divórcio ou casamento eterno?...

2009-11-30

CinV (57) Terrorismo

As violências, qualquer que seja o seu tipo, são sempre um travão ao desenvolvimento, mas “de modo especial o terrorismo de índole fundamentalista, que gera sofrimento, devastação e morte, bloqueia o diálogo entre as nações e desvia grandes recursos do seu uso pacífico e civil” (28).
Na sua Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2006, Bento XVI já abordara o tema nestes termos: “Hoje em dia, a verdade da paz continua a ser comprometida e negada, de maneira dramática, pelo terrorismo que, com as suas ameaças e acções criminosas, é capaz de manter o mundo num estado de ansiedade e insegurança… A tremenda responsabilidade dos terroristas e a insensatez dos seus desígnios de morte… estão inspirados por um niilismo trágico e desconcertante, que o Papa João Paulo II descrevia com estas palavras: «Quem mata, com actos terroristas, cultiva sentimentos de desprezo pela humanidade, manifestando desespero pela vida e pelo futuro: nesta perspectiva, tudo pode ser odiado e destruído». E não é só o niilismo; também o fanatismo religioso, hoje frequentemente denominado fundamentalismo, pode inspirar e alimentar propósitos e gestos terroristas… Bem vistas as coisas, o niilismo e o fundamentalismo relacionam-se de forma errada com a verdade: os niilistas negam a existência de qualquer verdade, os fundamentalistas avançam a pretensão de poder impô-la com a força. Mesmo tendo origens diversas e sendo manifestações que se inserem em contextos culturais distintos, o niilismo e o fundamentalismo têm em comum um perigoso desprezo pelo homem e sua vida e, em última análise, pelo próprio Deus. Com efeito, na base deste trágico recurso está, em definitivo, a falsificação da verdade plena de Deus: o niilismo nega a sua existência e providencial presença na história; o fundamentalismo fanático desfigura a sua face amorosa e misericordiosa, substituindo-O por ídolos feitos à própria imagem. Ao analisar as causas do fenómeno contemporâneo do terrorismo, é desejável que, além das razões de carácter político e social, se tenham em conta também as mais profundas motivações culturais, religiosas e ideológicas” (9-10).

É certo que a violência sempre existiu e há-de existir.
Mas hoje, ao lado das violências "clássicas", estamos confrontados com um novo tipo, cujo paradigma é o atentado de 11 de Setembro (2001):
- novo, nos objectivos: destruições maciças, impacto simbólico (ataque ao poder económico, militar e político da maior potência mundial) e sobretudo um enorme choque psicológico que atinja o maior número de pessoas (transmissão em directo pela TV);
- novo, nas características: global, mas em rede hierarquizada, na sua organização, dimensão e objectivos; não reivindicativo de nada do que é habitual: independência de um território, cedências políticas, mudanças de regime; parece, mais, uma espécie de castigo: “a bandeira do Islão contra a bandeira da cruz” (Bin Laden);
- novo, até nas armas: avião carregado de combustível.

Estas novidades deviam levar-nos a pensar com maior profundidade as causas que, dada a complexidade do problema, são muitas e diversas:
- para uns, o ódio dos árabes aos Estados Unidos pelo seu apoio a Israel;
- para outros, a globalização por ter agravado as injustiças e as desigualdades à escala planetária, aumentando o desespero e o rancor de milhões de pessoas dispondo-as a revoltar-se e a alinhar nas soluções mais radicais, e por ter enfraquecido os Estados, ao desvalorizar a política e desmantelar os principais meios reguladores;
- para alguns, o choque de civilizações ou de religiões.
Para lá de tudo isto, penso que não tem sido suficientemente tido em conta o "sentimento árabe recalcado": o mundo árabe, desde que os ocidentais estraçalharam o império otomano, nunca mais recuperarou a sua identidade, não conseguiram unir-se o suficiente para terem uma liderança forte (a União Europeia pode ajudar a compreender este aspecto) e anseiam desesperadamente por retomar a enorme influência internacional que tiveram até aos inícios do século XX e que tem sido sucessivamente adiada devido a circunstâncias várias, a última das quais terá sido a criação do Estado de Israel.
Só há um caminho para romper as espirais da violência é o perdão, não só enquanto capacidade de perdoar mas também de pedir perdão, como ontem referi.

2009-11-29

Advento

O Avento é um dos tempos fortes do ano litúrgico. Muitos católicos e bastantes comunidades preparam os seus esquemas para uma caminhada espiritual que termina no Natal. Também a sociedade de consumo preapara a sua caminhada material, explorando o Natal, apelando aos sentimentos de amizade mas não de solidariedade, a dar inutilidades aos amigos mas não a partilhar alimentos, tempo, carinho com os mais pobres: é a sua campanha não para nos fazer irmãos ou cidadãos, mas consumistas. Mas é assim a sociedade que nós criámos.
No início deste Advento, a minha reflexão centra-se em três palavras chave.

Avento, tempo de espera, tempo de esperança, portanto. Tempo de esperança já cumprida: a vinda, em carne e osso, do nosso Deus, há tantos séculos esperada e anunciada. Tempo, portanto, de alegria, porque “Aquele que havia de vir” já veio. E veio tão discreto e tão humilde que ninguém o reconheceu: “A luz brilhou nas trevas, mas as trevas não a reconheceram. Veio para o qu era seu e os seus não o receberam. Mas a quantos o receberam, aos que nele crêem deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1, 5.11-12).
Mas é também uma esperança a realizar. Por isso, o “convertei-vos e acreditai no Evangelho” não é um convite mas um projecto de vida, um projecto de quem tem esperança, porque o Reino de Deus está a chegar: “Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo (Mc 1,15). Completou-se o tempo, porque o Reino de Deus já começou a chegar, mas vai chegando ao ritmo que nós ajudarmos a impor na história: o Reino de Deus é um dom, mas é também uma conquista.

Advento, tempo de amor. Foi por amor que Jesus veio e com ele o Reino de Deus começou a tomar a sua forma definitiva: “Deus amou de tal modo o mundo que lhe enviou o seu Filho Unigénito para que todo o que nele crê não se perca e tenha a vida terna” (Jo 3, 16). A sua vinda foi um constante exercício de amor, amor ao Pai, amor aos homens e mulheres do seu tempo: a ele sacrificou toda a sua vida até ao extremo. Não sabemos as dúvidas que teve, as tentações que venceu, sobretudo a última, tão bem retratada por Kazantzaki num livro comovente, arrebatador (A Última Tentação) e que nos mostra o quanto Deus foi humano, mesmo que os teólogos, os intelectuais de Deus, não concordem com essa sua interpretação do aniquilamento (kenosis) de um Deus que se faz homem para o homem se torne deus.
É tempo de amor porque nesse Reino que esperamos só se pode entrar pelo amor, sobretudo aos mais esquecidos e carenciados deste mundo (Mt 25, 31-46). Esta é uma realidade tão indesmentível, que os Padres da Igreja a plasmaram numa frase lapidar: “os pobres são os porteiros do céu”. Com tanto pobre na nossa sociedade de hoje, só não entra no Reino de Deus quem não quiser… amar a sério.

Advento, tempo de perdão. Não pode haver amor sem perdão. Só o perdão é capaz de quebrar a espiral das violências: essa espiral só pode terminar se alguém for capaz de a cortar perdoando. Por alguma razão, antes de terminar a sua passagem pela terra, do ponto mais alto da sua vida, Jesus teve aquele grito libertador: “Pai, perdoa-lhes porque não sabe o que fazem”. Quantas palavras e parábolas de perdão Jesus pronunciou ao longo da sua vida!
Termino citando João Paulo II: “A proposta do perdão não é de imediata compreensão nem de fácil aceitação; é uma mensagem de certo modo paradoxal. De facto, o perdão implica sempre uma aparente perda a curto prazo, mas garante, a longo prazo, um lucro real. Com a violência é exactamente o contrário: opta-se por um lucro de vencimento imediato, mas prepara para depois uma perda real e permanente. À primeira vista, o perdão poderia parecer uma fraqueza, mas não: tanto para ser concedido como para ser aceite, supõe uma força espiritual e uma coragem moral a toda a prova. Em vez de humilhar a pessoa, o perdão leva-a a um humanismo mais pleno e mais rico, capaz de reflectir em si um raio do esplendor do Criador” (Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2002, 10).

2009-11-28

CinV (56) Defesa da vida espiritual: liberdade religiosa (nº 29)

Para fundamentar a afirmação de que “a negação da liberdade religiosa está intimamente relacionada com o desenvolvimento”, o Papa utiliza argumentos de ordem negativa e de ordem positiva.

Argumentação pela positiva
Deus criou o ser humano à sua imagem; por isso:
- é o garante do verdadeiro desenvolvimento do homem;
- fundamenta a sua dignidade transcendente;
- alimenta o seu anseio constitutivo de «ser mais».
Efectivamente “O homem não é um átomo perdido num universo casual, mas é uma criatura de Deus, à qual quis dar uma alma imortal e que desde sempre amou. Se o homem fosse fruto apenas do acaso ou da necessidade, se as suas aspirações tivessem de reduzir-se ao horizonte restrito das situações em que vive, se tudo fosse somente história e cultura e o homem não tivesse uma natureza destinada a transcender-se numa vida sobrenatural, então poder-se-ia falar de incremento ou de evolução, mas não de desenvolvimento”.

Argumentação pela negativa
1. Lutas por motivações religiosas
Muitos conflitos religiosos que, “com frequência hoje fazem apelo ao santo nome de Deus para matar”, por vezes não passam de uma “cobertura para razões de outro género, tais como a sede de domínio e de riqueza”. Mas acarretam sempre graves consequências, nomeadamente: “refreiam o desenvolvimento autêntico e impedem a evolução dos povos para um bem-estar sócio-económico e espiritual maior”. O Papa faz aqui uma referência especial ao terrorismo, que tratarei num comentário à parte.

2. Indiferentismo religioso e Ateísmo prático
“A promoção programada da indiferença religiosa ou do ateísmo prático por parte de muitos países contrasta com as necessidades do desenvolvimento dos povos, subtraindo-lhes recursos espirituais e humanos”.

a) “Quando o Estado promove, ensina ou até impõe formas de ateísmo prático” acaba por influenciar fortemente os comportamentos das pessoas e das sociedades:
- “tira aos seus cidadãos a força moral e espiritual indispensável para se empenhar no desenvolvimento humano integral;
- impede-os de avançarem com renovado dinamismo no próprio compromisso de uma resposta humana mais generosa ao amor divino".
O Papa aqui refere a sua primeira encíclica, onde afirma que "dado que Deus foi o primeiro a amar-nos pelo facto de Deus, agora o amor já não é apenas um «mandamento», mas é a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro”, particularmente “num mundo em que ao nome de Deus se associa às vezes a vingança ou mesmo o dever do ódio e da violência, esta é uma mensagem de grande actualidade e de significado muito concreto” (DCE 1).

b) Além disso, “os países economicamente desenvolvidos ou os emergentes exportam para os países pobres, no âmbito das suas relações culturais, comerciais e políticas, esta visão redutiva da pessoa e do seu destino. É o dano que o superdesenvolvimento acarreta ao desenvolvimento autêntico, quando é acompanhado pelo subdesenvolvimento moral”.

