divórcio ou casamento eterno?...

2012-11-26

Salmo 29

Nem todas as notas que fui escrevendo se referem ao meu tempo de menino e moço, mas a propósito de cada tópico fui avançando e recuando.
Hoje quero voltar atrás e procurar descrever algumas consequências dessa minha reflexão da juventude. E apontaria duas, para já: a revalorização do Antigo Testamento (AT) e o aprofundamento da fé.
Para iniciar esta nota sobre o AT vou reproduzir o salmo 29:

1Filhos de Deus, aclamai o Senhor;
aclamai a glória e o poder do Senhor;
2aclamai a glória do nome do Senhor
prostrai-vos diante do Senhor com pompa sagrada.

3A voz do Senhor sobre as águas,
trovejou o Deus da glória,
o Senhor sobre a imensidade das águas;
4a voz do Senhor é poderosa,
a voz do Senhor é majestosa;
5a voz do Senhor despedaça os cedros,
o Senhor despedaça os cedros do Líbano;
6faz saltar o Líbano como um novilho
e o Sarion como uma cria de búfalo;
7a voz do Senhor lança chispas de fogo,
8a voz do Senhor faz tremer o deserto,
o Senhor faz tremer o deserto de Cades;
9a voz do Senhor retorce os carvalhos,
o Senhor desfolha as selvas.

No seu templo surge um grito unânime: “Glória!”
10O Senhor está sentado sobre as águas diluvianas
o Senhor está sentado como rei eterno.
11O Senhor dá força ao seu povo,
o Senhor abençoa o seu povo com a paz.

Quando me lembrava do Deus da minha primeira comunhão, o que ficava muito ofendido por “tocarmos com a hóstia nos dentes”, era este salmo que me parecia o mais adequado para o descrever. O Deus da minha meninice era o Deus do salmo 29 e, por extensão, o Deus do AT. Este salmo metia-me medo. Este medo era ainda mais sentido porque eu tinha muito medo das trovoadas. A partir dos 3 anos vivi junto de uma central eléctrica e da sub-estação respectiva e aí as trovoadas eram muito tenebrosas. As “máquinas” produtoras de electricidade ”embalavam” (aumentavam as suas rotações) aumentando o seu barulho já de si quase ensurdecedor. Na sub-estação, descargas eléctricas originavam labaredas nalguns aparelhos. Barulho a mais, estoiros, fogachos construíam um cenário dantesco para um miúdo de tenra idade. Recordo-me perfeitamente de, mal via aparecer umas nuvens negras (“de trovoada”), pegar no terço e desfiar rapidamente as Avé-marias em frente de um quadro encaixilhado de Nossa Senhora. E, enquanto rezava oração atrás de oração, ia espreitando para o reflexo das nuvens no vidro do quadro, esperando ansiosamente que a cor das nuvens mudasse. E, logo que ficassem claras ou se atenuasse o negro carregado da tempestade, parava a minha devota oração. Interesseiro!!!
Não admira, pois, que este salmo me fizesse uma impressão tão indelével que ainda hoje, ao lê-lo, recordo essa angústia da minha infância. Talvez a maior de todas. Maior ainda que aquela que senti, quando a minha mãe ao ver, numa noite, o meu corpo marcado me disse: “Tens sarampo!”. Fiquei muito aflito, porque ouvira dizer que o sarampo só se “apanhava uma vez”. E como eu já o tivera uma vez, a conclusão lógica era a de que ia morrer.

Mais tarde ao ler vários comentários a este Senhor, percebi rapidamente que não tinha jeito para exegeta. Afinal tratava-se de um hino de louvor a Javé, verdadeiro Deus cósmico que dominava, ou melhor, era capaz de desencadear os elementos da natureza sentado calmamente sobre as águas. Mas não foi esse “desaire intelectual (e não só)” que me retirou o gozo de saborear a Palavra de Deus, mesmo quando não a entendia bem, pois ela é sempre  palavra de vida eterna. Temos é de nos esforçar por lê-la com o coração. Claro que eu gostaria de ir mais longe. Mas para interpretar bem a Sagrada Escritura é preciso conhecer os textos e os contextos. Para quem não os conhece bem, vale sempre aquela palavra de Jesus: “Eu te bendigo, ó Pai, senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos entendidos e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11,25). Mas, mais uma vez, tenho de me socorrer dos peritos. E eles ajudaram-me: sábios e entendidos refere-se aos doutores da lei, que pensavam que nada tinham a aprender de uma pessoa humilde como Jesus. A sua pretensão de ser sábios fechava-lhes os olhos, os ouvidos e a inteligência à presença de Deus em Jesus de Nazaré. Ao fazer esta afirmação, Jesus punha em causa e desafiava a autoridade social e religiosa dos peritos na Lei e, mais uma vez, propõe um ensinamento que contradiz as ideias correntes no judaísmo de que são precisamente os sábios e os inteligentes que recebem a revelação. Aos referir-se aos pequeninos não quer apresentar a ignorância como uma virtude querida por Deus mas mostrar a indispensabilidade de sermos como crianças: abertas, sinceras e confiantes.

