divórcio ou casamento eterno?...

2010-09-23

Padres Operários

O dia 23 de Setembro está muito ligado a inicitiva pastoral inovadora, que foi a dos Padres-Operários, que provavelmente muita gente nova não conhece.
Não vou contar a história complexa desta experiência pastoral. Só dois ou três apontamentos.
Em 1925, o padre Cardijn criou a JOC (Juventude Operária Católica), certamente estimulado pelo entusiasmo de Pio XI pela Acção Católica. A ideia era que fossem os operários a evangelizar os operários. Até porque novos estímulos e defensores da classe operária sopravam do lado do marxismo. Efectivamente Karl Marx, com a sua famosa obra, O Capital, fizera uma avaliação “científica” demolidora do capitalismo dominante na Revolução industrial. Citou uma afirmação muito significativa do frade veneziano G. Ortes (o séc. XVIII): “Em vez de projectar, para a felicidade dos povos, sistemas inúteis, limitar-me-ei a procurar a razão da sua miséria. O bem e o mal económicos equilibram-se sempre numa nação: a abundância de bens de uns é sempre igual à falta de bens dos outros; a grande riqueza de um pequeno número é sempre acompanhada da privação das necessidades primárias na multidão” (O Capital, I Vol, p. 415, Delfos 1973; sublinhado meu). Mas Marx também denunciou práticas desumanas. Sobre a ocupação de rapazes nas minas a partir dos dez anos legislações desumanas, citava o Relatório da Comissão especial para as Minas inglesa: “Nas minas, o trabalho, onde se compreende a ida e a volta, dura ordinariamente umas catorze a quinze horas, por vezes desde as três, quatro, cinco da manhã até às quatro, cinco da tarde. Os adultos trabalhavam em dois turnos, cada um de oito horas, mas não há alternância para as crianças, por questão de economia. Os mais novos são encarregados de abrir e fechar portas nos diversos compartimentos da s minas…”. Contudo, como explicou um operário à Comissão, esta “tarefa parece fácil. Mas na realidade é das tarefas mais fatigantes. Sem falar das contínuas correntes de ar, os rapazes são como presos condenados a prisão celular onde não há dia” (id. pp. 307 e 308).
Foi preciso esperar mais de vinte anos para que Leão XIII publicasse a encíclica Rerum Novarum (15.Maio.1891; 1967, ano da saída do primeiro volume de O Capital), onde logo quase a abrir proclama: “No século passado desapareceram as associações antigas, sem que em seu lugar aparecesse qualquer outro meio de defesa; os princípios e o sentimento religiosos desapareceram das leis e das instituições públicas, e assim, pouco a pouco, os operários isolados e sem defesa, têm-se visto entregues pelo condicionalismo dos tempos aos sentimentos desumanos dos seus patrões e à cobiça de uma concorrência desenfreada. Uma usura voraz veio agravar a situação. Condenada repetidamente pelo juízo da Igreja, nem por isso deixou de subsistir sob formas diferentes, levada a cabo por homens avarentos e ávidos de mais ganâncias. Para além de tudo isto, deparamos com a realidade de que a contratação do trabalho e a comercialização de quase todos os produtos se encontram nas mãos de um pequeno número de ricos e opulentos que, desta forma, impõem a essa grande multidão de proletários um jugo que em nada difere do jugo dos escravos” (RN 1).

