divórcio ou casamento eterno?...

2012-04-25

Cumprir Abril



PARA CONSTRUIR ...


Vamos fazer florir todos os cravos de gratuitidade que temos dentro de nós e da nossa sociedade.



PARA RECORDAR ...

Aqui deixo dois poemas de Manel Alegre e o longo poema de Ary dos Santos




Abril de Abril

Era um Abril de amigo       Abril de trigo
Abril de trevo e trégua e vinho e húmus
Abril de novos ritmos novos rumos.
Era um Abril comigo       Abril contigo
ainda só ardor e sem ardil
Abril sem adjectivo Abril de Abril.
Era um Abril na praça     Abril de massas
era um Abril na rua      Abril a rodos
Abril de sol que nasce para todos.
Abril de vinho e sonho em nossas taças
era um Abril de clava    Abril em acto
em mil novecentos e setenta e quatro.
Era um Abril viril      Abril tão bravo
Abril de boca a abrir-se     Abril palavra
esse Abril em que     Abril se libertava.
Era um Abril de clava    Abril de cravo
Abril de mão na mão e sem fantasmas
esse Abril em que Abril floriu nas armas.

Manuel Alegre
30 Anos de Poesia, p. 454
Publicações Dom Quixote





Abril de Sim Abril de Não

Eu vi Abril por fora e Abril por dentro
vi o Abril que foi e Abril de agora
eu vi Abril em festa e Abril lamento
Abril como quem ri como quem chora.

Eu vi chorar Abril e Abril partir
vi o Abril de sim e Abril de não
Abril que já não é Abril por vir
e como tudo o mais contradição.

Vi o Abril que ganha e Abril que perde
Abril que foi Abril e o que não foi
eu vi Abril de ser e de não ser.

Abril de Abril vestido (Abril tão verde)
Abril de Abril despido (Abril que dói)
Abril já feito. E ainda por fazer.

Manuel Alegre
30 Anos de Poesia, p. 457
Publicações Dom Quixote 


Mas pelo menos não deixemos murchar os que já temos.