Para muitos, este salmo 29 terá sido inspirado, ou melhor, adaptado de “um antigo hino cananeu em honra de Baal”, deus da tempestade, que foi radicalmente reinterpretado para se tornar num hino a Javé. Realmente a palavra "Javé" aparece 18 vezes (7 na expressão “a voz de Javé”), havendo, no final, uma identificação com o Deus de Israel, “o seu povo”. Pode ter aparecido como resposta a uma pergunta habitual na época: “Qual é o deus verdadeiro: o nosso ou o dos pagãos?”.
Daqui também se deve retirar uma lição histórica: o judaísmo e mais tarde o cristianismo, nos primeiros séculos, sempre souberam “traduzir” a Palavra de Deus na linguagem de cada época, recuperando episódios ou festas “pagãs”. Mas nos últimos séculos, os hierarcas adaptaram uma posição defensiva, indo muitas vezes a reboque da história e das mudanças da sociedade, perdendo muita da sua capacidade e sabedoria para influenciar o desenrolar dos acontecimentos. Uma das grandes dificuldades da Igreja hoje é a de traduzir em linguagem do nosso tempo as verdades e a Pessoa de Jesus Cristo de modo a que os homens e mulheres de hoje as entendam. Há que rever a linguagem não só do ponto de vista formal (a maneira simples e clara de se expressar), mas também de conteúdo: traduzir em palavras e conceitos de hoje os velhos dogmas e as velhas normativas já tão desajustadas no nosso tempo. Era bom regressar à simplicidade de expressão de Jesus, que “seduzia” as pessoas, que ficavam maravilhadas com o que Ele dizia e como o diz, apesar da radicalidade das suas propostas que obrigavam os ouvintes a fazer opções. Por isso, alguns o abandonaram porque tinha “palavras duras” (Jo 6,60); o jovem foi embora triste porque era muito rico e Jesus lhe mandara vender tudo e dá-lo aos pobres (Mt 16,22). Devido a esta dificuldade de comunicação corre-se o risco de afastar os cristãos de base do Magistério, deixando-o muitas vezes sem feed-back daqueles que vivem e conhecem os problemas reais de cada época e acabando por originar uma Igreja a duas velocidades. Assim, correm um outro risco: o de ficarem presos no Monte Tabor. “Nascia a sociedade burguesa e os homens da Igreja, separados do povo, defendiam as sociedades aristocráticas. Nasciam as sociedades nacionais e democráticas e os homens da Igreja, separados do povo, defendiam os monarcas e o concerto europeu saído do congresso de Viena. Nascia a sociedade industrial e os homens da Igreja, separados do povo, elogiavam e defendiam a sociedade agrícola. Nascia a sociedade científica e os homens da Igreja, separados do povo, só viam os riscos das ciências para a fé e a vida cristã. Tenta nascer a sociedade em que a mulher seja verdadeiramente igual ao homem e os homens da Igreja, separados do povo, parecem cortejar ainda uma cidade em que o primeiro posto corresponda ao homem varão. Tudo isto, porque separados do povo, fechados numa atmosfera sacral ou burocraticamente mundana apesar das aparências espirituais e vítimas de um eficientismo eclesiástico, que não é por ser tecnologicamente moderno que está mais próximo do Evangelho, carecemos dos meios de compreensão e discernimento, de simpatia real para compreender, isto é, para discernir e depois interpretar os acontecimentos” (G. Gennari).

O poema avança rapidamente com mudanças abruptas de cenário. Um dos comentários que li avança uma observação curiosa. É como se o autor conhecesse “a mecânica vibratória do som”. Trata-se de um fenómeno chamado “ressonância” que tem aplicação em várias áreas do saber. A ressonância é um processo que autoamplia as vibrações ou oscilações de um objecto induzidas pelas vibrações de outro. Quando se encontram, as vibrações como que actuam em uníssono adquirindo amplitudes cada vez maiores. Talvez um exemplo torne isto mais claro. Uma companhia de soldados não pode marchar sobre um ponte, porque a cadência sempre exacta das sapatadas no tabuleiro da ponte pode assemelhar-se à cadência das vibrações naturais de ponte, que começa a oscilar cada vez mais até que pode ruir. Há quem diga que tal fenómeno aconteceu com um regimento de Napoleão e a partir daí os soldados deixam de marchar alinhados nas pontes. Mas o que não é lenda foi o que aconteceu, em 7.Nov.1940, com a ponte sobre o estreito de Tacoma, em S. Francisco. Aqui a causa foi o vento. A partir de uma certa vibração, o vento entrou em ressonância com a ponte e esta caiu. Pode ver imagens no youtube. Sons musicais, quer de órgãos, por exemplo, ou até de alguns cantores, podem partir os vidros da sala de concertos se estes não estiverem preparados para evitar o fenómeno.
Mas o autor do salmo 29 não podia estar a aplicar um princípio da física que desconhecia. Contudo o comportamento do Líbano assemelha-se de alguma maneira a este fenómeno: as vibrações da “voz de Javé” eram tais que o Líbano, entrando em ressonância, “saltou como um novilho”. Claro que isto é uma brincadeira. O autor sagrado não conhecia tal fenómeno, nem faz parte da pedagogia de Deus antecipar explicações científicas, deixando que o ser humano vá progredindo ao seu ritmo: “por causa da dureza dos vossos corações” (Mt 19,8) … e das vossas inteligências. Eu é que achei muita piada a esta observação, por causa da minha velhinha licenciatura em físico-químicas. Espero que esteja perdoado por este anacronismo! De qualquer modo, deixo-lhes mais um exemplo: "E tremiam os gonzos das portas (do Templo) ao clamor da sua voz (dos anjos Serafins)” (Is 6,4)!!!