Cardijn cria a JOC na Bélgica em 1925. Dois anos depois o P.e Guerin cria-a em França, com o objectivo de reduzir o desinteresse que a Igreja manifesta, desde meados do século XIX, pelo mundo operário. É neste contexto que alguns assistentes da JOC descem às minas ou trabalham nas fábricas da Renault. Em 1941, o arcebispo de Paris, que já sonhava, nas suas dioceses anteriores, mandar missionários para as fábricas onde Cristo é ignorado como se enviam missionários para os povos africanos, convenceu a Assembleia dos bispos franceses a organizar uma formação especial de padres destinados aos sectores mais descristianizados de França, seminário que foi inaugurado em 5.Out.1942. Passado um ano, dois assistentes da JOC franceses, H. Godin e Y. Daniel publicam um livro que estoirou como uma bomba logo a começar pelo título: La France, pays de mission? (França, país de missão?). Foi um choque tremendo para as consciências: a missão era para os pretos incultos e selvagens. Este título vinha recordar que a França, como os povos de África ou da Papuásia, precisava também de ser evangelizada. No ano seguinte surge a “Missão de Paris”, cujo “objectivo directo é a conversão dos pagãos e o indirecto é mostrar aos cristãos que devem adoptar uma atitude radicalmente nova”. A ideia de chocar a sociedade e despertá-la foi-se espalhando por toda a França.
Karol Wojtyla (futuro João Paulo II) ficou entusiasmado com o livro, com esta novidade. Aliás ele vai ser um dos campeões da reevangelização da Europa (e do mundo) com a sua ideia da nova evangelização.
Mas o Vaticano não estava a achar piada nenhuma. Pio XII não se compromete, mas Ottaviani, o todo poderoso chefe do “Santo Ofício”, é muito claro: não haverá autorização para celebrar à noite, não haverá flexibilidade para o jejum eucarístico, é obrigatório andar de batina. Por outro lado, Montini (futuro Paulo VI) defende que é necessário “correr certos riscos para que não nos arrependamos de não ter feito tudo pela salvação do mundo”. Gostava que a Igreja (Papa, Bispos, padres e leigos) nunca esquecesse estas palavras ao planificar as actividades pastorais das nossas comunidades.
Depois vieram questões teológicas: o padre pode ser um trabalhador como os outros? A sua presença numa empresa cria uma paróquia? Pio XII responde na exortação Menti Nostrae (23.Set.1950): “O sacerdote é um "alter Christus", porque é assinalado com o carácter indelével que o torna semelhante ao Salvador; o sacerdote representa Cristo” (7). Portanto, o padre, sendo “outro Cristo”, é diferente dos outros baptizados.
Depois vieram questões “sociais”: dois padres são presos numa greve.

É, de novo, num dia 23.Set, mas agora de 1953, que o núncio Marella, por curiosa coincidência, familiar próximo de Ottaviani, manda, em nome do Papa, aos bispos franceses que acabem com os padres operários. De pouco valem as palavras do Liénart, bispo de Lille: “É uma catástrofe para a França e também para o mundo operário. Eu orgulho-me dos meus padres operários!”. Depois veio a caça “às bruxas”: grandes teólogos, como Chenu e Congar, foram afastados; superiores de ordens religiosas obrigados a mandar recolher todos os padres operários.
Só quando Paulo VI foi eleito, a Missão Operária voltará com formas mais atenuadas.

Agora que os Bispos nos pedem para, em caminhada sinodal repensarmos juntos a pastoral em Portugal, seria bom recordar que “Portugal é terra de missão” e que a evangelização hoje exige iniciativas arrojadas e que é necessário “correr certos riscos para que não nos arrependamos de não ter feito tudo pela salvação do mundo”.

2010-09-22

UTAL

Esta sigla, que agora tem andado nas bocas do mundo coimbrão (e não só) é o acrónimo de Unidade de Tumores do Aparelho Locomotor. Gostaria de falar um pouquinho dela, o que significa prestar homenagem a um homem que foi capaz de olhar o futuro com visão, criatividade e sobretudo amor à pessoa do doente.
Há 30 anos, havia apenas um Serviço de Ortopedia Geral nos HUC (Hospitais da Universidade de Coimbra). Qualquer ortopedista tratava de qualquer problema de ossos. Foi então que o Professor Norberto Canha percebeu que isto não estava bem, que com tantos ossos era necessário subdividir o Serviço em várias sub-especialidades. E é assim que se foram preparando especialistas de Ortopedia: para o pé, o joelho, a anca, o ombro, a microcirurgia dos membros, e também para os tumores ósseos e de tecidos moles. Criou ainda uma unidade para os infectados do foro ortopédico (pavilhão C de Celas).
A UTAL, a que trata dos tumores ósseos e de tecidos moles, estava instalada no pavilhão B de Celas. É uma Unidade de referência nacional e internacional, na qual são tratados doentes de todo o país, enviados de 44 Instituições de Saúde, incluindo o IPO. É a que conheço bem, pois sou seu “utente” há quase cinco anos. Quando para lá fui havia três cirurgiões e dois oncologistas. Agora há apenas dois cirurgiões, o Dr. Casanova (o coordenador da Unidade) e o Dr. Laranjo, mas quem me tem tratado é o médico oncologista, o Dr. Paulo Tavares. A sua dedicação e amor aos doentes são qualquer coisa de enternecedor. A acompanhá-los há uma equipa de enfermeiros, que, também eles, na sua esmagadora maioria, cultiva a mesma dedicação e carinho. É uma enfermaria, onde as instalações físicas não eram as melhores, mas em que o ambiente era absolutamente excepcional. Ali estávamos numa espécie de vivenda de campo, onde até os passarinhos nos davam os bons-dias; onde os doentes formavam uma família nos longos dias de convivência, que a doença vai criando: íamos passando aos mais novos alguns ensinamentos e regras para melhor suportar a violência do tratamento; onde os familiares podiam passar o dia connosco e até trazer comida de fora, porque a maioria não podia sequer ouvir o tilintar do carrinho da comida e, pior ainda, levantar a tampa da taça onde a comida era servida. Era um ambiente que muito nos ajudava a suportar o sofrimento, a má disposição crónica, as pressões psicológicas daqueles que iam ser amputados, o desânimo daqueles que tinham de ficar o fim-de-semana.