2009-11-27

CinV (55) Defesa vida “física” (nº 28)

Bento XVI verifica que o respeito pela vida está directamente ligado ao problema do desenvolvimento dos povos e de um modo cada vez mais relevante, “obrigando-nos a alargar os conceitos de pobreza e subdesenvolvimento às questões relacionadas com o acolhimento da vida, sobretudo onde o mesmo é de várias maneiras impedido”. E aqui remete-nos para várias passagens da Evangelium vitae, nomeadamente aquela em que se afirma: “Se depois o olhar se alarga ao horizonte mundial, como não pensar que a afirmação dos direitos das pessoas e dos povos, verificada em altas reuniões internacionais, se reduz a um estéril exercício retórico, se lá não é desmascarado o egoísmo dos países ricos que fecham aos países pobres o acesso ao desenvolvimento ou o condicionam a proibições absurdas de procriação, contrapondo o progresso ao homem? Porventura não é de pôr em discussão os próprios modelos económicos, adoptados pelos Estados frequentemente também por pressões e condicionamentos de carácter internacional, que geram e alimentam situações de injustiça e violência, nas quais a vida humana de populações inteiras fica degradada e espezinhada?” (EV 28).
O Papa explicita melhor as relações entre o direito à vida e este “alargamento de conceitos”, analisando o comportamento de países e organizações não governamentais (ONGs):
- nos países menos desenvolvidos, verifica-se, por um lado, que a “pobreza provoca ainda altas taxas de mortalidade infantil” e, por outro, a existência de “práticas de controle demográfico por parte dos governos, que muitas vezes difundem a contracepção e chegam mesmo a impor o aborto”;
- nos mais desenvolvidos, “são muito difusas as legislações contrárias à vida, condicionando já o costume e a práxis e contribuindo para divulgar uma mentalidade antinatalista que muitas vezes se procura transmitir a outros Estados como se fosse um progresso cultural”;
- algumas ONGs “trabalham activamente pela difusão do aborto, promovendo nos países pobres a adopção da prática da esterilização, mesmo sem as mulheres o saberem”;
- há ajudas ao desenvolvimento que não se livram da suspeita de estarem “associadas com determinadas políticas sanitárias que realmente implicam a imposição de um forte controle dos nascimentos”.
É neste contexto que aparece a única referência à eutanásia, denunciando não só as legislações que a legalizam, mas também “as pressões de grupos nacionais e internacionais que reivindicam o seu reconhecimento jurídico”.

Feitas as denúncias, segue-se a tese: “A abertura à vida está no centro do verdadeiro desenvolvimento”. E os argumentos são diversificados:
- a perda da noção do bem comum: “Quando uma sociedade começa a negar e a suprimir a vida, acaba por deixar de encontrar as motivações e energias necessárias para trabalhar ao serviço do verdadeiro bem do homem”;
- a desvalorização da cultura da vida em todos os âmbitos: “Se se perde a sensibilidade pessoal e social ao acolhimento de uma nova vida, definham também outras formas de acolhimento úteis à vida social”;
- o empobrecimento moral e da solidariedade: “O acolhimento da vida revigora as energias morais e torna-nos capazes de ajuda recíproca”;
- o desvio de recursos para interesses egoístas, em vez de os pôr ao serviço das necessidades alheias: “Os povos ricos, cultivando a abertura à vida, podem compreender melhor as necessidades dos países pobres, evitar o emprego de enormes recursos económicos e intelectuais para satisfazer desejos egoístas dos próprios cidadãos e promover, ao invés, acções virtuosas na perspectiva duma produção moralmente sadia e solidária, no respeito do direito fundamental de cada povo e de cada pessoa à vida”.

2009-11-26

CinV (54) Direito à vida

A discussão sobre o direito à vida não pode esgotar-se no aborto e na eutanásia. Deve estender-se a todo o arco da vida humana, como aliás, agora, já é frequente nos documentos do Magistério. Contudo, a minha reflexão de hoje tem subjacente esta redução, até porque se trata de um assunto importante no diálogo da Igreja com a sociedade.
Numa sociedade secularizada e plural nas suas opções éticas, tenho sempre dificuldade em discutir este tema porque não sei se estamos a fazê-lo no plano ético ou legislativo e porque me sinto muito dividido e com mais dúvidas do que certezas quanto à legislação humana.
Claramente, e não só como cristão, para mim não há dúvidas, quando me coloco no plano ético. E considero que a Igreja deve ser fiel às suas convicções, procurando estar aberta aos sinais dos tempos, dada a sua historicidade, e ser capaz de responder de modo adequado a cada época às eternas questões das pessoas (cf. GS 4).
O Concílio, na linha de uma tradição bimilenar, definiu o aborto como “crime abominável” (GS 51). E sobre isto não tenho dúvidas, embora não possa nem deva condenar ninguém.
No plano legislativo, se bem entendo, o que se tem discutido, utilizando uma linguagem popular, é se a mulher que aborta (o homem, nestas coisas, não é considerado, como se nada tivesse a ver com o caso!) deve ou não ser penalizada. São usados argumentos de ordem higiénico-sanitária, do âmbito psicológico e também do exercício da “compaixão”, área a que sou muito sensível, dado o exemplo de Jesus. Essa sensibilidade pode encontrar-se também no próprio Código de Direito Canónico: por um lado, faz uma afirmação absoluta - “Quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae” (can. 1398) - que naturalmente vincula todos os católicos; por outro, apresenta 10 circunstâncias atenuantes (can. 1324) e 7 nas quais não há lugar a qualquer pena (can. 1323). Se a Igreja reconhece tantas atenuantes, é aceitável que uma sociedade civil, onde se cruzam tantas mundividências, aprove legislação, que seja, embora sempre no plano da penalização civil e nunca no ético, diferente da da Igreja.
Além disso, a própria Igreja admite situações em que este direito pode ser preterido: uma, muito recordada, é, embora apenas em situações extremas, a da aceitação da pena de morte (Catecismo, nº 2267). Mas há outras situações, muito mais delicadas e difíceis de entender pelos não cristãos. Uma é a morte pelo martírio em defesa da fé: “a vida do corpo na sua condição terrena não é um absoluto para o crente, de tal modo que lhe pode ser pedido para a abandonar por um bem superior” (EV 47). Aliás, absoluto, para nós, só Deus. Um outro exemplo: a morte é aceitável e até recomendada, embora de outros tempos (agora não sei como é!?), quando está em perigo a preservação da virgindade, de que S.ta Maria Goretti é o exemplo mais conhecido.

O debate complica-se com o problema do início da vida, que para mim é a concepção. Mas nem todos os legisladores pensam o mesmo. Nem todas as instâncias internacionais sabem bem quando começa a vida humana. Há até moralistas católicos que falam não do momento da concepção, mas da nidificação. Aliás, a Igreja, que sempre condenou o aborto, logo desde o princípio, com o “não matarás o filho no seio de sua mãe” (Didaké I,2; datado de finais do séc. I, inícios do II), proclamou, num dos concílios de Mâcon (séc. VI), se não estou em erro e cito de cor, que “a alma era infundida por Deus no corpo do “homem” 30 dias depois da concepção e no da “mulher”, 40 dias depois (!?)”.
Concluindo: 1) sou decididamente contra o aborto; 2) particularmente os cristãos devem ter consciência que qualquer lei despenalizadora não autoriza nenhum cristã(o) a praticar o aborto; 3) sinto-me dividido, no plano cívico, porque é minha obrigação cristã amar toda a gente, nomeadamente estas mulheres, vítimas de circunstâncias várias e tantas vezes em condições que escapam ao seu controlo, e porque o meu / nosso modelo de vida deve ser o modo como Jesus sempre olhava amorosamente os mais maltratados pela sociedade, civil ou religiosa.

2009-11-25

Violência doméstica

Hoje é um dia especial para recordar as mulheres que estão sujeitas a maus tratos especialmente dentro de suas casas. Só um à parte, não haverá também homens vítimas de violência doméstica? Mas … passemos à frente.
É sabido que há muitas formas de violência: física, psicológica, desinteresse, desvalorização.

Hoje gostaria de me referir a uma mulher, vítima deste último tipo de violência, que morreu há quase cem anos (12.Dez.1921): a norteamericana Henrietta Leavitt.
Depois de se ter licenciado, entusiasmou-se com a Astronomia, tendo tirados vários cursos nesta área. Em 1895 entrou para o Harvard College Observatory como voluntária, onde graças às suas qualidades e espírito de iniciativa acabou por ser admitida no quadro permanente.
Antes do aparecimento dos computadores, os cálculos matemáticos e as informações astronómicas eram realizados por profissionais chamados “calculadores”. Aliás era uma prática seguida nas outras ciências experimentais. Regra geral, os calculadores, em astronomia, eram mulheres, não tanto pelo seu cuidado e paciência, mas sobretudo porque o salário das mulheres era menor que o dos homens (afinal avançou-se pouco nestes cem anos quanto ao “trabalho igual, salário igual”!).
A sua função consistia em elaborar um catálogo fotográfico do Observatório, medindo o brilho de estrelas. Ao fazê-lo, verificou que havia muitas estrelas variáveis nas galáxias Nuvens de Magalhães, que são (sabe-se hoje) satélites da nossa Galáxia. De entre as milhares de estrelas que catalogou descobriu um tipo especial, as Cefeidas, que tinham a particularidade de não só ter um grande brilho (são estrelas supergigantes, 4 a 15 vezes mais maciças que o Sol e de 100 a 30 000 vezes mais brilhante) mas sobretudo porque cada uma tinha um período constante na variação do seu brilho. H. Leavitt, que descobriu e catalogou 1777 estrelas variáveis, acabou por se aperceber que as variáveis com maior brilho tinham um período de variação grande enquanto as de menor brilho tinham um período pequeno.
A sua grande intuição levou-a a verificar que o brilho era directamente proporcional ao período. E depois veio o passo lógico. Atendendo a que todas estas estrelas estavam à mesma distância da Terra, já que todas pertenciam às Nuvens de Magalhães, concluiu que poderia passar da relação brilho aparente / período para a relação brilho absoluto / período.Qual a vantagem de tudo isto? É sabido que o brilho aparente é inversamente proporcional ao quadrado da distância da fonte. Bastava comparar o brilho aparente com o brilho real para determinar a sua distância. Assim, obteve um método seguro para medir a distância da Terra a qualquer galáxia que contivesse Cefeidas.
Foi graças a este método, que media as distâncias, e ao efeito de Doppler, que media as velocidades, que Hubble pode construir a sua lei, fundamental para o estudo da evolução do Universo.
Mas o que queria recordar hoje, para lá do salário menor que o dos homens, é que quando Leavitt foi apresentar o seu raciocínio ao chefe, ele respondeu-lhe: “A tua função é fazer tabelas não é fazer ciência!”
Afinal não passava de uma “mulher a dias”.

2009-11-24

CinV (53) Cultura da vida

Antes de olhar o nº 28 da encíclica, gostaria de fazer dois comentários prévios.

Hoje vivemos uma espécie de cultura da morte. Primeiro que tudo a existência de guerreiros, governantes ou comandantes (a história que eu estudei valorizava as guerras, sobretudo as vitórias, e educava para o ódio aos inimigos, especialmente os espanhóis, fomentando uma mentalidade militarista), em especial os senhores da guerra que mandam crianças para a morte. Depois, falo da condução nas nossas estradas. Da falta de cuidados de tantos operários que, por culpa própria ou alheia, não se protegem devidamente. Da facilidade com que se mata para assaltar um posto de gasolina ou roubar meia dúzia de euros. Da desproporção que há entre os mortos dos países desenvolvidos e os milhões de mortes dos países pobres por guerra, fome e sede ou doenças tão fáceis de curar. Tudo isto aponta para uma cultura da morte, expressão que João Paulo II, na encíclica Evangelium vitae (25.Março,1995), repete continuamente (21, 24, 26, 28, 50, 87, 95, 100), contrapondo uma “cultura da vida”, à qual dedica todo o capítulo IV (78-101) e de que procurarei fazer um pequeno resumo, dividido em 4 partes.