É unanimemente reconhecido que este Salmo é um poema muito bem construída mas que impressiona e mete medo. Aliás o próprio autor deve ter tido consciência disso, pois antecedeu a descrição da tempestade de um “invitatório” (apelo inicial de uma oração ou salmo que convida as pessoas a abrirem-se à palavra de Deus) onde utiliza quatro vezes o imperativo para incentivar os “filhos de Deus” a louvar o Senhor. E a parte final (vv. 10-11) responde a este Invitatório (vv. 1 -2) segundo o velho refrão: “depois da tempestade vem a bonança”, a calma, a paz. A paz é sugerida pela posição de Javé – sentado sobre as águas, como um caçador sobre a fera que abateu – e pelo controlo e pela vitória sobre os elementos naturais. Na última frase (11b), Javé abençoa o seu povo com a paz. 
Neste sentido, o salmo é uma magnífica ilustração do cântico dos anjos, sobre a gruta de Belém: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos que gozam do seu amor” (Lc 2,14).

Mas não foi esta interpretação do salmo 29 que reabilitou o AT aos meus olhos. Antes destes comentários todos, encontrei muito perto o “culpado” desta reabilitação: o salmo 23.

2012-11-23

Um exemplo bíblico

Gostaria de voltar às “confusões” que me foram muito importantes, como já disse, para o meu crescimento interior, para a minha aproximação de Deus.
Veja-se a descrição da Aliança de Deus com Abraão. Há dois relatos da mesma Aliança. Um da tradição javista (Gn 15); outra da tradição sacerdotal (Gn 17). O escrito javista (J) é a primeira fixação em escrita de uma longa tradição oral e apareceu entre 850 e 750 aC. Chama-se Javista porque habitualmente utiliza o termo Javé para designar Deus. O escrito sacerdotal (P, do alemão Priesterkodex, código sacerdotal), que apareceu depois do Exílio, é uma compilação iniciada por um grupo de sacerdotes e ultimada com a reforma de Esdras (450 aC).

Primeira narração (Gn 15,1-20):
1Depois destes acontecimentos, Abrão recebeu, em visão, a palavra do Senhor que lhe disse:
- Não temas Abrão: eu sou o teu escudo e a tua recompensa será abundante.
2Abrão respondeu:
- Senhor, de que me servem os teus dons se sou estéril e Eliezer de Damasco será o amo da minha casa?
3E acrescentou:
- Não me destes filhos e um criado de minha casa será o meu herdeiro.
4Mas Deus disse-lhe o seguinte:
- Não será esse o teu herdeiro; um saído das tuas entranhas te herdará.
5E Deus, levando-o para fora, disse-lhe:
- Olha o céu; conta as estrelas se puderes.
E acrescentou:
- Assim será a tua descendência.
6Abrão creu em Deus e Deus lho imputou como justiça.
7Deus disse-lhe:
- Eu sou o Senhor que te tirou da terra de Ur dos Caldeus para te dar esta terra em posse.
8Mas Abrão retrucou:
- Senhor, como saberei que vou possuí-la?
9Respondeu o Senhor:
- Traz-me uma novilha de três anos, uma cabra de três anos, um carneiro de três anos, uma rola e um pombinho.
10Abrão trouxe-os e partiu-os ao meio colocando uma metade frente da outra, mas não partiu a rola nem o pombinho. Os abutres desceram sobre os cadáveres e Abrão enxotava-os…
17O Sol pôs-se e ficou escuro; uma labareda fumegante e um archote ardente passaram por entre os membros cortados.
18Naquele dia, o Senhor fez aliança com Abrão, nestes termos:
- Aos teus descendentes darei esta terra, desde o rio do Egipto até ao Grande Rio, o Eufrates…
Antes de passar à segunda narração, um pequeno comentário este Deus que deve ter parecido paradoxal (como as minhas “confusões”!) a Abraão, pois queria que ele aceitasse: um casal estéril a ter filhos; a ele que abandonara tudo em Ur e desprezara o ouro de Sodoma, era-lhe assegurada uma terra. Mas quando? Quando Deus o decidir: o momento é de Deus não é do homem. A fé exige muito e, às vezes, até o absurdo. Não admira, pois que S. Paulo apresente Abraão como modelo do crente: “Abraão, esperando contra toda a esperança, acreditou que haveria de se tornar pai de muitas nações” (Rom 4,18).

Segunda narração (Gn 17,1-14):
1Quando Abrão tinha noventa e nove anos, apareceu-lhe o Senhor e lhe disse:
- Eu sou o Deus Todo-poderoso; anda na minha presença e sê perfeito. 2Farei uma aliança contigo: farei que te multipliques sem medida.
3Abrão caiu de rosto em terra e deus falou-lhe assim:
- 4Eis a minha: tornar-te-ei pai de uma multidão de povos. 5De agora em diante, não te chamarás Abrão, mas Abraão, porque te faço pai de uma multidão de povos. 6Far-te-ei fecundo sem medida, saindo de ti povos e reis nascerão de ti. 7Manterei o meu pacto contigo e com a tua descendência em futuras gerações, como uma aliança perpétua. Serei o teu Deus e dos teus descendentes depois de ti… 10Eis aminha aliança convosco e que deveis guardar: circuncidai todos os varões de entre vós.