O plano de reestruturação do Conselho de Administração (CA) dos HUC previa que esta Unidade fosse mudada. Pessoalmente, apesar da mudança já se ter efectuado, não aceitava bem essa ideia.
Mas vejamos as razões evocadas pelo CA enviadas a um doente, via presidente da Coordenação Nacional das Doenças Oncológicas (CNDO), Dr. Manuel António L. Silva, também presidente do CA do IPO de Coimbra, um dos Institutos que manda regularmente doentes para a UTAL:

1) enquadra-se na optimização dos espaços no Bloco Central e desactivação das enfermarias do bloco de Celas que não reúnam as condições consideradas adequadas para internamento: parece-me bem e até necessário se isso for feito em nome do doente; mas o que discordo e todos discordamos é que os doentes desta Unidade sejam misturados com as doentes da Ginecologia; a Unidade vai perder a sua “autonomia”, pelo menos, espacial; vai para casa de outro; vai depender do novo inquilino; e todos sabem que juntar duas famílias, mesmo amigas, na mesma casa acaba por trazer atritos. Portanto, temo sinceramente que mudar assim possa acabar com todo aquele ambiente, com aquela “mística” da UTAL. Esta Unidade vai andar por ali perdida no meio do Hospital sujeita às flutuações e aos humores de outros. Como doente e como cidadão o que quero é uma Unidade a sério, que não só elimine os aspectos negativos que tinha no pavilhão de Celas mas valorize e potencie todas as suas capacidades que a tornam única no país e como Unidade de referência nacional e internacional.

2) foi dada particular importância à questão da redução do número de camas para 18 (recordo que eram 35) uma vez que ficou estabelecido a possibilidade de recorrer aos Hospitais de Dia existentes no Bloco Central e de serem disponibilizadas camas adicionais em caso de necessidade. Este é um argumento inaceitável, que só pode se usado por ignorância da realidade ou por falta de cidadania e até de ética, ao optar por equilibrar as contas dos HUC à custa destes e doutros doentes em vez de controlar gastos com a entrada na Instituição de “amigos” desnecessários e até por vezes incompetentes e com o favorecimento económico de outros. É que os doentes desta Unidade têm mesmo que estar internados: não há hospitais de dia, ambulatório, hospitais regionais que os possam tratar. Seria bom, seria que pudessem, sobretudo os doentes do Algarve, da Madeira e dos Açores. Eu bem sei o que é passar ali dias e dias seguidos, noites e noites longas. Isto chega a ser criminoso, porque se as anteriores 35 camas estavam quase sempre ocupadas, o que acontecerá agora com 18? É uma imoral violação da Solidariedade nacional e uma vergonhosa violação do direito de todos à saúde, sobretudo quando o CA se justifica dizendo que só devem ser tratados os doentes da Região. E os outros que vêm de todo o país, pois não têm outro local para ser tratado, o que lhes acontece: vão chegar cá e ser recusados, não pelos médicos da Unidade, mas pelo próprio CA como já sucedeu (ver abaixo)? Ou vão ser admitidos à custa de uma cunha dos administradores ou dos seus amigos, porque quem manda é o CA? Ou vão morrer em casa e de modo rápido? Eu pessoalmente teria sobrevivido meia dúzia de meses se não fosse parar à UTAL. Assim, já lá vão quase cinco anos. Moralmente não se pode prender quem “vende a alma”; mas legalmente o que se pode fazer a quem viola um direito fundamenta de qualquer cidadão? Aguentar? Mas ao menos gritando a nossa indignação.