As Portas que Aril abriu
Era uma vez um país
onde entre o mar e a guerra
vivia o mais infeliz
dos povos à beira-terra.
Onde entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo se debruçava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.
Era uma vez um país
onde o pão era contado
onde quem tinha a raiz
tinha o fruto arrecadado
onde quem tinha o dinheiro
tinha o operário algemado
onde suava o ceifeiro
que dormia com o gado
onde tossia o mineiro
em Aljustrel ajustado
onde morria primeiro
quem nascia desgraçado.
Era uma vez um país
de tal maneira explorado
pelos consórcios fabris
pelo mando acumulado
pelas ideias nazis
pelo dinheiro estragado
pelo dobrar da cerviz
pelo trabalho amarrado
que até hoje já se diz
que nos tempos do passado
se chamava esse país
Portugal suicidado.
Ali nas vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
vivia um povo tão pobre
que partia para a guerra
para encher quem estava podre
de comer a sua terra.
Um povo que era levado
para Angola nos porões
um povo que era tratado
como a arma dos patrões
um povo que era obrigado
a matar por suas mãos
sem saber que um bom soldado
nunca fere os seus irmãos.
Ora passou-se porém
que dentro de um povo escravo
alguém que lhe queria bem
um dia plantou um cravo.
Era a semente da esperança
feita de força e vontade
era ainda uma criança
mas já era a liberdade.
Era já uma promessa
era a força da razão
do coração à cabeça
da cabeça ao coração.
Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.
Esses que tinham lutado
a defender um irmão
esses que tinham passado
o horror da solidão
esses que tinham jurado
sobre uma côdea de pão
ver o povo libertado
do terror da opressão.
Não tinham armas é certo
mas tinham toda a razão
quando um homem morre perto
tem de haver distanciação
uma pistola guardada
nas dobras da sua opção
uma bala disparada
contra a sua própria mão
e uma força perseguida
que na escolha do mais forte
faz com que a força da vida
seja maior do que a morte.
Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.
Posta a semente do cravo
começou a floração
do capitão ao soldado
do soldado ao capitão.
Foi então que o povo armado
percebeu qual a razão
porque o povo despojado
lhe punha as armas na mão.
Pois também ele humilhado
em sua própria grandeza
era soldado forçado
contra a pátria portuguesa.
Era preso e exilado
e no seu próprio país
muitas vezes estrangulado
pelos generais senis.
Capitão que não comanda
não pode ficar calado
é o povo que lhe manda
ser capitão revoltado
é o povo que lhe diz
que não ceda e não hesite
- pode nascer um país
do ventre duma chaimite.
Porque a força bem empregue
contra a posição contrária
nunca oprime nem persegue
- é força revolucionária!
Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade.
Disse a primeira palavra
na madrugada serena
um poeta que cantava
o povo é quem mais ordena.
E então por vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
desceram homens sem medo
marujos soldados «páras»
que não queriam o degredo
dum povo que se separa.
E chegaram à cidade
onde os monstros se acoitavam
era a hora da verdade
para as hienas que mandavam
a hora da claridade
para os sóis que despontavam
e a hora da vontade
para os homens que lutavam.
Em idas vindas esperas
encontros esquinas e praças
não se pouparam as feras
arrancaram-se as mordaças
e o povo saiu à rua
com sete pedras na mão
e uma pedra de lua
no lugar do coração.
Dizia soldado amigo
meu camarada e irmão
este povo está contigo
nascemos do mesmo chão
trazemos a mesma chama
temos a mesma ração
dormimos na mesma cama
comendo do mesmo pão.
Camarada e meu amigo
soldadinho ou capitão
este povo está contigo
a malta dá-te razão.
Foi esta força sem tiros
de antes quebrar que torcer
esta ausência de suspiros
esta fúria de viver
este mar de vozes livres
sempre a crescer a crescer
que das espingardas fez livros
para aprendermos a ler
que dos canhões fez enxadas
para lavrarmos a terra
e das balas disparadas
apenas o fim da guerra.
Foi esta força viril
de antes quebrar que torcer
que em vinte e cinco de Abril
fez Portugal renascer.
E em Lisboa capital
dos novos mestres de Aviz
o povo de Portugal
deu o poder a quem quis.
Mesmo que tenha passado
às vezes por mãos estranhas
o poder que ali foi dado
saiu das nossas entranhas.
Saiu das vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
onde um povo se curvava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe.
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu.
Essas portas que em Caxias
se escancararam de vez
essas janelas vazias
que se encheram outra vez
e essas celas tão frias
tão cheias de sordidez
que espreitavam como espias
todo o povo português.
Agora que já floriu
a esperança na nossa terra
as portas que Abril abriu
nunca mais ninguém as cerra.
Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.
Quando o povo desfilou
nas ruas em procissão
de novo se processou
a própria revolução.
Mas eram olhos as balas
abraços punhais e lanças
enamoradas as alas
dos soldados e crianças.
E o grito que foi ouvido
tantas vezes repetido
dizia que o povo unido
jamais seria vencido.
Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.
E então operários mineiros
pescadores e ganhões
marçanos e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
souberam que o seu dinheiro
era presa dos patrões.
A seu lado também estavam
jornalistas que escreviam
actores que se desdobravam
cientistas que aprendiam
poetas que estrebuchavam
cantores que não se vendiam
mas enquanto estes lutavam
é certo que não sentiam
a fome com que apertavam
os cintos dos que os ouviam.
Porém cantar é ternura
escrever constrói liberdade
e não há coisa mais pura
do que dizer a verdade.
E uns e outros irmanados
na mesma luta de ideais
ambos sectores explorados
ficaram partes iguais.
Entanto não descansavam
entre pragas e perjúrios
agulhas que se espetavam
silêncios boatos murmúrios
risinhos que se calavam
palácios contra tugúrios
fortunas que levantavam
promessas de maus augúrios
os que em vida se enterravam
por serem falsos e espúrios
maiorais da minoria
que diziam silenciosa
e que em silêncio fazia
a coisa mais horrorosa:
minar como um sinapismo
e com ordenados régios
o alvor do socialismo
e o fim dos privilégios.
Foi então se bem vos lembro
que sucedeu a vindima
quando pisámos Setembro
a verdade veio acima.
E foi um mosto tão forte
que sabia tanto a Abril
que nem o medo da morte
nos fez voltar ao redil.
Ali ficámos de pé
juntos soldados e povo
para mostrarmos como é
que se faz um país novo.
Ali dissemos não passa!
E a reacção não passou.
Quem já viveu a desgraça
odeia a quem desgraçou.
Foi a força do Outono
mais forte que a Primavera
que trouxe os homens sem dono
de que o povo estava à espera.
Foi a força dos mineiros
pescadores e ganhões
operários e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
que deu o poder cimeiro
a quem não queria patrões.
Desde esse dia em que todos
nós repartimos o pão
é que acabaram os bodos
- cumpriu-se a revolução.
Porém em quintas vivendas
palácios e palacetes
os generais com prebendas
caciques e cacetetes
os que montavam cavalos
para caçarem veados
os que davam dois estalos
na cara dos empregados
os que tinham bons amigos
no consórcio dos sabões
e coçavam os umbigos
como quem coça os galões
os generais subalternos
que aceitavam os patrões
os generais inimigos
os generais garanhões
teciam teias de aranha
e eram mais camaleões
que a lombriga que se amanha
com os próprios cagalhões.
Com generais desta apanha
já não há revoluções.
Por isso o onze de Março
foi um baile de Tartufos
uma alternância de terços
entre ricaços e bufos.
E tivemos de pagar
com o sangue de um soldado
o preço de já não estar
Portugal suicidado.
Fugiram como cobardes
e para terras de Espanha
os que faziam alardes
dos combates em campanha.
E aqui ficaram de pé
capitães de pedra e cal
os homens que na Guiné
aprenderam Portugal.
Os tais homens que sentiram
que um animal racional
opõe àqueles que o firam
consciência nacional.
Os tais homens que souberam
fazer a revolução
porque na guerra entenderam
o que era a libertação.
Os que viram claramente
e com os cinco sentidos
morrer tanta tanta gente
que todos ficaram vivos.
Os tais homens feitos de aço
temperado com a tristeza
que envolveram num abraço
toda a história portuguesa.
Essa história tão bonita
e depois tão maltratada
por quem herdou a desdita
da história colonizada.
Dai ao povo o que é do povo
pois o mar não tem patrões.
- Não havia estado novo
nos poemas de Camões!
Havia sim a lonjura
e uma vela desfraldada
para levar a ternura
à distância imaginada.
Foi este lado da história
que os capitães descobriram
que ficará na memória
das naus que de Abril partiram
das naves que transportaram
o nosso abraço profundo
aos povos que agora deram
novos países ao mundo.
Por saberem como é
ficaram de pedra e cal
capitães que na Guiné
descobriram Portugal.
E em sua pátria fizeram
o que deviam fazer:
ao seu povo devolveram
o que o povo tinha a haver:
Bancos seguros petróleos
que ficarão a render
ao invés dos monopólios
para o trabalho crescer.
Guindastes portos navios
e outras coisas para erguer
antenas centrais e fios
dum país que vai nascer.
Mesmo que seja com frio
é preciso é aquecer
pensar que somos um rio
que vai dar onde quiser
pensar que somos um mar
que nunca mais tem fronteiras
e havemos de navegar
de muitíssimas maneiras.
No Minho com pés de linho
no Alentejo com pão
no Ribatejo com vinho
na Beira com requeijão
e trocando agora as voltas
ao vira da produção
no Alentejo bolotas
no Algarve maçapão
vindimas no Alto Douro
tomates em Azeitão
azeite da cor do ouro
que é verde ao pé do Fundão
e fica amarelo puro
nos campos do Baleizão.
Quando a terra for do povo
o povo deita-lhe a mão!
É isto a reforma agrária
em sua própria expressão:
a maneira mais primária
de que nós temos um quinhão
da semente proletária
da nossa revolução.
Quem a fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
um menino que sorriu
uma porta que se abrisse
um fruto que se expandiu
um pão que se repartisse
um capitão que seguiu
o que a história lhe predisse
e entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo que levantava
sobre um rio de pobreza
a bandeira em que ondulava
a sua própria grandeza!
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
e só nos faltava agora
que este Abril não se cumprisse.
Só nos faltava que os cães
viessem ferrar o dente
na carne dos capitães
que se arriscaram na frente.
Na frente de todos nós
povo soberano e total
que ao mesmo tempo é a voz
e o braço de Portugal.
Ouvi banqueiros fascistas
agiotas do lazer
latifundiários machistas
balofos verbos de encher
e outras coisas em istas
que não cabe dizer aqui
que aos capitães progressistas
o povo deu o poder!
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe!
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu!