Comparando as duas versões vemos como são muito diferentes.
Na primeira, temos um Deus mais próximo, mais “humano”: entra em diálogo com Abraão; “permite” até que Abraão o interpele, que duvide do que lhe está a ser prometido (v.2: “de que servem os teus dons se sou estéril?”; v. 8: Como saberei?). Pode perguntar-se se Abraão, com estas dúvidas todas, pode ser modelo do crente. Mas quem disse que a fé é incompatível com as dúvidas. Poderá haver fé sem dúvidas? A isso voltarei.
Na segunda temos um Deus, que se apresenta como o “Todo-poderoso”, que não dialoga, que é normativo (vários imperativos). É um Deus distante, perante o qual Abraão não só não fala, como cai por terra, numa espécie de teofania, menos grandiosa que a do Sinai, mas de qualquer maneira uma manifestação na qual Abraão tem de esconder a cara: “caiu de rosto no chão”. Uma atitude que vai aparecer em Moisés que não pode ver para lá da sarça ardente (“Não te aproximes”), porque é terreno sagrado (tem de descalçar os sapatos) e porque ninguém pode ver Deus directamente: “Moisés cobriu o rosto, temendo olhar para Deus” (Ex 3,5.6).
Também na primeira narração há uma referência que aponta para uma teofania (1 versículo em 20: o fogo que passa pelos animais sacrificados). De qualquer modo o que predomina é o diálogo eu-tu. Por curiosidade acrescentaria que sendo “deuteronómica” a segunda versão teria de apresentar umarito: a circuncisão.

Deus é pois simultaneamente o Pai que me ama, que fala comigo, me trata por tu e que sabe o meu nome, mas também o Grande Mistério que eu nunca posso conhecer na totalidade. Por isso, disse que estas minhas “confusões” ajudam-me continuamente a ir purificando o Deus em quem acredito.
Vou terminar, dando a palavra do místico do século XVII (1624-1676), Angelus Silesius (da Silésia). Um dos seus pensamentos, que é um hino à gratuitidade, influenciou certamente muita gente, mas especialmente o escritor J. Luís Borges, como ele próprio confessou: “A rosa é sem porquê / Floresce porque floresce / Não olha para si mesma / Não pergunta se a olham / E sorri para o Universo / A rosa é sem porquê”.
Pois Angelus Silesius fala assim de Deus:
“O que é Deus não sabemos. Ele não é nem luz, nem espírito, nem verdade, nem unidade, nem o que chamamos divindade, nem sabedoria, nem razão, nem amor, nem bondade, nem coisa, nem inexistência tão-pouco, nem essência ou afecto. Ele é o que nem eu, nem tu, nem criatura alguma jamais experimentam senão tornando-se o que Ele é” (1).

(1) Recolhi esta citação sobre Deus no excelente livro de Tolentino Mendonça, O Pai-nosso que estais na Terra (Paulinas; 2011). Além da sua qualidade é também uma grande fonte de citações.