3) este processo de relocalização foi fortemente participado por um grupo alargado de profissionais em que tomaram posição de destaque os médicos da Unidade. O que sabemos é que aos médicos da Unidade foi imposta esta mudança, apesar de haver alguns encontros, e ponto final. Mas as meias mentiras não serão o maior dos pecados de muita desta gente.

4) evitar as dificuldades e incómodos para os doentes nomeadamente melhorando o conforto de instalações, anulando a distância aos apoios de emergência,...: esta medida colhe unanimidade dos profissionais e até já era pedida por alguns.

Para terminar gostaria de deixar alguns dados sobre a UTAL:
- como já referi é a ÚNICA Unidade no país onde é possível tratar este tipo de cancros e tumores: só em 2009 realizaram-se 3 636 consultas, das quais 466 primeiras consultas, 996 internamentos e uma intervenção cirúrgica média por dia;
- não tem lista de espera para cirurgia de lesões malignas;
- não teve uma única morte por causa das infecções hospitalares;
- tem elevadas taxas de sobrevida, semelhantes às dos melhores centros mundiais;
- a equipa de Enfermagem foi premiada com o Prémio Melhor Perfomance Colectiva 2003 pela Direcção de Enfermagem dos HUC e homologada pelo CA.
- publicou um livro, 20 artigos científicos e 250 comunicações ou posters em congressos nacionais e internacionais, tendo-lhe sido atribuídos 6 prémios científicos;

Alguém consegue entender por que o CA não acarinha uma Unidade com este curriculum?
Alguém pode aceitar que haja outros Serviços e Unidades de excelência a serem maltratados?
Alguém pode compreender por que estão os HUC, um Hospital de referência nacional, a ser desvalorizados, quase desmantelado aos bocadinhos?
Alguém compreende por que não se denunciam as barbaridades que circulam por aí ou serão só boatos maliciosos? Porque são funcionários e temem pelos seus empregos? Estaremos então comandados pelo medo, o pai de todas as ditaduras, mesmo em democracias formais?
Alguém entende que as forças vivas da cidade e os próprios cidadãos nada façam?

É bem verdade que o que é de todos não é de ninguém!


Do Diário AS BEIRAS de 6.Set.2010, p. 3

2010-09-17

LUTA PELA JUSTIÇA

Há longos dias que não venho visitar os amigos que aqui vêm espreitar.
E assim deixei passar esta notícia tão linda mas simultaneamente tão, tão triste de que há 98 milhões de pessoas a menos a passar fome no mundo… mas há ainda quase mil milhões na miséria extrema. Deixo apenas estas palavras de Bento XVI: “Dar de comer aos famintos é um imperativo ético para toda a Igreja (e, acrescentou eu, para todo o mundo), (por)que é resposta aos ensinamentos de solidariedade e partilha do seu Fundador, o Senhor Jesus. Além disso, eliminar a fome no mundo tornou-se, na era da globalização, também um objectivo a alcançar para preservar a paz e a subsistência da terra. A fome não depende tanto de uma escassez material, como sobretudo da escassez de recursos sociais” (CinV 27).
Não me associei a uma reflexão que todos deveríamos fazer sobre o Serviço Nacional de Saúde, não só sobre os sistema e as alternativas que alguns têm proposto, mas sobretudo sobre o próprio conceito de saúde, que muitos confundem com não estar doente, numa imagem espec ular de que a paz é a ausência da guerra. Mas este é um tema sempre actual.
Também não comemorei mais um aniversário do Google nem dei uma vista de olhos sobre o que isso significou na transformação e democratização informativa e formativa .
Mas há muitas razões que poderia invocar para este silêncio. Desde logo a falta de paz de espírito, que eu devia ser capaz de manter, se fosse fiel àquilo que acredito tão profundamente e proclamo com tanta aparente convicção de que “não nos devemos preocupar com o dia de amanhã” (cf. Mt 6, 25ss). Eu sei bem que, embora sendo um homem de fé, não tenho uma “fé de transportar montanhas” (Mt 17,20). Mas também conheço aquela frase tão pequenina do belíssimo poema de S. Paulo sobre a caridade: o poema todos o conhecem, mas não sei se todos reparam nesta afirmação tão discreta: “Ainda que eu tenha uma fé tão grande que transporte montanhas, se não tiver caridade nada sou” (1Cor 13,2c). E sobretudo a parte final é arrasadora: “Assim sendo, agora permanecem a fé, a esperança e a caridade; mas a maior de todas é a caridade (1Cor 13,13).