Anunciar o Evangelho da Vida (80-82)
- a vida humana, dom precioso de Deus, é sagrada e inviolável;
- não só não deve ser eliminada mas deve ser protegida com todo o cuidado;
- o seu sentido está no amor dado e recebido;
- a sociedade deve respeitar, defender e promover sempre a dignidade de cada pessoa.

Celebrar o Evangelho da Vida (83-86)
- ter um olhar contemplativo sobre a vida, este prodígio sempre original e enternecedor;
- agradecer, através da oração pessoal e comunitária, o dom da vida;
- viver a existência quotidiana no amor pelos outros e na doação de si próprio.

Servir o Evangelho da Vida (87-91)
- cuidar do outro enquanto pessoa confiada por Deus à nossa responsabilidade;
- fazer-nos próximos de cada pessoa, especialmente dos mais carenciados;
- rejeitar unilateralismos e discriminações: a vida humana é sagrada em todas as situações;
- criar e desenvolver acções concretas e estruturas de formação e de apoio à vida, que inclua mães solteiras e casais em dificuldades, toxicodependentes, menores, inválidos, idosos, doentes mentais, doentes da sida;
- humanizar os hospitais, as clínicas e as casas de saúde;
- incentivar as pessoas para que se empenhem no Voluntariado;
- utilizar todas as formas de animação social e de pressão sobre os governantes para que
- defendam a vida através de disposições legislativas eficazes,
- façam da política familiar o ponto fulcral e o motor de todas as políticas sociais;
- resolver o problema demográfico
- não com a contracepção, esterilização e aborto,
- mas com uma distribuição de riqueza mais justa entre as pessoas e os povos.

Para uma viragem cultural (95-101)
- renovar a cultura da vida no seio das comunidades cristãs, onde há muita incoerência;
- formar a consciência moral, educando
- os jovens para uma verdadeira sexualidade e o verdadeiro amor;
- os cônjuges para a procriação responsável ;
- todos para o primado do ter sobre o ter, da pessoa sobre as coisas;
- mobilizar todos os agentes educativos para esta nova cultura da vida.

2009-11-23

Cinv (52) Direito à água e ao alimento (nº 27)

Os direitos à água e ao alimento têm, como é evidente, um papel imprescindível na luta contra a fome, mas não só. Eles revestem também “um papel importante para a consecução de outros direitos, a começar pelo direito primário à vida. Por isso, é necessário a maturação de uma consciência solidária que considere a alimentação e o acesso à água como direitos universais de todos os seres humanos, sem distinções nem discriminações”. Já, no documento da Comissão Pontifícia Justiça e Paz, Água, elemento essencial para a vida (Março.2006), se podia ler: “A água é muito mais do que uma simples necessidade humana básica. É um elemento essencial e insubstituível para assegurar a continuação da vida. A água está intrinsecamente unida aos direitos fundamentais do homem, como o direito à vida, à alimentação e à saúde. O acesso à água potável é um direito humano fundamental”.
Sobretudo no que se refere à água, a opinião pública ainda não tomou a mais pequena consciência da sua importância. Para quem vive na nossa sociedade de abundância, trata-se de um produto tão comezinho, tão banal, que nos damos ao luxo de regar os jardins com ela, de alimentar campos de golfe, de lavar as mãos com a torneira aberta e tantos outros hábitos depredadores. Isto já para não falarmos dos gastos, necessários mas feitos de um modo irracional e depredador, no âmbito da agricultura sobretudo tradicional.

Já quase não bebemos água da torneira. Quando vamos a um café, pedimos logo uma garrafa de água. Isto é um caso sintomático. O que gastamos com essa água, que custa tanto ou mais que o gasóleo, daria para acabar com a pobreza extrema em todo o mundo. Basta referir alguns números, que até andam aí pela Net.
Por exemplo, no ano de 2004, os americanos consumiram 26 mil milhões de litros de água engarrafada. Para fabricar os 28 mil milhões de garrafas de plástico foram necessários 17 milhões de barris de petróleo, o suficiente para abastecer de combustível 100 mil carros por ano. A produção destas garrafas causou a emissão de 2,5 milhões de toneladas de CO2 para a atmosfera e os plásticos abandonadas não só poluíram o solo como contaminaram os lençóis freáticos (águas subterrâneas que alimentam as nossas fontes e rios). Para lá de todos os efeitos poluentes, os americanos gastaram 100 mil milhões de dólares nesta água engarrafada. Ora, segundo a ONU, bastariam 80 mil milhões de dólares para dotar de cuidados básicos todos os pobres da terra.
Mas há também problemas políticos sérios e há quem diga que as próximas “grandes” guerras serão por causa da água, particularmente no Médio Oriente. Nós próprios, os portugueses, estamos também dependentes da “boa vontade” dos espanhóis cumprirem os tratados sobre a água, por também não temos que chegue, se não forem os rios internacionais. Além disso, a dessalinização da água do mar ainda implica preços proibitivos.
Se passarmos para os países subdesenvolvidos, então a penúria de água é aflitiva: não só exige excessivo tempo para se deslocar a fontes ou poços, mas muita dela é imprópria para consumo: são muitos os milhares de mortes causadas pela própria água. Muitas doenças, algumas mortais outras incapacitantes estão-lhe associadas.
Bento XVI chama a atenção para o próprio interesse dos países ricos: “Sustentando, através de planos de financiamento inspirados pela solidariedade, os países economicamente pobres, para que provejam eles mesmos à satisfação das solicitações de bens de consumo e de desenvolvimento dos próprios cidadãos, é possível não apenas gerar verdadeiro crescimento económico mas também concorrer para sustentar as capacidades produtivas dos países ricos que correm o risco de ficar comprometidas pela crise”.

2009-11-22

CRISTO REI: QUE REI?

Esta foi a reflexão que preparei para o jornal. Mas, como muitos não o lêem, resolvi "postá-lo" aqui no blog.

Gostaria de partilhar a minha reflexão sobre a festa de Cristo Rei, Rei-Deus que há dois mil anos quis, por Amor incondicional e gratuito, irromper visivelmente na história dos homens.
Ao olharmos para este Deus que se anulou para se tornar homem como nós, vemos muito pouco de rei. Nasceu não se sabe onde; cresceu como os miúdos da sua idade, com a diferença de ter escapado a um massacre e de ter de fugir para longes terras; viveu como nós, excepto no pecado. Teve uma vida inteira tão discreta que, quando decidiu assumir-se como anunciador de uma Boa Nova Libertadora, foi logo apontado a dedo pelos seus vizinhos e amigos: “Não é este o filho do carpinteiro?”. Por entre a multidão anónima dos que se iam baptizar, só João Baptista desconfiou quem seria Ele, pois, apesar de se achar indigno de lhe desapertar as correias do sapato, mais tarde sentiu-se obrigado a mandar perguntar-lhe “se era ele que havia de vir ou deviam esperar outro”. Endureceu na solidão, assassina do corpo e da alma, que é o deserto.
Depois tornou-se conhecido, mas não por boas razões para os sábios e o povo da época.
Era assim uma espécie de sem-abrigo que não tinha onde reclinar a cabeça. Não ligava muito às exigentes exigências da Lei que os homens sagrados tinham construído manipulando a Palavra de Deus. Falava com as mulheres em público, reconhecendo assim a sua igual dignidade, o que era inadmissível; denunciava a carta do divórcio porque o homem não era dono da mulher; perdoou à mulher adúltera, escandalizando escribas e fariseus zelosos respeitadores da lei, mas igualmente clientes seus. Convivia com a ralé da sociedade. Comia e bebia com os marginalizados: partilhar a mesa era sinal da hospitalidade e da amizade. Dava prioridade aos publicanos e às prostitutas, prometendo-lhe os primeiros lugares no seu Reino (“Que Reino?” sonhariam eles!). Tocava nos intocáveis, os leprosos, absolutamente excluídos da sociedade. Zurzia a roubalheira e a desonestidade dos donos do Templo, único lugar onde Deus podia ser adorado. Tudo isto lhe trouxe “mau nome” aos bem-comportados da época.
Mas também a sua família, com grande sofrimento de Maria sua mãe, que meditava todas as suas palavras no seu coração, o abandonou porque o considerava maluco. Correu o perigo de ser atirado de um alto rochedo, de que nem os anjos o salvariam, porque ele recusava tal ajuda.
O comportamento dos seus discípulos deve tê-lo feito sofrer muito e multiplicado a sua solidão: uns, deixaram-no porque tinha palavras tão duras que não podiam suportá-las; outros exigiam que lhes desse um lugar de poder; outros traíram-no, entregando-o às autoridades, adormecendo quando ele sofria uma agonia insuportável, negando-o quando foi preso, fugindo quando foi crucificado. Mesmo depois de ressuscitado, os discípulos de Emaús não o (re)conheceram; Tomé não acreditou naquelas balelas dos colegas; só Madalena, uma mulher e, portanto, sem qualquer credibilidade, o conheceu, o amou e o testemunhou junto dos apóstolos e discípulos que não quiseram acreditar nela. Três anos passaram juntos e no fim não tinham percebido nada, pois no momento da Ascensão ainda perguntavam, com “ar de estúpidos”: “Então é agora que vais libertar Israel?” das legiões romanas, pensariam eles certamente.
Foi odiado pelos que esperavam um Messias guerreiro e libertador. Foi perseguido pelos sacerdotes, pois pregava com uma autoridade que eles não tinham, e pelos que temiam que lhes tirasse o poder: “Mas tu és rei?”. Foi amado pelo povo quando lhes dava pão e fazia milagres; e odiado pelo mesmo povo quando os poderosos o manipularam, como tão bem eles sabem fazer.
Quis “apenas” denunciar uma sociedade injusta, corrupta, marginalizadora, incapaz de respeitar a dignidade inviolável de cada pessoa, propondo o modelo das Bem-aventuranças. Estigmatizou os poderosos, civis e religiosos. E eles não aguentaram: como é que um Zé-niguém lhes estava a fazer frente sem armas nem exército? Só havia uma solução: matá-lo.
Humanamente Jesus foi um fracassado. O fracasso atingiu o clímax no alto da cruz, suplício atroz destinado apenas aos mais reles da sociedade, tão humilhante que era escândalo para judeus e loucura para pagãos. Mas foi aí também que ele mostrou que não era um fracassado, porque cumprira, até à morte, a vontade do Pai (“Tudo está consumado (cumprido como querias)”) e porque punha o perdão como suporte de qualquer sociedade: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”. O fracasso da cruz anunciava já a glorificação do Rei.
Pois é este farrapo humano, porque desprezado, vilipendiado, odiado, abandonado, que viveu uma solidão humana que não podemos imaginar, que Deus ressuscita. E ao ressuscitá-lo está a dar-lhe razão contra todos os poderes e algozes do mundo. Porque na cruz estavam todas as vítimas da história, os esquecidos, os perseguidos, os excluídos, a Ressurreição veio dizer que o futuro pertence a estes, porque Aquele crucificado é efectivamente Rei. Rei, como explicou a Pilatos, “mas não deste mundo”, onde “o peso do pecado” parece sobrepor-se ao “sopro do Espírito”. Rei, sim, mas de um “reino eterno e universal: reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz” (GS 39).
É este o REI, que recusa ser como os reis deste mundo, que queremos ter como modelo de vida ou preferimos um Rei, triunfal Pantocrator, que nos permita fechar, de consciência tranquila e de um modo humanamente digno, o nosso ciclo litúrgico?