José Carlos Ary dos Santos
Obra poética




2012-04-06

Semana Santa 5




Acabei de celebrar a Via-sacra com a minha mãe, um sapiente senhora de 92 anos, quase cega e impossibilitada de caminhar. Celebrámos a Via-sacra de um velho livro – Pensai-o bem – que ela muito gostava de ler, quando podia ver. A sua linguagem é, como se imagina, pré-conciliar, mas associa à minha mãe a sua longa e ascendente caminhada interior de fé.
Ali estivemos dois doentes a recordar os 15 passos da Paixão: acrescentei uma XV estação, a da Ressurreição, que sempre achei que faltava na Via Sacra. Foi um tempo muito bonito e uma celebração apropriada para a minha mãe e para mim.

Mas não é disso que quero falar. Como sabemos, hoje, segundo os evangelhos, à hora nona (15 horas) Jesus morreu na Cruz.
E quero citar parte da minha última crónica, antes de continuar a minha reflexão de hoje.
“Talvez possamos imaginar o quanto terá sido doloroso para os discípulos de Jesus vê-lo morrer na cruz. De repente, tudo aquilo em que acreditaram, toda a sua esperança e expectativa messiânica se esboroa quando aquele homem corajoso, tão cheio de fé e confiança em Deus, num instante se torna um farrapo humano, por ter sido flagelado, coroado de espinhos, pregado no madeiro de uma cruz, numa tal dose de sofrimento que não pode evitar o grito lancinante e desesperado “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”. O choque foi tão grande que os discípulos, com excepção das eternas maltratadas mulheres, fugiram, negaram-no, traíram-no, perderam a fé na nele: “Nós que esperávamos tanto dele, afinal…” (Lc 24, 21) lamentavam-se os caminhantes de Emaús.
         Só mais tarde, depois da Ressurreição, eles perceberam. E perceberam-no tão bem que foram pregá-lo, mesmo sabendo que iriam ser presos, e, uma vez libertados, voltaram a testemunha-lo até que a morte pôs cobro àquela insistência. Pelo Ressuscitado trocaram tudo, sujeitaram-se a tudo, porque, apesar de pregarem “um Messias crucificado (que era) escândalo para os judeus e loucura para os gentios”, eles sabiam que “para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder de Deus e sabedoria de Deus” (1Cor 1,23-24).
         Mas nós hoje, que já vivemos no tempo da Ressurreição, não podemos esquecer a Cruz. Hoje sabemos que Jesus esteve sempre do lado das vítimas da história, que essa identificação máxima aconteceu na Cruz, que não foi o fracasso mas a vitória ao serviço da vida e da vida em plenitude, autenticada por Deus Pai com a Ressurreição. Os vencedores não foram os carrascos políticos e religiosos que assassinaram Jesus, condenando o seu estilo de vida. O vencedor foi o Crucificado que viu o seu estilo de vida ser abençoado e glorificado pela Ressurreição. Sentimos nós realmente o amor de Deus pelo mundo nesse “zé ninguém” pregado na Cruz?”

Agora apenas quero ilustrar a ideia atrás referida de "que Jesus esteve sempre do lado das vítimas da história e que essa identificação máxima aconteceu na Cruz”. E vou fazê-lo com três exemplos dos muitos que poderia utilizar.