2012-11-20

Deus

Estas minhas “confusões” que referi (à falta de melhor termo) foram (e são) importantes para ir crescendo na fé. O itinerário para e com Deus é um caminho que se vai fazendo caminhando. Nele encontrei de tudo: rectas abertas que me extasiaram, ambientes repousantes que me deram a paz e o sossego, curvas que me entonteceram e às vezes desesperaram. Mas tudo isto vai purificando o meu conceito de Deus, como amigo íntimo ou como o Grande Mistério. É um caminho sempre novo. E único pois cada um faz a sua caminhada única e irrepetível na busca desse Deus que me/nos busca. Ao mesmo tempo que eu ia aprofundando os meus conhecimentos (da inteligência e do coração) sobre Jesus e ia enriquecendo a minha relação eu-Tu com Jesus e com o Pai de Jesus, era-me apresentado um (o) Deus transcendente, tão transcendente que não o podíamos descrever, imaginar, entender em toda a sua dimensão infinita. O Indizível. “Deus é inacessível. Não repares, portanto, no que as tuas faculdades podem compreender nem os teus sentidos experimentar, para que não te satisfaças com menos e assim perderes a presteza necessária para chegares a Ele” (S. João da Cruz) Havia aqui uma outra “confusão” para o meu espírito. Esta situação decorria também das primeiras palavras do Pai-nosso. “Pai Nosso que estás nos céus”. Estar nos céus é qualquer coisa de longínquo, de afastado, lá no alto. Até porque, na altura (e também agora para alguns) no imaginário dos cristãos, havia uma espécie de tríptico vertical: o(s) céu(s), em cima; a terra, no meio; o(s) inferno(s), no fundo. O Símbolo dos Apóstolos ainda tem reminiscências disto: “foi crucificado, morto e sepultado; desceu à mansão dos mortos (descendit ad inferos); ressuscitou ao terceiro dia; subiu aos céus, está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso”. Esta imagem também não ajudava muito, pois não nos era explicado, por exemplo, o que significava “sentado” ou “à direita do Pai”. E assim era a minha catequese, ou antes, o que eu ia “percebendo”. Por isso, estas orações tornavam-se uma repetição corrosiva. Esta imagem transcendente de Deus e de Jesus ocupava muito espaço na catequese e na formação. Era quase um monofisismo que esquecia que Jesus, além de Deus, era homem de carne e osso. Então apareceu a tradução portuguesa de um livro de Nikos Kazantazkis, “A Última Tentação”. Embora podendo cair no outro monofisismo (apenas o lado humano), foi um livro que me apaixonou mais por Jesus de Nazaré. Eu precisava também de um Deus humano, que estivesse mais próximo de nós, que não fosse apenas Transcendente. É evidente que o Deus é o mesmo, mas esse mistério da Santíssima Trindade não era (é) muito fácil de entender. Por alguma razão é um mistério. Eu acho que estas “confusões” foram-me ajudando a perceber melhor quão longe eu estava de Deus e como precisava de me aproximar dele cada vez mais. Percebi que estas coisas não eram lineares, que não podia submeter Deus, que não podia pô-lo ao meu serviço, que não o podia normalizá-lo como normalizamos tudo. O que é importante é que eu tenha espaço para Deus, para ouvir o que Ele me diz, para Ele poder estar comigo, para Ele ser Ele e não uma criação minha. Querer aprisionar Deus é um dos grandes perigos de todos os tempos, de todas as hierarquias e de todos os crentes. Voltando às minhas “confusões, aquelas palavras de S. João da Cruz (Monte de Perfección) são significativas pois também elas jogam com “confusões”: “Para chegares a saborear tudo, / Não queiras ter gosto por nada. // Para chegar a conhecer tudo, / Não queiras saber de coisa nenhuma. // Para chegar a possuir tudo, / Não queiras possuir coisa nenhuma. // Para chegares a seres tudo, / Não queiras ser nada. // Para chegares ao que queres, / Hás-de ir por onde não queres. // Para chegares ao que não sabes, / Hás-de ir por onde sabes. // Para chegares ao que não possuis, / Hás-de ir por onde possuis. // Para chegares ao que não és, / Hás-de ir por onde és.” Termino com o belíssimo hino de S. Paulo: “Quem poderá separar-nos do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, os perigos, a espada? (…) Porque estou certo que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem as potestades, nem a altura nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, presente em Cristo Jesus Nosso Senhor” (Rom 8, 35.38-39).

2012-11-16

Confusões

Como disse, Jesus ensinou-me quem era o Pai, sobretudo com a parábola do Filho pródigo. Mas na minha oração, eu, com relativa frequência, confundia Jesus e o Pai. Nas palavras ou nos silêncios a confusão aparecia. Só de passagem, acho que só comecei a rezar realmente, quando estabeleci ou aceitei esta relação eu-tu, com Jesus ou com Deus.
Afinal o próprio Jesus já deixara clara essa “confusão”: “Disse-lhe Filipe: «Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta!» Jesus disse-lhe: «Há tanto tempo que estou convosco e não me ficaste a conhecer, Filipe? Quem me vê, vê o Pai. Como é que me dizes então ‘mostra-nos o Pai’? Não crês que Eu estou no Pai e o Pai está em Mim? As coisas que Eu vos digo não as manifesto por Mim mesmo: é o Pai que, estando em Mim, realiza as suas obras. Crede-me: Eu estou no Pai e o Pai está em Mim»” (Jo 14,8-11). Jesus está tão intimamente ligado ao Pai que quem vê um vê o outro. É essa intimidade que o leva a dizer “Abbá”.
E nos permite que também nós tratemos Deus por “Abbá”, Pai, paizinho, ao ensinar-nos o “Pai-nosso”. De qualquer maneira não tenho ideia de inicialmente ter percebido que aquele “nosso” do Pai-nosso não era um adjectivo majestático mas uma real extensão a todos da sua qualidade de filhos de Deus. Foi noutro contexto que eu interiorizei essa ideia. Talvez porque o Pai-nosso era uma oração tão repetida que eu a dizia sem pensar. Este era um dos perigos da catequese do “meu tempo”: decorar fórmulas de que não sabíamos o significado; memorizar a letra da doutrina sem descer ao espírito, repetir e “saber de cor a doutrina”. Ainda me lembro de ficar perplexo por Deus “ser encarnado” e não de outra cor qualquer. Parece anedótico, mas não é. Durante algum tempo também me era difícil de entender porque seria Nossa Senhora bendita “em três (entre) mulheres”. Por que apenas entre três mulheres e que mulheres? Felizmente que estes casos concretos rapidamente se esclareceram. Mas estes são exemplos ridículos de muitos outros não tão ridículos que me/nos foram ficando da catequese da minha infância. Muita ganga foi preciso tirar para chegar ao miolo, ao essencial. Como poderia viver-se um cristianismo a sério nesses tempos?!
Mais tarde, encontrei passagens nas quais S. Paulo explicava esta “extensão” do Pai a todos nós. Na carta aos romanos: “Todos os que são movidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Na verdade, vós não recebestes um espírito de escravos para cair de novo no temor; recebeste, pelo contrário, um espírito de filhos adoptivos, pelo qual chamamos «Abbá, Pai». O próprio Espírito atesta, em união com o nosso espírito, que somos filhos de Deus e, se somos filhos, somos também herdeiros. Herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo, pois sofremos com Ele para também com Ele sermos glorificados” (Rom 8,14-17). Na carta aos gálatas: “Mas, ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher, submetido à Lei para remir os que estavam sob a Lei a fim de que recebêssemos a adopção filial. E, porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama «Abbá, Pai», de modo que já não és escravo, mas filho; e, se és filho, também és herdeiros, pela graça de Deus” (Gal 4,4-7).
Uma outra ideia que nestas passagens me chamou a atenção foi a da passar de servos/escravos (no grego, doulos) que têm medo a filhos que têm amor. Aos filhos dá-se mais que aos servos: “Pois Deus não nos deu um espírito de timidez (ou melhor, cobardia: deilía), mas de fortaleza, amor e domínio próprio. Portanto não te envergonhes de dar testemunho de nosso Senhor” (2Tim 1,7-8a).
E chamou-me a atenção porque eu utilizava muitas a palavra de Lucas: “Somos servos (escravos, mas não se pode seguir sempre uma tradução literal!) inúteis, que fizemos o que tínhamos de fazer” (Lc 17,10). Não gostei, a princípio, daquele “inúteis”, mas acabei por assumir a situação como disponibilidade para cumprir a vontade de Deus. Mas havia aqui coisas que não percebia. E fiquei a saber que ler a Bíblia poderia tornar-se um exercício complicado. Mas nem por isso deixava de ser a Palavra de Deus, que me animava, me dava forças e segurança.
Alguns anos depois de ter saído do Seminário, voltei lá para ir fazendo algumas cadeiras. E escolhi começar pelas que tratavam das várias secções da Bíblia. Claro que não fiquei a saber muito mais, até porque não as fiz todas pois entretanto surgiram afazeres familiares que me impediram de continuar. Mas ajudou-me um pouquinho.