2009-11-21

CinV (51) O desafio da Reforma Agrária

O documento do Magistério ontem referido propõe-se alertar, aos mais diferentes níveis, para uma profunda tomada de consciência relativamente aos dramáticos problemas humanos, sociais e éticos, que o fenómeno da concentração e apropriação indevidas da terra levanta, pois trata-se de um problema que atinge a dignidade de milhões de seres humanos e priva o nosso mundo de uma perspectiva de paz.

Começa por fazer uma avaliação crítica das opções de política económica, analisar as dificuldades institucionais e estruturais e avaliar as consequências económicas, sociais, políticas e ambientais relativas à propriedade fundiária.

Reafirma o princípio do destino universal dos bens e o direito à propriedade privada mas sempre na dependência deste princípio. É oportuno aqui recordar este princípio fundamental da DSI que é o destino universal dos bens. E bastarão duas pequenas citações: 1) “Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e de todos os povos”; por isso, “quem se encontra numa extrema necessidade tem o direito de tomar das riquezas dos outros o necessário para si” (GS 69); 2) “A origem de tudo o que é bem é o próprio acto de Deus que criou a terra e o homem e ao homem deu a terra para que a domine com o seu trabalho e goze dos seus frutos. Deus deu a terra a todo o género humano, para que ela sustente todos os seus membros sem excluir nem privilegiar ninguém. Está aqui a raiz do destino universal dos bens da terra.” (CA 31). Note-se no “sem excluir nem privilegiar ninguém”.

Denuncia como “intrinsecamente ilegítimo”:
- o latifúndio, porque, devido ao mau aproveitamento, não contribui para aumentar a produção agrícola, contrasta com o destino universal dos bens e nega a uma multidão de pessoas o direito de participar, com o seu trabalho, na satisfação de necessidades próprias e da comunidade;
- a apropriação indevida e a concentração da terra, porque aumenta a desigualdade na distribuição dos bens da terra e é um claro sinal da desobediência do homem ao mandamento de Deus de ser o guardião e o sábio administrador da criação.

Considera a reforma agrária, apesar da sua complexidade, um instrumento necessário, que, para ser eficaz, deve respeitar um conjunto de condições:
- dequada oferta de tecnologias apropriadas e de infra-estruturas rurais;
- fácil acesso ao crédito, nomeadamente através da constituição de bancos cooperativos locais;
- significativos investimentos em infra-estruturas e serviços públicos, tais como a saúde, o ensino, os transportes públicos, o abastecimento de água potável;
- particular atenção à posição crucial da mulher na produção agrícola e na economia dos países em vias de desenvolvimento;
- apoio efectivo à cooperação na criação e no desenvolvimento de empresas agrícolas originadas pela redistribuição da terra;
- reconhecimento, respeito e promoção dos direitos dos povos indígenas, por causa das estreitíssimas relações entre a terra e os modelos de cultura, de desenvolvimento e de espiritualidade destes povos;
- empenhamento institucional do Estado e das organizações internacionais.

Como já tinha referido, este documento (Para uma melhor distribuição da terra: o desafio da Reforma Agrária) foi publicado pela Comissão Pontifícia Justiça e Paz, a 23.Nov.1997, isto é, faz 12 anos daqui a dois dias.

2009-11-20

Cinv (50) Imoralidade da fome (nº 27)

Há muitas regiões onde continua a aumentar a “insegurança extrema de vida, que deriva da carência de alimentação”. E não se trata de uma mera consequência da crise, embora seja agudizada por ela.
Bento XVI começa por afirmar que se trata de um irrenunciável “imperativo ético”, especialmente para toda a Igreja, já que “é resposta aos ensinamentos de solidariedade e partilha do seu Fundador, o Senhor Jesus”; mas também para toda a humanidade, porque:
- elimina pessoas, a grande riqueza de dispomos: “a fome ceifa ainda inúmeras vítimas entre os muitos Lázaros, a quem não é permitido, como esperara Paulo VI, sentar-se à mesa do rico avarento”;
- torna mais difícil a preservação da paz e a subsistência da Terra.
O imperativo ético torna-se mais “imperativo” porque hoje, a fome não depende da escassez de recursos naturais. Efectivamente, nunca como hoje a humanidade dispôs de tanto alimento, ao ponto de até o destruir para poder manter os seus elevados preços. E não vale a pena argumentar com a recente bolha cerealífera, porque todos sabemos como a especulação e os interesses de meia dúzia foram os responsáveis por mais esta vergonhosa “lesa humanidade”. Os maiores obstáculos são de “natureza institucional; isto é, falta um sistema de instituições económicas que seja capaz de garantir um acesso regular e adequado, do ponto de vista nutricional, à alimentação e à água e também de enfrentar as carências relacionadas com as necessidades primárias e com a emergência de reais e verdadeiras crises alimentares provocadas por causas naturais ou pela irresponsabilidade política nacional e internacional”.

Feita esta introdução, o Papa aponta três linhas de intervenção:
1ª. Eliminar as causas estruturais, “promovendo o desenvolvimento agrícola dos países mais pobres por meio de investimentos em infra-estruturas rurais, sistemas de irrigação, transportes, organização dos mercados, formação e difusão de técnicas agrícolas apropriadas, isto é, capazes de utilizar o melhor possível os recursos humanos, naturais e sócio-económicos mais acessíveis a nível local, para garantir a sua manutenção a longo prazo”;

2ª Envolver as comunidades locais nas soluções e decisões quanto ao uso da terra: “poderia revelar-se útil considerar as novas fronteiras abertas por um correcto emprego das técnicas de produção agrícola, tanto as tradicionais como as inovadoras, desde que as mesmas tenham sido, depois de adequada verificação, reconhecidas oportunas, respeitadoras do ambiente e tendo em conta as populações mais desfavorecidas”. Portanto, não se trata de meras transposições de experiências positivas nos países desenvolvidos para os países carenciados. Estas transposições lineares e directas esquecem muitas vezes a carga cultural dos locais que não interiorizam o bem que dali lhes pode vir, a falta de pessoas capazes de dar o adequado uso a novas tecnologias e métodos, a falta de profissionais e de peças suplentes que façam uma correcta e atempada manutenção; a potencial inadaptibilidade de sementes ou plantas a esses terrenos, etc.

3ª Implementar “uma equitativa reforma agrária nos países em vias de desenvolvimento”. Esta temática mereceu da Comissão Pontifícia Justiça e Paz um célebre documento Para uma melhor distribuição da terra: o desafio da Reforma Agrária (23.Nov.1997), que deixou algumas pistas que não mereceram a devida atenção.
Apesar de ter uma dúzia de anos, ainda vale a pena recordá-lo.

2009-11-19

CinV (49) D. Quixote

Armado com estas convicções, cá fui escrevendo e falando dos pobres e da pobreza. E, porque as palavras já nada diziam e tinham secado a fonte criativa, resolvi fazer duas ou três propostas.
Na primeira, que aconteceu há uns dez anos, propus que, para celebrar mais um aniversário, este muito especial, do nascimento de Jesus, fizéssemos um bolo com 2000 velas. Cheio de inocência e utopismo, propus que a Igreja construísse 2000 casas que, em nome desse Jesus, ofereceria à sociedade civil, como oferece a Palavra libertadora. Para realizar esta iniciativa a Igreja podia certamente contar com centenas ou milhares de projectistas católicos, construtores católicos, trabalhadores católicos e poderia dar pública utilidade a tantos dos seus terrenos mal aproveitados. A ideia até mereceu um programa televisivo (70 x7 ou Ecclesia, já não me recordo), mas não deu nada. Em apoio da ideia, havia aquelas palavras "impoliticamente correcyas" e até dolorosas para muitos, de João Paulo II: “Faz parte do ensinamento e da prática mais antiga da Igreja a convicção de estar obrigada, por vocação — ela própria, os seus ministros e cada um dos seus membros — a aliviar a miséria dos que sofrem, próximos e distantes, não só com o «supérfluo», mas também com o «necessário». Nos casos de necessidade, não se podem preferir os ornamentos supérfluos das igrejas e os objectos do culto divino preciosos; ao contrário, poderia ser obrigatório alienar estes bens para dar de comer, de beber, de vestir e casa a quem disso está carente” (SRS 31).
Mais tarde, surgiu-me outra ideia a partir da afirmação de S. João Crisóstomo, quando escreveu: “(Na nossa cidade, Constantinopla) há uns 10% de ricos, outros 10% de pobres e o resto é classe média. Dividamos, pois, os necessitados por toda a gente da cidade e veremos quão grande é a nossa vergonha. Porque, embora os que são muito ricos sejam poucos, os que os seguem em riqueza são muitos, e os pobres são muito menos que estes”. Como na altura, tínhamos 20% de pobres (1/5), desafiva á associação de 4 famílias podia cuidar de 1 família pobre. Obtive uma resposta!
Recentemente, depois de um artigo na revista Além-Mar, uma leitora escreveu: “Li o texto “Sinais” … com o título “Dois Cêntimos para amar”. Não pude ficar indiferente ao que li… Aceitei o desafio do José Dias beber menos uns cafés e envio 30 euros”. Se alguém estiver interessado no tal artigo, posso reproduzi-lo aqui.

Tenho pesado muitas vezes que não é tanto de palavras que nós precisamos, mas de obras. Ou talvez não seja bem assim. O que precisamos é de mudar de mentalidades, de superar preconceitos (os pobres são preguiçosos, oportunistas, não são credíveis, querem é viver à custa dos outros; a pobreza é uma fatalidade, ...), de reconhecer o enorme peso de uma sociedade organizada para criar pobreza. Além disso, alguém tem de ser voz de tantas vítimas silenciosas e silenciadas (JM 20). Até os que estudam este fenómeno correm o risco de olhar só com a inteligência mas não com o coração para esta realidade inaceitável.
Ora a grande solução é o amor, que nos deve levar a lutar para que cada pobre perceba e seja capaz de se “promover” e por uma organização social que não seja geradora de pobreza e exclusão mas de inclusão e de enriquecimento mútuo.
Por isso, continuo a escrever, mesmo não fazendo muito. Em 30 anos de escrita e alguma partilha, não sei o que aconteceu. Mas vou continuar, com esperança e confiança, até porque sei que “é um o que semeia e outro o que colhe” (Jo 4,37), que não passo de um instrumento (demasiado enferrujado?) do Espírito, que “orienta o curso dos tempos e renova a face da terra” (GS 26) e que a sociedade perfeita só existirá no Reino de Deus. Vou continuar a repetir estas palavras de João Paulo II que nos deviam arrepiar e envergonhar a todos: “Como é possível que ainda haja, no nosso tempo, quem morra de fome, quem esteja condenado ao analfabetismo, quem viva privado dos cuidados médicos mais elementares, quem não tenha uma casa onde abrigar-se?”. E logo a seguir dá a resposta: “É hora duma nova «fantasia da caridade», que se manifeste não só nem sobretudo na eficácia dos socorros prestados, mas na capacidade de pensar e ser solidário com quem sofre, de tal modo que o gesto de ajuda seja sentido, não como esmola humilhante, mas como partilha fraterna.” (NMI 50)

2009-11-18

CinV (48) SOLIDARIEDADE DA VERGONHA

Nem de propósito (refiro-me à coincidência dos meus apontamentos sobre a fome) decorreu em Roma a Cimeira Mundial sobre a Segurança Alimentar, que abordou três dos principais desafios deste século, intimamente interligados: a segurança alimentar, a biodiversidade e as alterações climáticas.
Dos líderes do G20 e do G8 poucos se dignaram aparecer. Aliás, mesmo quando aparecem, é para prometer o que não têm intenção de cumprir, sobretudo quando se trata de pobreza. Há cerca de dez anos, todos os países se comprometeram, na ONU, com a aplicação, em prazos bem definidos, dos Objectivos do Milénio. O primeiro deles é (era) “erradicar a pobreza extrema e a fome”, para metade, até 2015. Este objectivo está a ser escandalosamente ignorado. Mais de mil milhões de pessoas continuam a não ver estas duas metas satisfeitas. A principal causa é a falta de vontade política dos governantes e dos governados, sobretudo dos países desenvolvidos.