As vítimas do poder político
Jesus morreu juntamente e está a ser crucificado em todos os que lutam pela liberdade e por uma sociedade mais democrática, sejam os milhares de sírios, palestinianos, sudaneses. Jesus morreu também naquele farmacêutico grego que “teve” de se suicidar para responder à injustiça: “Dado que já não tenho idade que me permita recorrer à força, não encontro outra solução que não seja um final digno antes de começar a procurar comida nos caixotes do lixo”. Quer dizer que Jesus aprova o suicídio? Não. Quer dizer que ele está com os que sofrem e com os que suportam o sofrimento e talvez ainda mais com os que o não suportam.

As vítimas do poder económico
Jesus morre todos os dias nos milhares de crianças e adultos que morrem de fome e está a ser crucificado nos milhões que apenas têm um dólar ou menos por dia para sobreviverem, enquanto as multinacionais (os seus responsáveis) enchem os bolsos de dinheiro e de poder, impõem as suas regras desumanizadoras, compram as agências de rating para ir criando mais vítimas nas quais Jesus fica crucificado até morrer.
Jesus está também crucificado nas pequenas e médias empresas portuguesas que estão a ser amordaçadas por banqueiros imorais, que pedem emprestado dinheiro a cerca de 1% de juro e depois o emprestam às PMEs a valores próximos dos 10%, mais do que na Irlanda ou na Grécia. Jesus está crucificado porque por detrás de todas essas empresas há pessoas que vão passar fome, perder a sua auto-estima, tapar a cara com vergonha de se sentirem inúteis.

Vítimas do poder religioso
Jesus está também a ser crucificado nos teólogos que são perseguidos, vêem os seus direitos humanos e eclesiais violados, são tratados quase como hereges só porque não pregam humildemente, acriticamente e subservientemente a doutrina dos bispos inquisidores e procuram antes aprofundar a doutrina dos Evangelhos. Como prova desta afirmação pouco ortodoxa posso referir o que se passou com Pagola que foi perseguido por bispos espanhóis, quando o cardeal Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, o apresentava como um autor no qual se poderia saber o que de mais recente a investigação teológica nos dizia sobre Jesus.
Mas queria referir a última vítima, Torres Queiruga. Sobre ele apenas vou dar andamento ao pedido de divulgação de um conjunto de teólogos espanhóis, de quem recebi o seguinte e-mail:

Amigos de Iglesia Viva y amigos varios:
Como compañeros de Andrés Torres Queiruga desde hace muchos años en la tarea de crear un pensamiento cristiano fiel a la vez al evangelio de Jesús y a nuestro tiempo, comprenderéis que hemos recibido en nuestro rostro como propia la bofetada que le han dado los obispos de la Comisión para la defensa de la Fe y de la Permanente.
No podíamos quedar callados.
Y hemos firmado muy responsablemente el documento que os acompañamos.
Os rogamos deis la mayor difusión posible, por los medios a los que tengáis acceso.
Hemos querido expresamente, más que hacer una declaración institucional, firmar el documento con nuestros nombres y apellidos.
Aparecerá mañana miércoles en la web de iglesia Viva. Y esperamos que en más medios.
Un cordial abrazo, en nombre de todos los firmantes, de
Antonio

Antonio Duato
IGLESIA VIVA
Apartado 12.210
46020 VALENCIA
Tel: 963 622 532  Mov: 609 510 862


Como compañeros y amigos de Andrés Torres Queiruga queremos hacer públicas las siguientes reflexiones:

1.En nuestra condición de católicos y miembros de la Iglesia agradecemos el trabajo intelectual que Andrés Torres Queiruga ha venido realizando durante más de cuarenta años. El conjunto de su fecundo pensamiento supone una cumbre histórica del servicio de la teología española a la verdad de la fe cristiana. Su empeño por pensar en diálogo con la cultura actual ha ayudado a creer bien a muchos cristianos de hoy («intellige, ut credas», “comprende para creer”). Y somos testigos de que, al mismo tiempo, su fe en el Dios Antimal ha exigido y estimulado su pensar teológico («crede, ut intelligas», “cree para entender”). Por todo ello nos parece muy grave que el texto de la  Notificación no contenga ni una palabra de reconocimiento de su entrega intelectual o de agradecimiento por el bien que ha hecho a la fe de los cristianos. Tenemos la certeza de que este modo de proceder nada tiene que ver con el de Jesús de Nazaret, fuente y centro neurálgico de la tradición de fe cristiana.