Mas a que propósito vem esta introdução tão misteriosa.
É que tenho passado estes dias muito envolvido, também emocionalmente, na mudança (que eu chamo destruição) da UTAL (Unidade de Tumores do Aparelho Locomotor), que tem funcionado num dos pavilhões de Celas e onde eu ando a ser tratado de cancro há quase cinco anos, isto é, num local que foi a minha segunda casa se não a primeira em muitas ocasiões. Onde sofri, mas também onde senti a ética do carinho, a fé nas pessoas, a nudez indizível da minha finitude, a consciência de que quão pequenos somos e de como estamos tão dependentes dos outros. É uma casa que detesto e que amo. E amo as pessoas, os colegas, os médicos, @s enfermeir@s, @s auxiliares. Vou ter de voltar a isto.
Todo este envolvimento emocional não me tem deixado a tal paz de espírito que me permita reflectir com alguma lucidez sobre toda esta avalanche de acontecimentos. Mal chegado de férias e ver os jornais que tinha acumulados, li neles palavras do Presidente do Conselho de Administração (PCA) dos HUC (Hospitais Universitários de Coimbra) que me deixaram revoltado. Mas a ira, mesmo que seja um “santa ira”, tem critérios que deve respeitar. E eu tenho algumas dúvidas que os tenha respeitado, por exemplo, no artigo que imediatamente escrevi e que acabou por ser publicado no Diário de Coimbra.
Essas palavras deixaram-me revoltado porque revelam um desconhecimento fundamental sobre a necessidade de uma relação harmoniosa serviço – família – doente. Revelam um desconhecimento do tipo de doença que ali se trata: dizer que estes doentes podem tratar-se em ambulatório ou em hospitais regionais é ignorar por completo que temos obrigatoriamente de estar internados: os que fazem quimioterapia, os amputados, os que se preparam para estas amputações que exigem não só preparação “médica” mas também psicológica. E, sobretudo revoltou-me a violação da SOLIDARIEDADE e do direito de todos aos tratamentos, quando afirma que reduze as camas para metade, porque vamos tratar só os doentes da nossa região; os outros que vão bater a outra porta, “quais Lázaros, esperando contra toda a esperança um tratamento ou voltando para casa esperando rapidamente o que nos irá acontecer a todos”, como escrevi no referido artigo, que ainda pensei colocar aqui no blog, mas entretanto não pus. É que da duas uma: ou não sabe que esta é e ÚNICA Unidade que em Portugal trata destes casos ou, se o sabe, é evidente que tem de se colocar a pergunta que dei ao artigo: “E, no meio disto, o doente onde fica?”.