O que quero destacar nesta Cimeira é a participação de Bento XVI, que quis estar presente para chamar a atenção para este gravíssimo problema, para recordar que “a fome é o sinal mais cruel e concreto da pobreza. Não é possível continuar a aceitar a opulência e o desperdício, quando o drama da fome adquire cada vez maiores dimensões”. Foi lá para interpelar solenemente os governantes (e, no fundo, cada um de nós): “O que pode orientar a conduta dos Estados no que diz respeito às necessidades dos mais pobres?”
Mas antes de responder, o Papa quis chamar a atenção para o aspecto fatalista que tanto sossega a nossa consciência quando falamos de pobreza. Por isso, recordou que “existe o risco de que a fome se considere como algo estrutural, parte integrante da realidade socio-política dos países mais débeis, objecto de um sentimento de resignada amargura, se não de indiferença. Não é assim, nem deve ser assim. Para combater e vencer a fome é essencial começar por redefinir os conceitos e os princípios aplicados até agora nas relações internacionais, assim como responder à pergunta: o que pode orientar a atenção e a consequente conduta dos Estados relativamente às necessidades dos últimos? A resposta não se encontra na linha de acção da cooperação, mas nos princípios que devem inspirá-la: só em nome da comum pertença à família humana universal se pode pedir a cada povo, e portanto a cada país, que seja solidário, isto é, esteja disposto a assumir as responsabilidades concretas perante as necessidades dos outros, para favorecer uma verdadeira partilha fundada no amor.
O Papa, por tem uma visão universal dos problemas, não podia deixar de recordar a importância que neste assunto representam o mundo rural e os escandalosos subsídios oferecidos aos agricultores ricos do Norte que “afundam” ainda mais os países pobres do Sul: “Para combater a fome promovendo um desenvolvimento humano integral é também necessário entender as necessidades do mundo rural, assim como impedir que a tendência a diminuir as ajudas dos doadores crie incertezas no financiamento das actividades de cooperação: deve evitar-se o risco de que o mundo rural possa ser considerado, de modo míope, como una realidade secundária. Ao mesmo tempo, deve favorecer-se o acesso ao mercado internacional dos produtos provenientes das áreas mais pobres, hoje em dia obrigados a estreitas margens. Para alcançar estes objectivos é necessário resgatar as regras do comercio internacional da lógica do lucro, como um fim em si mesmo, orientando-as em favor da iniciativa económica dos países mais necessitados de desenvolvimento, que, dispondo de maiores entradas, poderão caminhar para a autosuficiência, que é o prelúdio da segurança alimenta.”

2009-11-16

Cinv (47) Opção pelos pobres

O meu grande argumento é que esta é a opção radical do nosso Deus: se Deus não optasse pelos pobres não seria Deus. Nos três Códigos legislativos do AT, Javé “justifica”, embora com cambiantes diferentes, essa sua prioridade pelos pobres:

- no Código da Aliança (Ex 21-34), no qual se privilegia a vida em detrimento da propriedade: “Não oprimirás nem humilharás o emigrante porque emigrantes fostes vós no Egipto. Não explorarás as viúvas nem os órfãos, porque, se os exploras e eles me gritarem por auxílio, eu escutá-los-ei. Acender-se-á a minha ira e far-vos-ei morrer à espada, deixando as vossas mulheres viúvas e os vossos filhos órfãos” (Ex 22,20-23);

- no Código Deuteronómico (Dt), revisão da antiga tradição legal feita depois da destruição da Samaria, que contém muitas leis destinadas a garantir uma economia que permita aos pobres ter uma vida minimamente digna: “Não defraudarás o direito do migrante e do órfão nem tomarás como penhora as roupas da viúva; lembra-te que foste escravo no Egipto e que lá te redimiu o Senhor teu Deus; por isso eu te mando que cumpras esta lei” (Dt 24,17s);

- no Código de Santidade (Lev 17-27), pós-exílico: “Eu sou o Senhor, vosso Deus, que vos tirei do Egipto para vos dar a terra de Canaã e ser vosso Deus. SE o teuirmão empobrecer, junto de ti, e se se vender a ti, não exigirás dele um trabalho de escravo.Estará contigo como um jornaleiro, comoum inquilino, servirá em tua casa até ao ano do Jubileu. Então sairá de tua casa, assim como os seus filhos; voltará para a suafamília e recobrará os bens de seus pais. Porque são meus servos, que fiz sair da terra do Egipto, não devem ser vendidos como se vende um escravo. Não o domines com dureza para temeres o teu Deus... Porque os israelitas me pertencem como servos: são servos meus, que tirei do Egipto. Eu sou o Senhor vosso Deus” (Lv 25,38-43.55).

É esta a atitude de Javé que, por exigências da Aliança, todo o israelita deve pôr em prática. Se não o fizer o seu culto nunca será aceite (cf., por exemplo, Is 1,11-20).
Por isso, o AT apresenta uma concepção de justiça muito diferente da nossa. A justiça não é primariamente o direito daqueles que possuem, mas é, antes de tudo, o direito daqueles que nada têm, o direito que tem qualquer membro da comunidade em dificuldade pelo simples facto de pertencer à comunidade. Não se trata tanto de uma justiça de troca, mas de dom (Dt 24,19-22; Lv 19,9s). Esta justiça não humilha porque é fruto de um direito daquele que recebe: um direito que nasce não da propriedade e do contrato, mas da simples necessidade. Por isso,
- não se fala do direito do possuidor mas antes do direito do que nada possui (Dt 24,10-13,6; Am 4,1-3; 5,11-15; 8,4-7);
- não se exclui o estrangeiro (Ex 23,9), o mais desprotegido dos cidadãos;
- não se faz acepção de pessoas (Dt 10,17-18).
O fundamento deste direito do pobre está, como já vimos, na condição de estrangeiro que o povo israelita tinha no Egipto e da qual Javé o libertou: "Não oprimirás nem humilharás o emigrante porque emigrantes fostes vós no Egipto" (Ex 22,21; cf Dt 24,17-18).

Esta atenção especial aos que sofrem é, insisto, uma opção querida por Deus, é uma característica essencial de Deus. Temos aqui uma nova imagem de Deus. Um Deus que não é neutro, que intervém na história, optando gratuita e livremente não pelos poderosos, mas pelos oprimidos: neste caso, contra o faraó. “Deus é o Deus que faz justiça, no tempo presente e no tempo futuro, a favor dos pobres, para que se estabeleça em Israel um ideal de fraternidade e de amor. E nisto reside precisamente a diferença com a literatura pré-clássica, porque, enquanto nesta, os faraós e os poderosos providenciam em ajudar os necessitados numa sociedade de classes injusta, imutável e permanente, na Bíblia, a legislação é contra o sistema de classes: as leis do código da aliança, referentes aos escravos, ao ano sabático, aos privados de terra e de bens, têm por fim favorecer a igualdade e acabar com as diferenças sociais” (Carreira das Neves).

2009-11-14

CinV (46) Manutenção da vida: luta contra a fome (nº 27)

Antes propriamente de comentar este nº da encíclica, gostaria de fazer uma reflexão prévia sobre pobres e pobreza.
Começo por me situar. Não sou pobre. Nunca fui pobre. Tive dificuldades para tirara um curso universitário. Mas nunca passei fome, nem dormi na rua. Por isso, não sei o que é ser pobre. Assim sendo, tem pouco significado o que diga sobre este tema. Porque é um conhecimento teórico, embora ele me entre todos os dias pelos olhos dentro.
E, no entanto, este é o tema sobre o qual mais tenho escrito e falado. E falei tantas vezes de pobre, de opção pelos pobres, que estou a ficar enxuto de palavras, como a viúva fica sem lágrimas de tanto chorar. Reconheço que é muito grave que já não saiba o que hei-de dizer sobre o assunto mais sério por que passa a humanidade. Já procurei mudar de palavras, alterar o estilo, renovar o modo de abordagem, mas os resultados cabem numa mão cheia de nada.

No meu último livro sobre a DSI introduziu duas "novidades", que causaram estranheza e até objecção de alguns leitores.

A primeira tem a ver com o título “Em nome de Jesus Cristo”. A esta observação é muito fácil de responder e passo a palavra ao meu advogado, João Paulo II: “Daqui resulta que a doutrina social, por si mesma, tem o valor de um instrumento de evangelização: enquanto tal, anuncia Deus e o mistério da salvação em Cristo a cada homem e, pela mesma razão, revela o homem a si mesmo. A esta luz, e somente nela, se ocupa do resto: dos direitos humanos de cada um e, em particular, do “proletariado”, da família e da educação, dos deveres do Estado, do ordenamento da sociedade nacional e internacional, da vida económica, da cultura, da guerra e da paz, do respeito pela vida desde o momento da concepção até à morte” (CA 54). É, portanto, à luz de Jesus Cristo, que a DSI procura iluminar todos os âmbitos da vida e da sociedade. É certo que para muitos cristãos, o critério habitual é a voz do dono do partido ou a sugestão subliminar da propaganda ou a pressão da opinião dominante. Mas, nada disto pode ser o critério último, pois como diz Bento XVI: “No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (DCE 1). Isto é, o encontro com Jesus Cristo

A segunda tem a ver com a colocação lógica dos valores e princípios da DSI. Comecei, como todos, pela dignidade da pessoa, critério primeiro na avaliação de qualquer gesto, acontecimento, legislação ou decisões pessoais e dos vários poderes políticos. E imediatamente a seguir coloquei a “opção pelos pobres”. Geralmente esta opção, em documentos oficiais e nos outros, aparece como consequência ou corolário da solidariedade ou do destino universal dos bens. Mas eu penso que a esta opção radical pelos pobres não é, não pode ser, mero corolário de nenhum outro princípio ou valor. Faz parte da natureza e da essência da Igreja, tanto como as suas outras características de una, santa, católica e apostólica. Felizmente que encontrei um teólogo que diz isso mesmo mas de modo mais científico: “A opção pelos pobres não significa um processo exclusivamente pastoral, de extensão da Igreja a mais um novo campo de evangelização, mas significa fundamentalmente um processo interno de mudança radical e de conversão profunda da Igreja na sua totalidade. A opção pelos pobres não é para a Igreja uma opção acidental, preferencial ou privilegiada, mas uma opção constitutiva, estrutural e essencial” (P. Richard).

Dada a importância do assunto, gostaria de desenvolver um pouco mais a razão de ser desta minha posição, meramente pessoal, mas que julgo bem fundamentada.