2.Sin renunciar a pronunciamientos posteriores y más extensos sobre la Notificación, ahora hemos de señalar lo siguiente:
a.La teología que rezuma la Notificación difícilmente recibiría el aprobado en un examen de la mayoría de las Facultades teo­lógicas del mundo. No hay más que visitar los tratados escritos por los profesores más relevantes de las mismas.
b.No es de recibo que el “Catecismo de la Iglesia Católica” sea uno de los referentes desde el que se evalúa y se juzga la consonancia de la teología de Andrés Torres Queiruga con la verdad de la fe. Las afirmaciones dogmáticas de la Iglesia son el referente de todo trabajo teológico y deben siempre mantenerse como tales. Pero sus manifestaciones catequéticas han ido variando y seguirán variando a lo largo de los tiempos. Es más que discutible que dicho Catecismo en todos sus apartados exprese en su integridad y con toda la necesaria riqueza la verdad de la fe. Además, utilizarlo como elemento dirimente para juzgar la obra científica de un teólogo reconocido, resulta similar a valorar las aportaciones de un investigador de primera fila a la luz de los manuales utilizados para la enseñanza de su materia en los cursos iniciales de graduación universitaria.
c.Como viene siendo habitual en los últimos tiempos, también en este caso el magisterio episcopal identifica su teología con la verdad de la fe. Es una práctica que denunciamos rotundamente porque tergiversa de manera grave el servicio al evangelio que corresponde legítimamente al ministerio episcopal.
d.Se acusa a Andrés Torres Queiruga de «reducir la fe cristiana a las categorías de la cultura dominante» y de «eliminar u oscurecer la novedad introducida por la Encarnación del Hijo de Dios». Quienes le imputan tan grave acusación lo hacen desde una fe expresada en las categorías propias de una cultura venerable, pero obsoleta. Al actuar de ese modo, ¿no serán ellos los que están reduciendo la fe a las categorías de esa cultura? Los “nuevos paradigmas” no los deciden los teólogos, sino las transformaciones culturales. Hablamos de “nuevo paradigma” teológico cuando la teología tiene que pensar la fe en un nuevo paradigma cultural. Es lo que con libertad supo hacer la Iglesia en su más antigua tradición para expresar salvíficamente la fe cristológica y trinitaria en el paradigma griego, bien diferente al semita. ¿Qué evaluación merecería la confesión de Calcedonia desde una concepción inmutable del paradigma del evangelio de Marcos? Esta inculturación de la fe es lo que ahora se impide hacer, porque en la comunidad teológica impera la ley del miedo y muchos teólogos callan para no tener que arrostrar problemas que traigan consigo “efectos colaterales”.
e.Es falso que, como afirma la Notificación, se haya “mantenido un diálogo extenso y detenido con el Autor”. Un encuentro de un par de horas con algunos miembros de la Comisión firmante para señalar las cuestiones teológicas a debate, y ello cuarenta y ocho horas antes de firmarse la Notificación, está lejos de lo que debe ser un diálogo serio, profundo y sincero, y tiene toda la apariencia de buscar una coartada que no engaña a nadie.
f.Terminamos animando a Andrés Torres Queiruga a que prosiga con libertad y fortaleza su trabajo de reflexión y de investigación teológica para el mejor servicio a la Iglesia y el impulso a la credibilidad del anuncio evangélico ante los desafíos de la cultura actual.
4 de abril de 2012

Joaquín Perea, Josep Antoni Comes, Jesús Conill, Adela Cortina, Rafael Díaz-Salazar, Antonio Duato, Teresa Forcades, Carlos García de Andoin, Joaquín García Roca, Mª Dolors Oller, José Miguel Rodríguez, Demetrio Velasco, Javier Vitoria y José Antonio Zamora.

Há dois mil anos, Jesus foi crucificado e morreu numa cruz condenado pelos poderes religiosos, políticos e económicos.

Hoje, Jesus continua a ser crucificado ou a morrer condenado pelos poderes políticos, económicos e religiosos. 

2012-04-05

Semana Santa 4

Há alguns anos escrevi uma das minhas crónicas sobre o filme de Mel Gibson que retratava a paixão de Jesus. Foi uma verdadeira meditação pascal feita numa sala de cinema. Aquela violência, física e psicológica, que repassava todo o filme, fez-me reviver o que, penso, terá sido a verdadeira paixão de Cristo. Houve muitos cristãos que acharam um exagero e quase uma blasfémia aquela maneira de descrever a paixão. Curiosamente, a única carta de elogio foi-me mandada por um bispo.
Ainda hoje penso que para mutos cristãos aquelas passagens do Evangelho que são literatura, que a realidade do sofrimento não foi bem assim. Ou mesmo que muitos acreditam no que lêem, mas não o levam muito a sério. “A flagelação” está lá escrito mas não interiorizamos o que terá sido esse sofrimento porque nunca passámos por esse suplício. E, depois, talvez inconscientemente, acreditemos que Jesus, porque era Deus, não devia sofrer com a mesma intensidade das pessoas, apesar de também ser homem. Eu acho que há aqui uma espécie de monofisismo (uma só natureza) quando pensamos na Paixão.

Tendo isto presente, pensei meditar hoje sobre um tema aparentemente sem interesse religioso, mas apenas histórico. O que não é verdade. Podia chamar-lhe como tecnicamente se calcula a “data da última ceia” ou se a “ceia foi pascal ou não”. Mas vou apenas procurar seguir os vários acontecimentos que antecedem a morte de Jesus, que “estão envolvidos num emaranhado de hipóteses contrastantes entre si, o que parece impossibilitar de tal modo o acesso ao facto real que quase não deixa esperança de que isso seja possível”. Por isso, “certamente não podemos dispensarmo-nos de enfrentar a questão da efectiva historicidade dos acontecimentos essenciais” (Bento XVI, Jesus de Nazaré, II, p. 91). Quanto mais não seja para que não percamos de vista que a nossa fé é uma fé assente em acontecimentos históricos: Jesus existiu; comeu uma última ceia com os seus discípulos, sofreu; foi pregado na cruz; morreu. A ressurreição já fica para lá da história: restam vestígios, testemunhos e sobretudo uma força anímica de um bando de medrosos que de repente se tornam os mais corajosos do mundo.