2012-11-14

Confiança na Providência

O Sermão da Montanha era um manancial de “dados” que inundavam a minha alma. O primeiro texto, que me absorveu a atenção, foi o “Não vos preocupeis com o dia de amanhã” (Mt 6,25-34). Aliás é um texto que hoje ainda leio muitas vezes. Portanto as considerações que se seguem já são uma mistura de muitos anos de reflexão.
Eu vivia numa situação de alguma carência afectiva, o que me abria a necessidade de ter alguém em quem pudesse confiar plenamente. Este texto vinha mesmo a propósito para a minha situação.
Em tão poucos versículos aparece quatro vezes o verbo “preocupar” (vv. 25, 27, 28, 31). Há aqui uma insistência no isentar a nossa vida da preocupação ou até da angústia de um presente não muito agradável a anunciar um futuro pouco risonho. Jesus quer que os seus seguidores superem não só a preocupação excessiva pelo dia de amanhã, que pode limitar ou impossibilitar a nossa busca de Deus, mas até as angústias e preocupações da vida do dia a dia. Daí a sua insistência em que confiemos absolutamente em Deus, ponhamos nele a nossa confiança, desvalorizemos as nossas preocupações, porque Ele é Pai e sabe bem do que temos necessidade. Mais: esta confiança em Deus é uma característica essencial do discípulo de Jesus, porque são “os pagãos, esses sim, que se afadigam com tais coisas”. Amar a Deus, amar a Jesus implica esta confiança incondicional. E eu comecei a sentir-me mais protegida, a perceber que não tinha que me preocupar angustiadamente nem com o presente nem com o futuro. Que Deus é Providência.
A assunção de Deus como Providência foi um processo rápido. Passei a não me preocupar muito com o que havia de vir. Fazia o meu trabalho, mas não andava angustiado. Não sabia bem como é que Deus ia resolver os meus problemas, mas tinha a certeza de que não haveria dificuldades. E isto dava muita calma. E até percebia que não podia nem tinha que viver com a despreocupação dos lírios do campo ou das aves do céu. Aliás Jesus recorda que na vida há que trabalhar, planear a vida. Aí está a crítica as virgens loucas pela sua falta de previsão (Mt 25,1-13). Louva o servo bom e previdente que cumpre as tarefas que lhe estão confiadas (Mt 24,25-51) bem como os servos que puseram a render os seus talentos (Mt 25, 14-30). E até louva o mordomo desonesto, não por ele ser desonesto mas porque teve criatividade e esperteza (“os filhos das trevas são mais sagazes que os filhos da luz no trato com os seus semelhantes”) para acautelar o seu futuro (Lc 16,1-9), um parábola que me inquietava bastante.
Mas voltando à Providência. Devemos organizar a nossa vida, planear o nosso futuro, mas sem nunca perder de vista e de lhe subordinar o mais importante, o que é essencial: a confiança em Deus. Eu confiava cegamente, embora não soubesse como Deus me ajudaria. Mas aquela força cega na Providência ajudava muito. Mas depressa percebi que essa fé cega não me dispensava de viver a vida a sério, se ser agente da história, digo eu hoje.
Um primeiro aviso como ir vivendo este “providencialismo” aconteceu num dada altura, quando encontrei um empregado do Seminário com um enorme abcesso num dente. Aquilo devia doer. E por isso perguntei-lhe: “Então já foi ao médico?”. “Não – respondeu ele – se Deus me mandou esta dor é porque quer que a sofra!”. Fiquei feito parvo a olhar para ele, mas percebi uma coisa: aceitar Deus como Providência não significa, não podia significar ficar debaixo da banheira à espera que a banana caia. Eu tinha de responder aos desafios da vida. Eu tinha de ser activo. Não podia estar à espera de Deus para me resolver os problemas do dia a dia. Então como viver esta providência? A resposta que me foi surgindo é que Deus (também) nos fala pelos acontecimentos e pelas pessoas. É lendo esses sinais – na altura não sabia que se tratava dos “sinais dos tempos” – que eu tenho de ir vivendo. Deus vai-me apontando o caminho, mas não me tira necessariamente as pedras do caminho. Tenho de ser eu a contorná-las ou a superá-las. Assim fui ajustando a minha vida à confiança em Deus. E todas as decisões importantes da minha vida resultaram dessa leitura dos sinais dos tempos. Não sei se sempre decidi bem ou não, mas decidi convencido que era essa a indicação de Deus.
Naturalmente que aqui se coloca o problema. Os acontecimentos podem ser lidos historicamente, mas também teologicamente. A minha atitude era de fazer uma leitura teológica, sem tirar a minha vida do contexto (leitura histórica). E assim fui vivendo e dei-me muito bem com essa maneira de lidar com o problema. Como já disse, foi assim que tomei as grandes decisões da minha vida. E, olhando para trás, sinto que procedi bem.
Mas, e como anedota final, vou recordar um caso, como exemplo de outros que me aconteceram. Creio que nunca contei esta história aos meus amigos. Mas vou partilhá-la neste contexto. Agi, não pela leitura dos acontecimentos, mas por um impulso tão estranho, que me pareceu indicado por Alguém. Eu vinha de visitar um amigo dos arredores, quando, sem saber como, me desviei da estrada normal e fui por outra que nunca utilizara. De repente alguém à beira da estrada me pedia boleia, coisa que habitualmente não dava. Mas senti um impulso para parar e dar boleia. O senhor começou com um paleio de banha da cobra: que precisava de dinheiro, etc. e tal. Uma história claríssima de um burlão. A dada altura, deixei de o ouvir para me concentrar. Aconteceram várias coisas estranhas que me levaram a encontrar aquela pessoa. Não será um sinal de Deus de que devo ajudá-lo? E acabei por lhe dar dinheiro! Fiz bem, fiz mal? Não sei. Acho que respondi a um apelo esquisito. Mas, já estou a imaginar que me acham maluco!