Então quais são os meus escrúpulos. São de dois tipos e levam-me à mesma conclusão.
Com cidadão, também corro o grave risco de cair numa característica muito nossa, dos portugueses, a de confundir a pessoa com as suas propostas. Uma proposta má não significa que o autor dela o seja. E a proposta deve ser combatida por todos os meios legítimos e legais. Mas a pessoa, na sua dignidade, deve ser preservada. Ora este é um lirismo, que só podia ser meu, pois na prática é de muito difícil concretização.
Como crente, e sem precisar de recorrer ao Evangelho, aí estão as palavras “revolucionárias” de João XXIII: “É preciso distinguir entre o erro e a pessoa que erra” (PT 158).
Portanto, o meu problema é este: posso eu combater as propostas erradas sem atingir a pessoa?
Mas eu tenho de combater com toda a força as propostas erradas sobretudo quando se podem tornar “estruturas de pecado”. E chamo esta expressão para mais uma citação, que me complica ainda mais a minha paz interior. É de João Paulo II que a escreveu num texto pouco ou nada conhecido e depois a citou em nota de roda-pé numa das suas grandes encíclicas sociais (SRS 36) : “Pois bem: a Igreja, quando fala de situações de pecado ou denuncia como pecados sociais certas situações ou certos comportamentos colectivos ou de grupos sociais, mais ou menos vastos, ou até mesmo de nações inteiras e blocos de nações, sabe e proclama que tais casos de pecado social são o fruto, a acumulação e a concentração de muitos pecados pessoais. Trata-se dos pecados pessoalíssimos de quem gere ou favorece a iniquidade ou dela desfruta; de quem, podendo fazer alguma coisa para evitar, eliminar ou, pelo menos, limitar certos males sociais, deixa de o fazer por preguiça, por medo e temerosa conivência, por cumplicidade disfarçada ou por indiferença; de quem procura escusas na pretensa impossibilidade de mudar o mundo; e, ainda, de quem pretende esquivar-se ao cansaço e ao sacrifício, aduzindo razões especiosas de ordem superior. As verdadeiras responsabilidades, portanto, são das pessoa” (RP 16).

Feita esta introdução vou continuar agora a falar da UTAL e dos HUC.

2010-09-08

A trajectória de cada pessoa

Ontem fiquei a conhecer melhor duas amigas de longa data. Já as conhecia de longa data, já as admirava pela sua dedicação à causa dos excluídos. Aliás tenho alguns e algumas amigas que vivem essa radicalidade evangélica de uma maneira que me causa uma santa inveja. Uma inveja por que não sou capaz, não fui capaz de fazer essa opção radical pelos pobres e preferi a segurança de uma vida de bem instalado, de que nunca passou fome, de que só sabe pelos livros e pelas estatísticas que os pobres existem.
Foi uma longa noite absolutamente fascinante. E logo para mim que, interiormente, ainda olho a noite um pouco a partir de uma expressão cuja paternidade perdi na escuridão do passado latino (nox natura malignans ou qualquer coisa do género: “a noite é por natureza maléfica”, a não ser para dormir) acabei por comprovar o que também já sabia: a noite é também o tempo da confidência, do enraizamento dos sentimentos, da fortificação das amizades, quando é vivida neste clima de tanta comunhão espiritual e material (um brinde à cozinheira, como diz o meu amigo Manel!)
Foi uma longa noite tão curta. Porque contaram a pré-história dessa sua vocação, dessa “pedrada de damasco”, desse “amor à primeira vista” por essa causa, tipo “vi e decidi” sem pensar, pois se lhes tornou evidente que era aquilo mesmo que queriam ser na vida. As palavras do Evangelho surgiram-me claríssimas: “Quem deita a mão ao arado e olha para trás não é digno do Reino de Deus” (Lc 9,62). Deixaram tudo e partiram para uma terra que não conheciam, como Abraão que cegamente obedece à palavra interior de um Deus que mal conhece: “Deixa a tua terra, a tua família e a casa de teus pais e vai para a terra que Eu te indicar” (Gn 12,2). E ele foi. E Elas forma, sem nada a não ser a sua vontade decidida e o seu coração aberto e disponível para “a terra que Eu te indicar”.
Esta vocação-relâmpago, que certamente acontece a muitos, mas que poucos aceitam incondicionalmente, veio ao encontro de uma questão que me colocou um livro que estou a ler. É um livro maravilhoso, que é um hino ao amor e à vida com tudo o que ela tem de bom e de mau: “Somos o Esquecimento que Seremos” de H.Abad Facioline (Quetzal). É um livro corajoso, um coração aberto que fala da (sua) vida como a sentiu e viveu. E espero que viva muitos anos ainda. Revi-me em muitas das suas opiniões, mas não numa delas que passo a citar:

Em última análise, em assuntos de religião, acreditar ou não acreditar é apenas uma decisão racional. A fé ou a falta dela não dependem da nossa vontade, nem de nenhuma misteriosa graça das alturas, mas de uma aprendizagem precoce num ou noutro sentido, que é quase impossível de desaprender. Se na infância e na primeira juventude nos inculcarem crenças metafísicas, ou se, pelo contrário, nos ensinarem um ponto de vista agnóstico ou ateu, quando chegarmos à idade adulta será praticamente impossível mudar de postura. As crianças nascem com um programa inato que as leva a acreditar, acriticamente, no que afirmam com convicção os mais velhos. E é conveniente que assim seja, pois o que seria de nós se nascêssemos cépticos e experimentássemos atravessar as ruas sem olhar para os lados, ou passar o fio da navalha pela cara para ver se corta mesmo, ou aventurarmo-nos na selva sem companhia? Acreditar cegamente no que dizem os pais é uma questão de sobrevivência para qualquer criança, e isso aplica-se também aos assuntos da vida prática e às crenças religiosas. Quem acredita em fantasmas ou em pessoas possuídas pelo Demónio não são criaturas que os viram, mas aquelas que foram instruídas para senti-los e para vê-los (mesmo que não os vissem) desde crianças.
Às vezes, algumas pessoas, ébrias de racionalidade, quando crescem pensam melhor e, durante alguns anos, adoptam o ponto de vista da descrença, mesmo que tenham recebido uma educação confessional. Porém, basta uma qualquer fragilidade da vida, a velhice ou a doença para os tornar tremendamente susceptíveis a procurar o apoio da fé, encarnada numa potência espiritual. Apenas os que forem expostos, desde muito cedo na vida, à semente da dúvida poderão questionar uma ou outra das suas crenças. Contudo, para aqueles que desconhecem a vida espiritual (no sentido de seres e lugares que sobrevivem à morte ou que são preexistentes à nossa própria vida) haverá sempre uma dificuldade adicional, que consiste em que, provavelmente, devido a uma certa agonia existencial do homem e à nossa torturante e tremenda consciência da morte, o consolo proporcionado pela crença noutra vida e numa alma imortal capaz de chegar ao Céu ou de transmigrar será sempre mais atraente e dará mais coesão social e sentimento de irmandade entre pessoas afastadas que a fria e desencantada visão na qual se exclui a existência do sobrenatural. Nós, os homens, sentimos uma profunda paixão natural que nos atrai para o mistério, e é uma tarefa dura e quotidiana evitar a armadilha e a tentação permanente de acreditar numa indemonstrável dimensão metafísica, no sentido de seres sem princípio nem fim que são origem de tudo, e em impalpáveis substâncias espirituais ou almas que sobrevivem à morte física. Porque, se a alma equivale à mente, ou à inteligência, é fácil de demonstrar (basta um acidente cerebral ou os obscuros abismos da doença de Alzheimer) que a alma, como disse um filósofos, não só não é imortal, como é muito mais mortal que o corpo” (pp. 109-111).

Eu não concordo com o determinismo biológico (que não aparece), mas concordo com “o programa inato” de 5 Gbytes do DNA que permitem a nossa sobrevivência também. Concordo com as influências variadas que recebemos nos primeiros anos da nossa vida, mas não concordo com o determinismo cultural. Cada um de nós é “único e irrepetível”, vai-se formando com o “programa inato”, com a educação dos pais, professores, amigos, etc., mas o projecto de vida não resulta só de todas essas influências. Resulta de muitos outros factores a começar pela nossa capacidade crítica, pelas nossas sensibilidades partilhadas, pelos traumas, vividos e até por um sentimento que, para muitos, pode ser difuso, mas que, no fundo, temos de que a pessoa não é apenas o somatório de músculos, tecidos, neurónios e sinapses que se entrelaçam e se multiplicam ou degeneram. Somos um mistério. E, cito mais uma vez uma afirmação de Paulo VI: “No coração do mundo permanece o mistério do próprio homem, o qual se descobre filho de Deus (ou da Natureza), no decurso de um processo histórico e psicológico em que lutam e se alternam violências e liberdade, peso do pecado e sopro do Espírito” (OA 37). O parêntesis é meu.

A não ser assim, como explicar estas vocações-relâmpagos, que viram, muitas vezes, totalmente do avesso o que foi recebido nos primeiros anos?