Sofrimento insuportável
Mas o sofrimento foi real e de uma brutalidade inusitada. Por isso devemos ter bem presente que não se tratou de umas horitas de sofrimento, que não foi resultado da decisão manipulada de uma multidão exaltada e irracional. Não. Tratou-se de uma decisão premeditada pelas autoridades do Templo (“ou ele ou nós, dizia Caifás), das autoridades romanas (o lavar das mãos de Pilatos terá mais a ver com as guerras dos cristãos primitivos com os judeus que alguns evangelistas retratam e que nesse contexto procuram desculpar Pilatos) e até da multidão de Jerusalém (qual o seu grau de culpa, não sei avaliar; mas penso nos alemães do tempo de Hitler: era impossível que ninguém soubesse de nada, dos campos de extermínio, mas todos ficaram calados; não estou a acusá-los de nada porque se eu lá estivesse certamente também não teria feito nada; mas isso não retira a culpa colectiva).
Portanto, o que queria era mostrar que a Paixão de Cristo foi muito mais violenta e pavorosa que nós habitualmente pensamos. E se assim foi temos de concluir, e este é o meu objectivo, que Jesus manteve uma adesão férrea à missão que Deus lhe confiou, uma missão que não tinha que passar pela morte, mas que os poderosos do seu tempo obrigaram a isso. Mas o que quero destacar é que, apesar de todas as pressões, a atrocidades, violências, Jesus não se desviou do seu caminho, manteve-se fiel não umas horas mas o tempo todo que teve de sofrer. E isto é um grande desafio para nós, seus discípulos: a nossa adesão a Jesus não pode ser quebrada por nada, como nada quebrou a sua adesão ao Pai. Temos de levar a sério e cumprir o que diz este lindíssimo hino primitivo:
“Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a perseguição, a espada?... Estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem as potestades, nem a altura nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus Senhor nosso” (Rom 8, 35.38-39).

Data da Última Ceia
Desde os anos 50, Annie Jaubert vem estudando o problema das contradições dos vários evangelhos sobre o dia da última Ceia. A sua tese é que ela teria acontecido na quarta-feira à noite foi muito debatida e contestada, mas no fundo talvez resolva uma série de dificuldades, que têm a ver com a volumosa série de acontecimentos que decorreram desde a prisão à morte de Jesus.
Comecemos por recordar os factos, tendo presente que os Judeus contam os dias “tarde e manhã” (quarta-feira = terça-feira tarde e noite e manhã de quarta). Jesus, depois da Última Ceia, foi preso nessa noite já adiantada, julgado em casa do Sumo Sacerdote onde se juntaram os sacerdotes, anciãos e escribas (Sinédrio). Depois foi necessário encontrar testemunhas falsas, o que foi difícil, porque os seus testemunhos não eram concordantes. Há a negação de Pedro quando ele sai desse julgamento. De manhã houve nova reunião do Sinédrio, que prendeu Jesus e o enviou a Pilatos, que o interrogou o bastante para tentar libertá-lo. Ainda andou de Pilatos para Herodes e de Herodes para Pilatos, que acabou por decidir então propor à multidão a escolha entre Jesus e Barrabás. Feita a escolha, Pilatos mandou flagelá-lo para ser crucificado. Os soldados levaram-no para o pátio onde o flagelaram e escarneceram dele: puseram-lhe uma coroa de espinhos, batiam-lhe na cabeça, cuspiram-no, dobravam os joelhos perante ele, tiraram-lhe o manto de púrpura e vestiram-lhe as suas vestes. Então levaram-no para o monte Calvário; pelo caminho caiu e precisou de ser ajudado. Finalmente pregaram-no na cruz: “era a hora tercia”, ou seja, cerca das nove horas da manhã. As trevas cobriram toda a terra na hora sexta (meio-dia) e à hora nona (três da tarde) Jesus deu um grande brado e expirou.
É só fazer as contas: tudo isto aconteceu desde a tarde de um dia quando se juntaram para comer a ceia até às nove da manhã quando o pregaram na cruz.
Vejamos a teoria da Última Ceia na noite de terça-feira (quarta-feira judaica) e a sequência possível (Ariel Alvarez), utilizando a nossa contagem dos dias:
Terça-feira: à noite Jesus celebra a Última Ceia com os seus discípulos; segue para o monte das Oliveiras, onde é preso e levado perante o sumo sacerdote.
Quarta-feira: de manhã, realiza-se a primeira reunião do Sinédrio, que quer ouvir testemunhas; Jesus passa essa noite na prisão dos judeus.
Quinta-feira: de manhã, nova reunião do Sinédrio que condena Jesus à morte e o manda a Pilatos que, depois de o interrogar, o manda para Herodes, que lho devolve; Jesus passa essa noite na prisão dos romanos.
Sexta-feira: de manhã Pilatos recebe Jesus pela segunda vez, manda flagelá-lo e depois crucificá-lo. Às três horas, morre.
Em favor desta tese há uma série de normas judaicas:
- qualquer julgamento devia acontecer durante o dia;
- era proibido condenar o réu na véspera do sábado ou da festa;
- ninguém podia ser condenado à morte antes de passarem 24 horas após a sua prisão.
Por outro lado, os evangelhos narram os últimos momentos de Jesus até terça à noite; mas nada dizem de quarta e de quinta.
A Didascália dos Apóstolos, documento do século III afirma que “depois de ter comido a Páscoa na terça à tarde, nós (os apóstolos) fomos ao monte das Oliveiras e durante a noite prenderam o Senhor. No dia seguinte, que era quarta-feira, ficou preso em casa do sumo sacerdote” (V, 14).
Vitorino de Pettau, bispo de Estíria, falecido em 304, escreveu: “Cristo foi preso ao quarto dia (terça-feira à tarde = quarta para os Judeus). Por causa da sua prisão jejuamos quarta-feira; pela sua paixão, jejuamos sexta-feira”.
A Didaké, que apresentei ontem, recomendava: “Não jejueis nos mesmos dias que o fazem os hipócritas, pois estes jejuam no segundo e no quinto dia da semana. Vós, porém, o dia quarto e o da preparação (sexto)” (VIII).
O teólogo J. Ratzinger, actual Papa Bento XVI, defende outra posição, que todos poderão ler no seu II volume de Jesus de Nazaré: Jesus comeu a última ceia na quinta-feira, mas essa ceia não teve as características da Páscoa judaica: “o essencial desta Ceia de despedida não foi a Páscoa antiga, mas a novidade que Jesus realizou neste contexto. Mesmo se esta refeição de Jesus com os Doze (!?) não foi uma ceia pascal segundo as prescrições rituais do judaísmo, num olhar restrospectivo tornou-se evidente, com a morte e ressurreição de Jesus, o significado intrínseco do todo: era a Páscoa de Jesus. E, neste sentido, Ele celebrou a Páscoa e não a celebrou. Os ritos antigos não podiam ser praticados; quando chegou o momento, Jesus já estava morto. Mas Ele entregara-se a Si mesmo e assim tinha celebrado com eles verdadeiramente a páscoa. Desta forma, o antigo não tinha sido negado, mas – e só assim poderia ser – levado ao seu sentido pleno. O primeiro testemunho desta visão unificadora do novo e do antigo, que é operada pela nova interpretação da Ceia de Jesus em relação com a Páscoa no contexto da sua morte e ressurreição, encontra-se em Paulo: ´Purificai-vos do velho fermento para serdes uma nova massa, já que sois pães ázimos. Pois Cristo, nossa Páscoa, foi imolado’ (1Cor 5,7)… Com base nisto, pode-se compreender como a Última Ceia de Jesus … bem depressa acabou por ser considerada como Páscoa, como a sua Páscoa” (pp. 100-101).