2009-11-12

PALAVRAS DE VIDA ETERNA

Enviei para a minha habitual colaboração (quinzenal) no jornal Correio de Coimbra, que vai sair hoje, um artigo em que proponho a criação, no Secundário, de uma cadeira "obrigatória" de História Comparada das Religiões, que substituiria as Aulas de Religião e Moral das várias religiões. Tenho consciência de que tal proposta pode ser polémica; por isso, aqui a deixo para dar oportunidades aos leitores para dar a sua opinião,

As sabidas palavras de Saramago sobre a Bíblia e Deus já foram mais que escalpelizadas, mas servem-me de fundo para algumas considerações avulsas.
A primeira pergunta que me ocorre é a de saber quantos cristãos leram toda a Bíblia: estou a falar de leitura, não de estudo ou de meditação. Todos conhecem a costela de Adão, a Torre de Babel, Sodoma e Gomorra, o “sacrifício” de Isaac, o prato de lentilhas de Esaú, o José na cisterna e a paixão da mulher do faraó. Mas estamos só no primeiro de 72 livros. Daí para a frente, conhecemos as pragas do Egipto e a passagem do Mar Vermelho, mas não saberemos que esta é para os Judeus o acto fundante do seu povo. As leituras dominicais vão lembrando outros livros, nomeadamente Profetas e Salmos: palavras que vão e vêm mas não ficam. Conhecemos melhor o NT, mas se tirarmos os Evangelhos, o que fica do resto? Dir-me-ão que bastam os Evangelhos para conhecer o Deus de Jesus Cristo e os valores do Reino de Deus. Eu calar-me-ia se visse que esse nosso conhecimento de Deus marca radicalmente o nosso modo de ser, de estar e de agir.
A profunda ignorância, que as palavras ditas por Saramago revelam, conduz-me a uma proposta que já aqui fiz há alguns anos, não sei quando. Por que não introduzir no curriculum escolar do secundário uma cadeira, séria e com igual dignidade das outras, de uma História Comparada de Religiões? As vantagens seriam muitas. Em termos intelectuais, daria a conhecer algumas das obras primas da literatura mundial, como a Bíblia e o Corão, mas também, por exemplo, o Poema de Gilgamesh, com a sua procura persistente mas sem sucesso da imortalidade, ou o Livro dos Mortos, mostruário da moral egípcia de então. Mas, sobretudo em termos culturais, faria com que nos víssemos diferentes, mas iguais, soubéssemos o que nos motiva, por que desejamos uma sociedade melhor; olhássemos o outro, diferente de mim, não como inimigo a abater, mas alguém que segue outros caminhos. Seria até um antídoto à tentação de considerar o meu caminho melhor que o dos outros. Os caminhos são diferentes, mas quem decidem qual é o melhor? E haverá um caminho melhor? Mesmo os ateus, os agnósticos, os indiferentes, talvez não sejam tão indiferentes ao Grande Mistério, ao mistério do homem e do mundo. Todos, directa ou indirectamente, procuramos descortinar esse Grande Mistério, que tem tantos nomes e caminhos quantas as culturas e os povos. É como se quiséssemos alcançar o cimo do Everest coberto de nevoeiro: cada um de nós, individual ou comunitariamente, para alcançá-lo dispõe de muitos caminhos, pois ninguém vê a meta final. Para mim, o Pai de Jesus Cristo, é esse Grande Mistério, pois é maior que todas as nossas representações, está para lá de toda a minha compreensão. Uma História Comparada das Religiões introduziria o respeito pelo outro, ajudar-me-ia a olhá-lo como alguém que me complementa e eu complemento, alguém que “é um dom para mim” (NMI 43), a perceber a legitimidade do seu caminho para o alto, apesar de diferente do meu.
Assim não seriam necessárias Aulas de Religião e Moral, católicas ou doutras confissões, com a vantagem de obrigar as comunidades a apostarem numa catequese bem preparada. Está a Igreja católica a cuidar bem da primeira parte da sua missão: anunciar a Palavra? Está a ser suficientemente “evangelizada para ser evangelizadora” (EN 15)? Por que se esgotam os seus catequistas primeiros (padres/párocos) na multiplicação de missas e na administração de sacramentos, descuidando a sua missão primeira que é serem servidores da Palavra? Pelo menos, foi o que repetiu várias vezes o Concílio: “Os presbíteros, como cooperadores dos Bispos, têm, como primeiro dever, anunciar a todos o Evangelho de Deus” (PO 4).
Eu sei bem e acredito profundamente que “nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na celebração da santíssima Eucaristia, a partir da qual, portanto, deve começar toda a educação do espírito comunitário. Esta celebração, para ser sincera e plena, deve levar não só às várias obras de caridade e ao auxílio mútuo, mas também à acção missionária, bem como às várias formas de testemunho cristão” (PO 6). A Eucaristia é o centro, onde vamos buscar o alimento vivificador e a força irresistível para irradiar por todos os âmbitos da vida: “Ide e testemunhai o que celebraste”, porque a “missa” não acabou, como muitos pensam; apenas começou, como poucos acreditam. Sem Eucaristia não há Igreja. Mas lá está o Evangelho a recordar que não basta: “Não é o que diz ‘Senhor, Senhor’ que entrará no Reino dos céus, mas o que fizer a vontade de meu Pai” (Mt 7,21). Será que os cristãos, que andam tão desnorteados como os outros, perderam o norte porque não tiveram sacramentos suficientes ou porque não tiveram suficiente catequese? O Papa bem recomendou aos nossos Bispos: “À vista da maré crescente de cristãos não praticantes nas vossas dioceses, talvez valha a pena verificardes «a eficácia dos percursos de iniciação actuais, para que o cristão seja ajudado, pela acção educativa das nossas comunidades, a maturar cada vez mais até chegar a assumir na sua vida uma orientação autenticamente eucarística, de tal modo que seja capaz de dar razão da própria esperança de maneira adequada ao nosso tempo».
Faz agora precisamente dois anos. Tempo demasiado para ainda nos lembrarmos: bispos, padres e leigos.

2009-11-11

CinV (45) Mudanças culturais (nº 26)

As diferenças culturais relativas a época de Paulo VI são “ainda mais acentuadas”, porque então “apresentavam-se bastante bem definidas e tinham maiores possibilidades para se defender das tentativas de homogeneização cultural”.
Hoje, devido sobretudo à globalização, aos movimentos da alterglobalização e às TIC, “cresceram notavelmente as possibilidades de interacção das culturas”, o que acarreta aspectos positivos e alguns perigos, que “se não forem acompanhados constantemente por um discernimento atento, podem voltar-se contra o homem, terminando por empobrecê-lo, em vez de enriquecê-lo” (Discurso de 15.Junho.2007):

1) a possibilidade de “um diálogo que, para ser eficaz, deve ter como ponto de partida uma profunda noção da específica identidade dos vários interlocutores”;

2) o perigo de um “ecletismo cultural assumido muitas vezes sem discernimento: as culturas são simplesmente postas lado a lado e vistas como substancialmente equivalentes e intercambiáveis umas com as outras”, com cedências ao relativismo:
- ético: Bento XVI fala continuamente da ditadura do relativismo: antes como cardeal (várias vezes), depois na homilia do Conclave (“Quantos ventos de doutrina conhecemos nestes últimos decénios, quantas correntes ideológicas, quantas modas do pensamento (…). A pequena barca do pensamento de muitos cristãos foi muitas vezes agitada por estas ondas, lançadas de um extremo ao outro: do marxismo ao liberalismo, até à libertinagem, ao colectivismo radical; do ateísmo a um vago misticismo religioso; do agnosticismo ao sincretismo e por aí adiante. (…) Ter uma fé clara, segundo o Credo da Igreja, muitas vezes é classificado como fundamentalismo, enquanto o relativismo, isto é, deixar-se levar 'aqui e além por qualquer vento de doutrina', aparece como a única atitude à altura dos tempos hodiernos. Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que nada reconhece como definitivo e que deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas vontades”) ou na Audiência geral de 5.Ag.2009: “Se então (no tempo do S.to Cura d’Ars) havia a "ditadura do racionalismo", na época actual regista-se em muitos ambientes uma espécie de "ditadura do relativismo". Ambas parecem ser respostas inadequadas à maior exigência do homem, de usar plenamente a sua razão como elemento distintivo e constitutivo da própria identidade. O racionalismo foi inadequado porque não teve em consideração os limites humanos e pretendeu elevar apenas a razão como medida de todas as coisas, transformando-a numa deusa; o relativismo contemporâneo mortifica a razão, porque de facto chega a afirmar que o ser humano nada pode conhecer com certeza, para além do campo científico positivo. Porém, tanto hoje como ontem, o homem "mendicante de significado e de cumprimento" vai à procura contínua de respostas exaustivas às interrogações fundamentais que não cessa de levantar”;
- cultural, que “faz com que os grupos culturais se juntem ou convivam, mas separados, sem autêntico diálogo e, consequentemente, sem verdadeira integração”;
3) e um outro perigo, oposto, o do “nivelamento cultural e a homogeneização dos comportamentos e estilos de vida”, uma espécie de generalização do “pensamento único”.
Estes dois perigos acarretam a perda do “significado profundo da cultura das diversas nações, das tradições dos vários povos, no âmbito das quais a pessoa se confronta com as questões fundamentais da existência” e “a humanidade corre novos perigos de servidão e manipulação”.

Apesar da amplitude de significados da cultura (cf GS 53-62), todo o ser humano é produtor e consumidor de cultura, pois toda a sua actividade "tem lugar numa cultura e nela se integra" (CA 51). A cultura apresenta-se assim não como um luxo, mas como uma componente essencial da pessoa, e, portanto, não pode ser maculada pelo etnocentrismo nem pelos fundamentalismos.

O nº 55 aborda o tema das culturas e das religiões.

2009-11-10

CinV (44) Desemprego (nº 25)

Antes de desenvolver este tema, Bento XVI fala dos sindicatos e das suas dificuldades actuais: “O conjunto das mudanças sociais e económicas faz com que as organizações sindicais sintam maiores dificuldades no desempenho do seu dever de representar os interesses dos trabalhadores, inclusive pelo facto de os governos, por razões de utilidade económica, muitas vezes limitarem as liberdades sindicais ou a capacidade negociadora dos próprios sindicatos” num tempo em que, “hoje ainda mais do que ontem” é urgente a criação de “novas sinergias a nível internacional, sem descurar o nível local”. Mas como este tema vai ser desenvolvido mais à frente, reservo uma reflexão mais aprofundada sobre os sindicatos, quando chegar a esse nº 64.

O desemprego é enquadrado num parágrafo que começa pela “mobilidade laboral, (que) associada à generalidade desregulamentação, constitui um fenómeno importante”. Pode ter aspectos positivos (estímulo à produção de nova riqueza e intercâmbio entre as várias culturas), mas “quando se torna endémica a incerteza sobre as condições de trabalho” as consequências podem ser muito negativas:
- instabilidade psicológica;
- dificuldade para “construir percursos coerentes na própria vida, incluindo o percurso rumo ao matrimónio”;
- situações de degradação humana;
- desperdício de força social.
Por isso, hoje, o desemprego origina situações novas que passam para lá da esfera do económico e são agudizads pela actual crise: “A exclusão do trabalho por muito tempo ou então uma prolongada dependência da assistência pública ou privada corroem a liberdade e a criatividade da pessoa e as suas relações familiares e sociais, causando enormes sofrimentos a nível psicológico e espiritual”. É indispensável destacar esta dimensão psicológica (e espiritual) porque, muitas vezes, esquecemos os sofrimento psicológico de quem se afoga num sentimento de inutilidade, de quem não é capaz de encarar os filhos ou a família a quem não pode prestar a ajuda necessária, de quem sente que já não consta ou corre o risco de não contar sequer das estatísticas sociais. Será oportuna aqui, ao menos, uma referência ao suicídio de trabalhadores que foram despedidos, muitas (quantas?) vezes descartados como se não passassem de farrapos já não necessários, de meros objectos tornados inúteis. João Paulo II tem palavras muito fortes: “A solidariedade ajuda-nos a ver o «outro» — pessoa, povo ou nação — não como um instrumento qualquer, de que se explora, a baixo preço, a capacidade de trabalho e a resistência física, para o abandonar quando já não serve; mas sim, como um nosso «semelhante», um «auxílio» (cf. Gn 2,18.20), que se há-de tornar participante, como nós, no banquete da vida, para o qual todos os homens são igualmente convidados por Deus (…) Assim, a exploração, a opressão e o aniquilamento dos outros são excluídos” (SRS 39). Ou ainda: "A obrigação de ganhar o pão com o suor do próprio rosto supõe, ao mesmo tempo, um direito. Uma sociedade, onde este direito seja sistematicamente negado, onde as medidas de política económica não consintam aos trabalhadores alcançarem níveis satisfatórios de ocupação, não pode conseguir nem a sua legitimação ética nem a paz social" (CA 43)
Mais à frente, Bento XVI destaca a ligação muito íntima entre desemprego e pobreza: “Ao considerar os problemas do desenvolvimento, não se pode deixar de pôr em evidência o nexo directo entre pobreza e desemprego. Em muitos casos, os pobres são o resultado da violação da dignidade do trabalho humano, seja porque as suas possibilidades são limitadas (desemprego, subemprego), seja porque são desvalorizados «os direitos que dele brotam, especialmente o direito ao justo salário, à segurança da pessoa do trabalhador e da sua família» (LE 8)” (63).
É neste contexto que, Bento XVI tem uma frase que já transcrevi mas volto a repetir: “Queria recordar a todos, sobretudo aos governantes que estão empenhados a dar um perfil renovado aos sistemas económicos e sociais do mundo, que o primeiro capital a preservar e valorizar é o homem, a pessoa, na sua integridade: «com efeito, o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida económico-social» (GS 63)”.
A pessoa é o primeiro capital a preservar e a valorizar. Está-se mesmo a ver, não está?

