, parece-me a mim, a ser hoje de algum modo actuais.
Os crentes notam hoje escândalo e loucura num mundo que vive como se não existisse (um) Deus e que não precisa de nenhuma causa inicial e exterior a si, ou no homem que se julga omnipotente, que não se preocupa em saber donde vem nem para onde vai, que tem (tinha?) uma fé absoluta na sua inteligência com explicação para tudo. E, contudo, a história mostra o contrário. Há pouco mais de cem anos, dizia-se aos alunos de Física para se dedicarem a outras matérias porque nesta área estava tudo descoberto. E, no entanto, bastaram três fenómenos insignificantes (espectro do hidrogénio, efeito fotoeléctrico e radiação do corpo negro) para desmoronar tudo e obrigar a encontrar novas teorias. E hoje essas explicações já não servem e precisamos de outras. E depois de outras… e outras. Por isso, não foi com surpresa que encontrei, num livro recente sobre “os próximos 50 anos” da ciência, várias vezes a palavra “humildade ” ou “afinal de contas somos humanos e não anjos e da mesma forma que existem coisas que somos capazes de perceber, devem existir outras que não somos capazes de entender… porque não somos suficientemente inteligentes para perceber tais coisas. Podemos estar como cães a tentar perceber análise matemática”.
Mas também há, não digo, escândalo e loucura mas algo de pouco compreensível entre nós, que lemos a Bíblia particularmente os relatos da Paixão e passamos por estes textos, recusando-nos a aprender o que nos ensinam todos aqueles intervenientes. A ajuda das nossas catequeses e homilias também não é muita!
Tão prontos que nós somos a condenar Judas, aquele traidor tão infame que só “merecia” acabar nos ramos de uma figueira. E não pensamos em quantas vezes trocamos o nosso Deus pelo dinheiro, que comanda muito mais a nossa vida que a fé em Jesus: vivemos para o ter, para o gastar, para o guardar. Adoramo-lo em vez de o usarmos como instrumento da nossa realização autêntica, da nossa partilha com os mais necessitados, do nosso contributo para uma sociedade mais justa. E no entanto “ninguém pode servir a dois senhores” (Mt 6,24). Quantos de nós que vamos comungar ao domingo não somos autênticos Judas!
Nós os “bem-comportados” olhamos os ladrões crucificados como a ralé da sociedade. Nós, que vamos à missa ao domingo, não nos drogamos, não roubamos, nós os auto-suficientes da moral humana (que não da do Sermão da Montanha!), não podemos misturar-nos com esses ladrões, prostitutas e publicanos. E, no entanto, esses serão os primeiros no Reino dos céus (Mt 21,31). Não estará Jesus a virar tudo do avesso: aquela gentalha à nossa frente no Reino de Deus? Não é possível! Aquele ladrão, que “estarás comigo hoje no paraíso” (Lc 23,43), ainda vá! Mas porque tivemos de inventar o chavão de que ele era “o bom ladrão”!
Para ajudar Jesus a levar a cruz teve que ser requisitado um anónimo Cireneu, porque os discípulos não estavam lá. Foi o que aconteceu ao longo da história. No início, os cristãos morreram pela liberdade de consciência. Depois, durante séculos, estivemos na vanguarda. Finalmente, adormecemos à sombra do poder e da nossa organização humana, e, embora atentos aos pobres, ficámo-nos pela salvação das almas e fomo-nos esquecendo de ajudar as pessoas a serem mais felizes já aqui e de lutar contra as injustiças deste “vale de lágrimas”. Então, porque deixámos de ser sinal e instrumento de Deus na construção de um mundo novo, Deus, que “não faz acepção de pessoas” (Act 10,34), teve que chamar os Galileus, os Darwins, os Marxs, os Freuds e outros tantos Cirineus que ajudaram a avançar a história, embora nem sempre como Ele quereria. Mas, por Sua expressa vontade, a história sempre se irá construindo num diálogo dialéctico entre a vontade, infinitamente bondosa, de Deus e a vontade, finitamente ambígua, dos homens.
Quantas vezes temos sido Pedro a negar a nossa condição de discípulos de Jesus. Vamos à missa, até assinamos uns abaixo-assinados contra o aborto, mas depois a nossa vida familiar, profissional, social e a nossa atenção ao outro, que sempre é Cristo, não é confirmação convincente daquilo em que acreditamos. “O divórcio entre a fé e a vida é um dos mais graves erros do nosso tempo” (GS 43; cf. EN 20).
Depois vieram as exigências físicas de Tomé e os discípulos de Emaús que não reconheceram Jesus. Também nós passamos o tempo com lamentações, por vezes mais que os outros. Temos muita dificuldade em perceber que não bastam os olhos da cara ou da inteligência, mas que são precisos os olhos da fé para, em tempos de crise, testemunhar, na esperança e na alegria, a proposta libertadora de Jesus Cristo.
Mas será que temos fé ou que temos fé suficiente? Ou não passamos de homens de pouca fé (Mt 8,26) que cada vez a vamos degradando mais, de tal modo que o próprio Jesus nos deixou este desabafo terrível: “Quando o Filho do Homem voltar encontrará a fé sobre a terra?” (Lc 18,8).
“Já que ressuscitastes com Cristo, aspirai às coisas do alto, onde está Cristo” (Col 3,1). Aspiramos mesmo?