Fiz esta citação longa do Papa, pois quem sou eu para discutir estas coisas. Mas sinceramente querer meter tal sequência de acontecimentos em tão pouco tempo, parece-me um pouco como querer “meter o Rossio na Betesga”!

2012-04-04

Semana Santa 3

Ontem vimos como os discípulos colocaram os seus mantos sobre o jumento e nele entronizaram Jesus.
Estimulados pelos seus discípulos muitos dos Galileus que vinham com Jesus estenderam também as suas campas no caminho para Jesus entrar triunfalmente em Jerusalém. Eram muitos. Os evangelistas falam de uma “multidão”, de “multidões” ou mesmo de uma “grande multidão”. A palavra original “oklos (ὂχλος)” significa uma “multidão mais ou menos desorganizada”. Foram-se juntando e entusiasmaram-se com a atitude de Jesus e dos seus discípulos.
A multidão tem a sua psicologia muito própria. É de extremos. Facilmente passa de um a outro; basta uma pequena chispa e aí temos o “estoiro da boiada”. Contudo, esta multidão de galileus, que vivia num ambiente de opressão, fosse dos romanos, fosse dos proprietários fundiários, fosse das autoridades religiosas, tinha ainda mais aguda a convicção bíblica de que viria um Messias que os salvaria dos seus sofrimentos.
Claro que não percebiam que Jesus não vinha libertá-los pela força, nem liderar um movimento de revolta. Jesus queria “apenas” pregar o Reino de Deus e pedir a colaboração de todos para o instaurar. Neste momento, porém, Jesus deixou-os viver o seu momento de glória, a esperança de que iriam ser libertados.
Por isso eles, além das capas no chão, cortaram ramos de verdura que iam apanhando pelos campos por onde passaram. E cantavam e possivelmente bailavam. E aclamavam Jesus, segundo o Salmo 118. Marcos dispõe esta aclamação numa forma muito frequente e significativa da literatura bíblica (ou semita):
a) Hosanna
         b) Bendito seja o que vem em nome do Senhor
         b´) Bendito seja o reino do nosso pai David que está a chegar
a’) Hosanna nas alturas (Mc 11,9-10)

a) Hosanna
Originalmente seria uma prece de súplica: no sétimo dia da Festa dos Tabernáculos, os sacerdotes davam sete voltas ao altar repetindo a palavra Hosanna para pedir a chuva. Esta era a terceira das grandes festas herdadas não da fase nómada mas da sedentarização sob influência fenício-cananaica: a festa dos Ázimos, que marca o início da ceifa da cevada (Março-Abril); a festa da Ceifa, que regista o fim da ceifa algumas semanas mais tarde; a festa da Colheita, que assinala a apanha das uvas e das azeitonas. Mais tarde, estas festas adquiriram um sentido religioso: “Três vezes ao ano, farás uma festa em minha honra” (Ex 23,14). E as três festas tornaram-se a festa da Páscoa, celebrando a saída do Egipto, a das “semanas” ou Pentecostes e a das Tendas ou dos Tabernáculos, em memória da estadia no deserto. As tendas (sukkôt) eram as cabanas em que habitavam enquanto decorria a apanha das uvas e das oliveiras. Quando esta festa se transformou de uma festa de súplica numa festa de alegria, a palavra Hosanna ganhou nova ressonância, mas mantendo a súplica: “O Senhor salva-nos. O Senhor dá-nos a vitória” (Sl 118,25). É este o significado etimológico de Hosanna: “pedir, rezar (pelas chuvas, concretamente) e salvar”.
De qualquer maneira só o contexto pode indicar do que queremos ser salvos, pois pode entender-se no domínio político, social e religioso. É bem possível que os galileus que vinham com Jesus pedissem o fim da opressão e a libertação dos romanos.