2009-11-09

Muros a mais, aberturas a menos

Faz hoje 20 anos que caiu o muro de Berlim.
Caiu é uma força de expressão: foi deitado abaixo, foi arrasado. Centenas, milhares de pessoas conseguiram libertar a raiva e a revolta tantos anos comprimidas no seu coração e com a fúria transformadora das suas mãos soltaram uma energia libertadora que arrancou pedra a pedra esses quilómetros de desprezo e exclusão humanos, construídos numa noite. Construídos para separar: separar regimes políticos; mas também separou famílias, amigos, conhecidos, a quem apenas ficara a possibilidade de um aceno a centenas de metros.
Recordar a queda deste muro é não só recordar um ponto alto da humanidade, mas também demonstrar que, quando as pessoas querem, não há muros que resistam.
É, pois, importante celebrar esta data. Para prceber a indignidade do seu significado. Para recordar até que ponto somos capazes de chegar. Para mostrar aos mais novos aquilo de que o ser humano, nós somos capazes. Como é bom recordar e não deixar esquecer ouros pontos tão negros como a Inquisição, os Gulags ou o Holocausto!

Mas esta recordação não nos deve fazer esquecer outros muros também de pedra que ainda hoje existem: na Cisjordânia, para separar israelitas e palestinianos ou asfixiar estes últimos dificultando a deslocação para os seus locais de trabalho ou impedindo a partilha de produtos; entre a Índia e o Bangladesh, que condena à fome tantos pequenos agricultores que não podem cultivar os campos estraçalhados pelo muro nem podem vender os produtos que ainda conseguem cultivar; entre os Estados Unidos e o México, que impede tantos migrantes de procurar melhores formas de vida para si e para os seus.

Depois há os muros móveis: barcos que patrulham pela calada da noite as costas marítimas, por todo o lado, incluindo a Europa. E se destaco a Europa é porque a Europa somos nós e porque assim vamos construindo uma Europa, cuja vocação, que foi sempre a abertura aos outros, a tornar-se numa fronteira de “arame farpado”.

Mas há também e sobretudo os muros invisíveis, pais destes muros visíveis, que crescem nos nossos corações e se alimentam dos nossos argumentos racistas. São os muros que eu nem sei que tenho, mas que me separam do outro que tenha uma cor diferente, seja de pele, de sexo, de opinião, de partido, de nação, de religião, de cultura. São os muros que por serem invisíveis são tanto difíceis de deitar abaixo. São muros que nós cultivamos, tantas vezes sem dar por isso, com as nossas atitudes e sobretudo com os nossos preconceitos, que consideramos apenas conceitos e que frutificam no nosso coração: “Do coração procedem as más intenções, os assassínios, os adultérios, as prostituições, os roubos, os falsos testemunhos e as blasfémias. É isto que torna o homem impuro e não o comer com as mãos por lavar” (Mt 15, 19-20). Estas palavras têm 2000 anos, mas continuam actuais.

É bom recordar o muro de Berlim.
Mas recordá-lo historicamente é pouco. É preciso recordá-lo para exigir o fim de todos os outros muros materiais, móveis e interiores. É importante pedir perdão pelos muros passados, mas continuar a construí-los hoje é, no mínimo, hipocrisia, essa “virtude”humana tão frequente e tão legitimadora de interesses momentâneos e egoístas.

2009-11-08

Cinv (43) Mudanças sociais: Segurança social (nº 25)

Bento XVI procura encontrar as razões para as dificuldades, cada vez maiores, sentidas pelos “sistemas de segurança e previdência”, que são absolutamente necessários já que o seu grande objectivo é alcançar uma “verdadeira justiça social”.
E aqui entra o mercado, ao qual a encíclica dedica mais à frente longas reflexões. Na situação actual, de uma globalização, ainda e quase só económica, as leis do mercado impõem duramente a deslocalização de muitas empresas: “O mercado, à medida que se foi tornando global, estimulou antes de mais nada, por parte de países ricos, a busca de áreas para onde deslocar as actividades produtivas a baixo custo a fim de reduzir os preços de muitos bens, aumentar o poder de compra e deste modo acelerar o índice de desenvolvimento centrado sobre um maior consumo pelo próprio mercado interno”.
Uma tal atitude tinha que ter necessariamente consequências funestas.

1ª. O económico marca a agenda do político, aumentando a competição, em vez de estimular a cada vez mais urgente colaboração, entre os Estados: “O mercado motivou novas formas de competição entre Estados procurando atrair centros produtivos de empresas estrangeiras através de variados instrumentos tais como impostos favoráveis e a desregulamentação do mundo do trabalho”.

2ª. Consequência imediata da anterior é as graves repercussões na segurança social. É certo que não podemos aqui esquecer as causas demográficas: a taxa de natalidade que há uma década vem tendo níveis muito baixos conjugada com o aumento do número de pessoas idosas diminui e sobrecarrega de modo insuportável a população activa e as receitas da segurança social. Só entre parêntesis, ironicamente temos cada vez mais jovens, mesmo os qualificados, à procura de emprego. Talvez fosse bom investigar qual a influência e a potencial “culpa” das leis férreas do mercado nesta disfunção social.
Mas voltando às consequências do predomínio do económico sobre o político, o Papa escreve: “Estes processos implicaram a redução das redes de segurança social em troca de maiores vantagens competitivas no mercado global, acarretando grave perigo para os direitos dos trabalhadores, os direitos fundamentais do homem e a solidariedade actuada nas formas tradicionais do Estado social. Os sistemas de segurança social podem perder a capacidade de desempenhar a sua função, quer nos países emergentes, quer nos desenvolvidos há mais tempo, quer naturalmente nos países pobres”.

3ª. A diminuição drástica dos serviços sociais mínimos é muitas vezes imposta por esta globalização sem rosto, mas também por organismos internacionais, como o FMI ou Banco Mundial, que, pelo menos até há poucos anos, obrigavam a cortes orçamentais no capítulo das despesas básicas, como saúde, educação e tudo o que fossem políticas sociais, com a desculpa de que era preciso baixar a dívida externa. Bento XVI não acusa aqui ninguém em particular mas não deixa de apontar uma realidade que não pode manter-se pois deixa os cidadãos não só impotentes mas também sem condições para viver com um mínimo de dignidade: “as políticas relativas ao orçamento com os seus cortes na despesa social, muitas vezes fomentados pelas próprias instituições financeiras internacionais, podem deixar os cidadãos impotentes diante de riscos antigos e novos; e tal impotência torna-se ainda maior devido à falta de protecção eficaz por parte das associações dos trabalhadores”.
Recorda de novo que o critério tem de ser sempre a pessoa. Por isso, todos, a começar pelos governantes, devem empenhar-se para reformar profundamente os sistemas económicos e sociais, porque “o primeiro capital a preservar e valorizar é o homem, a pessoa, na sua integridade”.

2009-11-06

CinV (42) Centralidade da pessoa

Todo o nº 25 tem como pano de fundo uma ideia estruturante de toda a encíclica. Trata-se da centralidade da pessoa como critério último e permanente que deve presidir e definir toda a actividade e toda a organização das políticas económico-sociais, até porque a pessoa, contra o que parecem indicar muitos agentes económicos, é o “principal capital”: “Queria recordar a todos, sobretudo aos governantes que estão empenhados a dar um perfil renovado aos sistemas económicos e sociais do mundo, que o primeiro capital a preservar e valorizar é o homem, a pessoa, na sua integridade: «com efeito, o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida económico-social» (GS 63)” (25).
Aliás já João Paulo II insistira muito nesta ideia central: “Efectivamente, a riqueza principal do homem é, em conjunto com a terra, o próprio homem. É a sua inteligência que o leva a descobrir as potencialidades produtivas da terra e as múltiplas modalidades através das quais podem ser satisfeitas as necessidades humanas. É o seu trabalho disciplinado, em colaboração solidária, que permite a criação de comunidades de trabalho cada vez mais amplas e eficientes para operar a transformação do ambiente natural e do próprio ambiente humano” (CA 32).
Tudo o que fomos construindo ao longo da história foi obra das pessoas, da pessoa. Naturalmente tivemos que contar com um conjunto de instrumentos, mas também estes foram inventados, descobertos e construídos pelo homem. Naturalmente que a técnica e os saberes foram fundamentais, mas tanto uma com os outros foram resultado da criatividade, da reflexão, do estudo. do trabalho do homem. Também é certo que descoberta puxa descoberta, saber puxa saber, mas o motor desta espiral é a inteligência e o engenho humanos. As empresas, mais ou menos deslocalizadas, só existem porque há pessoas a trabalhar nelas, desde os gestores, os administradores aos trabalhadores “mais simples”. Não há actividade humana que não tenha por detrás de si uma pessoa.
Por isso não se percebe, mesmo que olhemos apenas numa perspectiva meramente economicista, por que se desperdiça tanto o trabalho humano, por que há tanto desemprego, por que não se “aproveita” o saber e o saber fazer que todos nós, com mais ou menos talentos, temos. É um dos mistérios (ou talvez não) da moderna organização sócio-económica.

Para os cristãos a actividade humana adquire um valor transcendente e torna-se um dever irrenunciável, pois resulta do mandato divino de continuarmos a obra criadora, mesmo nas mais pequenas coisas: “Uma coisa é certa para os crentes: a actividade humana individual e colectiva, aquele imenso esforço com que os homens, no decurso dos séculos, tentaram melhorar as condições de vida, corresponde à vontade de Deus. Pois o homem, criado à imagem de Deus, recebeu o mandamento de dominar a terra com tudo o que ela contém e governar o mundo na justiça e na santidade (Gn 1,26s). Isto aplica-se também às actividades de todos os dias. Assim, "os homens e as mulheres que, ao ganhar o sustento para si e suas famílias, realizam as suas actividades de modo a bem servir a sociedade, podem ver, com justiça, no seu trabalho um prolongamento da obra do Criador, um serviço aos seus irmãos e uma contribuição pessoal para a realização dos desígnios de Deus na história” (GS 34).