2012-11-12

Caminhos de Deus, caminhos para Deus


O primeiro encontro que Deus teve comigo foi na primeira comunhão. Certamente antes a minha mãe, a minha catequista, certamente me falou de Deus, mas não me lembro. Foi naquele momento solene que a minha memória recorda como o primeiro encontro. E foi muito negativo. Lembro-me perfeitamente de uma rapariguinha da minha idade que estava ao pé de mim ter começado a chorar compulsivamente ao comungar. Porque tinha “tocado com a hóstia nos dentes”. Este era um dos ensinamentos solenes que nos era ministrado. Eu possivelmente nunca tinha tomado consciência da imensidão desse pecado: “tocar com a hóstia nos dentes”. E recordo-me de ter ficado perplexo perante este Deus que fazia chorar a minha companheira. Aquela ideia de um Deus castigador por coisas tão insignificantes começou a perturbar-me. Fiquei com medo desse Deus.
Depois nos tempos seguintes não tenho nenhuma memória especial. Continuava a rezar – em minha casa rezava-se o rosário todos os dias – a ir à missa, a comungar, a cumprir as Primeiras Sextas-feiras e os Primeiros Sábados. Não sei bem como ligava estas coisas todas com Deus.
Mais tarde, adolescente, no Seminário, o problema voltou e voltou ainda com essa imagem da menina a chorar. Comecei a interrogar-me sobre Deus, a procurar Deus. Sentia o coração perturbado, a dar voltas. Uma ou outra pessoa começou a falar de Deus Amor, mas eram mais os dedos inquisitoriais a falar de castigo, de condenações ao inferno. Esta pastoral do medo ainda mais me empurrava para mais depressa descobrir quem era Deus, pois eu não conseguia entender um Deus tão mau que nos mandava quase todos para o inferno. Havia qualquer coisa que não batia certo. Foi pois um grande alívio quando, cansado desta luta interna, a partir de dada altura descobri Jesus Cristo ou Ele me descobriu a mim. E essa foi a descoberta mais importante da minha vida, a que me marcou indelevelmente para sempre. Descobri rapidamente que essa de “bater com a hóstia nos dentes” era mais uma de muitas normas, cangas, que uns senhores de Roma atiravam sobre nós, mais preocupados com acessórios ridículos do que com o essencial. Então comecei a meditar mais profundamente o Evangelho, a Boa Nova de Jesus Cristo. Eu que me considerava um pecador quase condenado – porque não obedecia aos meus superiores, porque tinha maus pensamentos e más acções, porque não rezava as três Avé Marias ao deitar – encontrava na parábola do Filho Pródigo, naquele Pai que esperou todos os dias pelo filho pecador e depois fez uma festa de arromba pelo seu regresso – porque estava perdido e encontrou-se – uma calma interior tão grande que os meus pecados pareciam insignificâncias. E aquele Pai era o “meu” Deus, o Deus que eu procurava, o Deus que me enchia a alma. Era um Pai que amava infinitamente os seus filhos pecadores. Amava-os, percebi mais tarde, não porque eram bons, mas porque Ele, Deus, é a Bondade e Amor infinitos. Talvez na altura tivesse começado a viver não só de uma espiritualidade exterior, feita de ritos e orações memorizadas e cadenciadas, mas de uma outra espiritualidade mais interior que me permitiu descobrir que Deus é Pai, é meu Pai (a ideia é de Tolentino Mendonça).
Mas acho que ainda não percebera que Deus é nosso Pai, é “Pai Nosso”. Esta ideia surgiu mais tarde, quando me apaixonei pelo Sermão da Montanha e procurava lá as regras de vida, as orientações para melhor seguir o meu grande Amigo, Jesus Cristo.
Mas vou deixar esta história para a próximo post.