b) Bendito o que vem em nome do Senhor
Inicialmente pertencia à liturgia de Israel destinada aos peregrinos e servia para lhes dar as boas vindas à entrada do Templo.
Aqui são os peregrinos que saúdam o que vem em nome do Senhor, Jesus, que entra na cidade santa para realizar a sua obra messiânica.
Assim de uma bênção para os peregrinos, a expressão transforma-se no louvor a Jesus, Àquele que vem em nome do Senhor.

b´)   Bendito o Reino do nosso Pai David que está a chegar
Esta segunda bênção apresenta já Jesus como o portador do reino de David. Só Marcos refere David, enquanto Lucas omite tanto o Hosana como a referência a David substituindo-as por uma alusão ao Natal: “Paz no Céu e glória nas alturas” (Lc 19, 38; Cf. 2,14).
Seja como for, Jesus aparece como o portador do Reino de David que aquela multidão esperava.

a’) Hosanna nas alturas
O primeiro Hosanna referia-se a esta terra. Este segundo eleva-nos para o plano divino. Isto não significa que devamos esquecer a salvação terrena, mas que ela deve estar ligada intimamente com a salvação e a plenitude de Deus (“alturas”): “Assim na terra como no céu” pedimos no Pai-Nosso.

Os habitantes de Jerusalém
Quem aclama Jesus são os peregrinos que vêm com ele. A cidade está indiferente. É como se estivesse deserta de sacerdotes e escribas e nem sequer os soldados incomodaram. Aliás ninguém temia um rei que vinha montado num simples burro, desarmado e acompanhado por camponeses incapazes de tácticas guerreiras.
Mas o relato de Mateus dá uma perspectiva interessante.
Depois da citação do Sl 118 semelhante à de Marcos, continua dizendo que “toda a cidade ficou perturbada e todos diziam: ‘Quem é este?’ – perguntavam. E a multidão respondia: ‘É Jesus, o profeta da Nazaré, da Galileia’” (Mt 21,10-11).
Estabelece, assim, um paralelismo com o episódio dos Reis magos. Também na altura, ninguém sabia nada de um suposto rei dos judeus que teria então nascido e também toda a Jerusalém ficou “perturbada” (Mt 2,3).
Portanto, daqui podemos concluir que as pessoas que aclamaram Jesus, à entrada da cidade, não serão as mesmas que daí a dias pedirão a sua crucifixão. Os Galileus, que vinham com Jesus, colocavam nele toda a sua esperança de salvação. Os habitantes de Jerusalém, temendo a perda do seu estatuto social e acirrados pelos sacerdotes queriam desfazer-se desse “revolucionário” o mais depressa possível.
A segunda referência de Mateus é às crianças que gritam “Hosanna ao Filho de David”. Esta atitude indigna os sacerdotes e doutores da lei que perguntam a Jesus se não os ouve e se acha bem: “Sim. (Mas) nunca lestes? Da boca dos pequeninos e das crianças de peito fizeste sair o louvor perfeito?” (Mt 21,15.17). Esta citação do Salmo 8,3 retoma um tema muito querido a Jesus: não só se identifica com as crianças (“Quem receber um destes meninos em meu nome é a Mim que recebe”: Mc 9,33-37), como faz delas o modelo para entrar no Reino dos céus (“Quem não receber o Reino de Deus como um pequenino não entrará nele”: Mc 10, 15).
Estes pequeninos irão evoluindo não só para dscípulos como para todos os que estão em necessidade e que se tornam o próprio Jesus (Mt 25, 40.45).

Hosanna na Liturgia
Acabo citando o documento mais antigo dos escritos cristãos não canónicos, sendo até anterior a alguns dos livros do NT, pois está datado entre os anos 50 e 100: a Didaké, cujo título completo é Ensinamentos (Didaké) do Senhor às nações pagãs por meio dos Doze Apóstolos. Nele aparece a palavra Hosanna. Trata-se de um esboço de manual de direito canónico e de catequese, dividido em 16 capítulos, o último dos quais sobre a última vinda de Cristo, que podem agrupar-se em torno de três temas:
- Doutrina dos dois caminhos (1-6), onde se faz um elenco dos mandamentos do Senhor que conduzem pelo caminho da vida e dos vícios e pecados que levam à morte; aqui aparece a mais antiga condenação do aborto.
- Instruções litúrgicas (7-15), onde recomenda a confissão dos pecados, a oração e o jejum e descreve os ritos e orações constantes da celebração:
- do baptismo, que parece ser normalmente por imersão na água dos rios (“em água viva” = águas correntes), embora se admita a infusão de água três vezes na cabeça;
- da eucaristia, com as orações eucarísticas e da qual ninguém se pode aproximar sem a reconciliação com todos os irmãos;
- da confissão dos pecados antes de qualquer tipo de oração: “na reunião dos fiéis, confessarás os teus pecados e não te acercarás da oração com má consciência”.
- Conselhos práticos e normas disciplinares, onde desenvolve uma moral individual, apresenta, como princípios da caridade e assistência social, a esmola e a partilha de bens, descreve os deveres para com a comunidade cristã, a família, a organização da comunidade, a eleição dos bispos, e regula a assistência aos peregrinos.
Na parte litúrgica associa duas palavras muito famosas: Hosanna e Maranathá:
“Venha a graça e passe este mundo. Hosanna ao Deus de David. O que é santo que se aproxime. O que não é, que se converta (metavoeítô: μετανοείτω). Maranathá. Amén” (X,6).