Esta perspectiva é hoje particularmente importante, porque no passado outros foram os factores a que se deu prioridade: “Mas é importante notar a existência de diferenças específicas entre essas tendências da sociedade actual, e as do passado, mesmo se recente. Se outrora o factor decisivo da produção era a terra e mais tarde o capital, visto como o conjunto de maquinaria e de bens instrumentais, hoje o factor decisivo é cada vez mais o próprio homem, isto é, a sua capacidade de conhecimento que se revela no saber científico, a sua capacidade de organização solidária, a sua capacidade de intuir e satisfazer a necessidade do outro” (CA 32).

2009-11-04

Bolinhosween

Neste fim de semana fui dar uma voltinha por este nosso Portugal. E uma das coisas que me chamou a atenção foi verificar que o antigo costume infantil dos “bolinhos e bolinhós” fora entusiasticamente substituído por um novo costume: crianças e adultos percorriam as ruas em pequenos grupos com carantonhas importadas das Américas.
Não é que eu seja um esforçado amante dos “bolinhos”, mas não deixa de ter um significado, talvez mais profundo do que parece, esta colonização do Halloween.
A minha “admiração” vem da facilidade com que ignoramos costumes nossos com longa tradição por outros vindo de longes terras. Vistas bem as coisas, nem sei por que me hei-de admirar depois de ver a sofreguidão com que se bebe uma Coca-cola, se espera na bicha de um Mac-drive, se importa a modalidade dos mac-jobs, tal como importámos telenovelas brasileiras e recentemente séries americanas.
De qualquer modo, admiro-me (ainda mantenho alguma capacidade de me admirar, às vezes de boca aberta, outras do fundo do coração) com a facilidade com que somos levados, como comunidade, por estas e outras coisas mais ou menos inofensivas.
Acusar-me-ão de não ter percebido a força da globalização, a pressão tão irresistível da publicidade que transforma insignificâncias em necessidades fundamentais, as poderosas TIC (tecnologias de informação e comunicação). É possível! Mas a verdade é que, embora procure estar aberto ao ritmo do mundo, quando vejo desaparecer algo que fez parte da minha história pessoal, sinto que um pouco de mim se perdeu. Pieguices… mas a verdade é que me sinto muito filho do passado, com o que teve de bom e de mau, apesar de querer muito ser filho do presente para poder ser, também, muito filho do futuro.
O Halloween não tem importância. É só um motivo para falar de outras coisas muito mias importantes, como a minha (nossa) identidade. Hoje parece que só sabemos viver o presente (imediatismo), que é reaccionário olhar o passado (quem quer voltar àqueles tempos tão “fechados” com talas de valores a tolher-nos a insatisfação "ulisseica" de saber o desconhecido e o desejo de sermos prometeicos?) e que é “utópico” olhar o futuro (ainda não existe, esquecendo, voluntariamente ou não, que somos nós os seus fazedores). O pior é que assim ficamos sem saber fazer as perguntas certas, tão simples quanto eternas, “donde venho?” e “para onde vou?”, sem cujas respostas não posso responder ao “quem sou?”. Será por isso que a humanidade anda à deriva sem bússola num mar encapelado por constantes desafios e Adamastores?

Para mim, recordar e sentir-me filho do passado não significa, longe disso, que as soluções para os problemas de hoje têm de ser as do passado. Mais: acredito que as soluções do passado tiveram a sua época, responderam a desafios específicos desse tempo, cumpriram a sua missão e fazem parte, agora, do museu da história. Por isso, uma das minhas preocupações como católico é que a Igreja não tenha (pelo menos, parece não ter) capacidade de “perscrutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, de forma a poder responder, de modo adaptado a cada geração, às interrogações permanentes dos homens” (GS 4). Talvez, porque, lá bem no fundo, não acredita que “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS 1). Ou, pior ainda, porque está tão virada para o seu passado normativo (estruturas, doutrina. dogmas) e não para o único eterno, que é Jesus, o Cristo, que mal vê o presente e, quando o vê, ele já passou a passado.
Não discuto a criatividade de iniciativas do tipo “Sentinelas de amanhã”, de várias dioceses italianas: substituir as caveiras ou máscaras “irreverentes próprias das festas de Halloween” por histórias e virtudes dos santos da preferência de cada um, festejando o Holyween. Até porque, há alguma diferença entre hallow e holy?

O que está em jogo é "só" a nossa fidelidade a Jesus Cristo e aos homens e mulheres de hoje.

2009-11-03

CinV (41) Mudanças políticas: Estado (nº 24)

Nos tempos de Paulo VI, o Estado ainda dispunha de instrumentos que lhe permitiam fixar as prioridades da sua economia e manter um “papel central, embora não exclusivo” ( PP 22-23), pois a “actividade económica e a função política desenrolavam-se em grande parte dentro do mesmo âmbito local e, por conseguinte, podiam inspirar recíproca confiança. A actividade produtiva tinha lugar prevalentemente dentro das fronteiras nacionais e os investimentos financeiros tinham uma circulação bastante limitada para o estrangeiro”.

João Paulo II falava do Estado de direito como condição indispensável da democracia: “Uma autêntica democracia só é possível num Estado de direito e sobre a base de uma recta concepção da pessoa humana. Aquela exige que se verifiquem as condições necessárias à promoção quer dos indivíduos através da educação e da formação nos verdadeiros ideais, quer da «subjectividade» da sociedade, mediante a criação de estruturas de participação e corresponsabilidade” (CA 46).

Esta condição é ainda hoje indispensável, contudo o Estado está fortemente condicionado na sua “soberania pelo novo contexto económico comercial e financeiro internacional, caracterizado nomeadamente por uma crescente mobilidade dos capitais financeiros e dos meios de produção materiais e imateriais. Este novo contexto alterou o poder político dos Estados”. Este circunstancialismo é novo porque, por um lado, as actividades económica e financeira deixaram de ter fronteiras geográficas, tecnológicas e até legislativas (fortemente condicionadas pela globalização) e, por outro, pela crescente associação dos Estados em estruturas supranacionais como a EU, OUA, Mercosul e muitas outras.
Para lá disso, a crise veio colocar novos problemas e desafios, que devem ser aproveitados, na opinião de Bento XVI para tirar lições e proceder a dois exercícios de “correcção”:

1º. Já que os governos, mesmo os mais liberais, foram obrigados a empenar-se directamente na correcção das disfunções económico-financeiras e das suas consequências, “parece mais realista uma renovada avaliação do seu papel e poder (dos poderes públicos do Estado), que hão-de ser sapientemente reconsiderados e reavaliados para se tornarem capazes, mesmo através de novas modalidades de exercício, de fazer frente aos desafios do mundo actual”.

2º. Torna-se mais necessária uma participação dos cidadãos mais directa e empenhada: “Com uma função melhor calibrada dos poderes públicos, é previsível que sejam reforçadas as novas formas de participação na política nacional e internacional que se realizam através da acção das organizações operantes na sociedade civil; nesta linha, é desejável que cresçam uma atenção e uma participação mais sentidas na res publica por parte dos cidadãos”.

Apesar de muito de se falar da crise, é bem possível que os cidadãos não tenham interiorizado a sua parte de culpa nesta situação: o seu estilo de vida, a sua irresponsabilidade frente ao bem comum, a sua ganância e pressão por obter o máximo de lucro dos seus parcos ou chorudos recursos. A crise teve responsáveis directos visíveis que não foram devidamente sancionados, salvo raras excepções; teve responsáveis indirectos visíveis como os funcionários dos sistemas de fiscalização e regulamentação, mas também teve, numa quota parte que não sei definir, milhões de responsáveis anónimos, aqueles cidadãos que só pensam em ter mais, recusando por omissão ou comodismo a colaborar na construção de um mundo mais justo, solidário, fraterno e humano.

2009-11-02

Cinv (40) BRICs

O Papa não utiliza esta expressão já consagrada quando se fala das chamadas economias (países!?) emergentes: “Temos hoje muitas áreas do globo que — de forma por vezes problemática e não homogénea — evoluíram, entrando na categoria das grandes potências destinadas a jogar um papel importante no futuro” (23). Certamente porque estes quatro países (Brasil, Rússia, Índia e China) não são os únicos novos pólos do progresso. Já hoje temos outros países como Singapura ou Coreia no Sudeste asiático. Para lá de que as previsões apontam para a “emergência”, nos próximos anos, de países como o México, a Indonésia e a África do Sul. Poderia ainda acrescentar a chamada “deslocação do Atlântico para o Pacífico”.
De qualquer modo, o Papa volta a lembrar que não basta o desenvolvimento económico: “Contudo há que sublinhar que não é suficiente progredir do ponto de vista económico e tecnológico; é preciso que o desenvolvimento seja, antes de mais nada, verdadeiro e integral. A saída do atraso económico — um dado em si mesmo positivo — não resolve a complexa problemática da promoção do homem nem nos países protagonistas de tais avanços, nem nos países economicamente já desenvolvidos, nem nos países ainda pobres que, além das antigas formas de exploração, podem vir a sofrer também as consequências negativas derivadas de um crescimento marcado por desvios e desequilíbrios”.

Curiosamente o Courrier Internacional do mês passado traz uma entrevista com o indiano T. Tejpal, criador do site e depois do jornal Tehelka (“sensação”), nos quais investiga e denuncia casos de tráfico de influências e de corrupção, que podem ir até ao assassinato, que confirmam estas palavras da encíclica. Todos sabemos que a Índia é um dos grandes “produtores” e criadores nas novas tecnologias, que exporta cérebros e tecnologias para todo o mundo especialmente os Estados Unidos, concretamente na informática: o que seria o Silicon Valley sem o contributo dos informáticos indianos? Sabemos que a Índia consegue lançar satélites para o espaço, mas metade da sua população não dispõe de electricidade; tem mais de 30% dos engenheiros de informática a nível mundial, mas os seus pobres atingem muitas centenas de milhões (80,4% dos indianos vive com menos de 2 dólares por dia); é uma das potências nucleares mas tem a taxa de analfabetismo (35% para os maiores de 15 anos) mais elevada entre os BRIC. Os dados foram publicados pela ONU (PNUD 2008-2009) e no Google.
Voltando a T. Tejpal, diz ele: “Mas como é possível pretender tornar-se uma superpotência, quando o país não alimenta as suas próprias crianças nem as envia todas à escola? Na minha cidade de Deli, não se pode parar num semáforo sem que um cacho de crianças seminuas corram a mendigar uma rupia. Teremos de nos habituar a isto? Na Índia, a corrupção é um sintoma, não uma causa. É sobretudo reveladora da desigualdade. Somos o país do mundo com os mais gritantes extremos. A Índia tem uma população rica de 200 milhões de pessoas, ente as quais 10 milhões muito ricas. Ao lado disso, temos 800 milhões de pobres, dos quais 350 milhões são miseráveis que sobrevivem com menos de 30 cêntimos de euro por dia! É pior que na África subsariana. Enquanto a nossa sociedade não reduzir estes abismos, seremos assombrados pela injustiça e minados pela corrupção. (…) A Índia não evolui com suficiente rapidez. Há 200 milhões de intocáveis, há um milénio”

Para Malouff, foi a libertação da “coleira do dirigismo”, que permitiu à China (e depois à Índia) atingirem os elevados níveis de desenvolvimento. Bastaram três decisões muito simples tomas por Deng Xiao Ping: 1) ordenar, logo que tomou posse, a distribuição a certos camponeses das terras colectivizadas, autorizando-os a vender parte da sua colheita; 2) permitir que os camponeses escolhessem o que queriam plantar; 3) levantar a interdição sobre as pequenas empresas familiares do campo.