2012-11-10

ILETRADO DA VIDA


Bom dia!

Já não venho aqui há bastante tempo. Coisas de saúde ou… de falta dela. E de algumas sequelas dessa falta. Em fins de maio fiz uma operação da qual ainda não me recompus.
Entretanto, entre altos e baixos, fui pensando, o que às vezes não tem sido fácil. Vou partilhar, ao sabor da espuma dos dias, algumas dessas reflexões.
Tenho pensado na minha vida, nas sete décadas da vida que tive e que tenho. E pouco a pouco fui-me dando conta de que sou um iletrado da vida. Isto é, não se trata de não saber ler ou escrever, trata-se de não saber como viver o dia a dia sobretudo quando as dificuldades surgem e se demoram a martirizar-nos. Esta minha dificuldade prende-se certamente com uma vida “boa” que tive: nunca passei fome, passei alguns anos sem grande carinho (quando saí de casa para estudar), tive uma ou outra doença mais ou menos banais, mas nunca fui submetido a duras penas que, penso eu, teriam ajudado a temperar a minha resistência às inevitáveis dificuldades da vida. E agora perante uma situação desconfortável, de limitações físicas, que me incapacitam de me deslocar, sinto essa dificuldade saltar-me para a vontade de fazer coisas, de me entusiasmar com o que antes me motivava, e até para a vontade de pensar ou de escrever. Certamente isto terá também a ver com a velhice que vai surgindo lentamente, mas que também poderá ser desencadeada por algum factor como uma doença mais grave. Não sei. É nesta fase do pensar-me que me encontro.
A primeira leitura da liturgia de hoje, tirada de uma carta de S. Paulo, dá uma achega ao meu debate interno: "No meu caso, aprendi a ser autónomo nas situações em que me encontre. Sei passar por privações, sei viver na abundância. Em toda e qualquer situação, estou preparado para me saciar e passar fome, para viver na abundância e sofrer carências” (Fil. 4,12). Este aprender a bastar-se a si próprio não se resume a um mero exercício físico (e até nisso fui falhando sobretudo a partir de uma dada altura porque tinha quem me “tratasse da vida”), vai muito para lá disso: é uma disposição subjectiva em virtude da qual a pessoa sabe viver sabiamente (passe a tautologia) com a sua sorte, sabe ser “manso” no sentido evangélico (cf Mt 5,5; 11,29), sabe dar a volta às situações de modo a tirar delas o melhor proveito e não se deixar abater por essas contrariedades. Eu pensava que estava preparado para isso. E agora verifico que não, que não sei viver “na pobreza e na abundância”. Verifico que me falta essa “autarkía”, essa auto-suficência, virtude tão do agrado dos filósofos estóicos. Eu gostaria agora de tê-la aprendido não no sentido da auto-suficência absoluta, tipo “o sábio é o que se comporta como um relógio nas tempestades: continua a marcar os minutos com regularidade”. Mas antes, e volto a citar S. Paulo: “De tudo sou capaz naquele que me dá força” (Fil 4,13).
E esta justificação de Paulo atira-me para outra dimensão e para outra reflexão. Afinal o que significa Deus para mim? O que faço da “força que ele me dá”? Quem é Deus sobretudo no silêncio da noite ou na passagem por algum deserto ou na beleza de um espectacular pôr de sol? Onde está Ele nos momentos mais difíceis? Mas tem que estar? E como? O que significa a palavra do próprio Jesus, também em dificuldades: “Meu Deus, meu Deus por que me abandonaste?” (Mt 27,46). Mas terá mesmo abandonado? Certamente que me abandonou se eu espero que Ele me cure, altere as leis naturais da evolução natural do meu corpo.
Então como me acompanha Ele? E aqui surge o problema da fé. Como acredito? O que exijo de Deus? Quem é Deus para mim? Não estou a fabricá-lo à minha medida? Mas a fé não é fazer de Deus meu criado. A fé é crer no Grande Mistério, que nos acompanha sempre, sem sabermos bem como. É a medida da nossa fé que nos permite superar estas perguntas interesseiras, este Deus-ao-meu-serviço. Sempre escrevi e falei contra esta antropomorfização de Deus, essa captura de Deus na lâmpada de Aladino. E acredito num Deus que eu não entendo mas que me ama amorosamente, que me ama amorosamente como Zé … embora isto seja mais fácil de escrever que de viver.
Isto tudo para dizer que também esta fase me está a ajudar a purificar a minha fé e a aprofundar a minha ideia de DEUS. Também em coisas de fé me sinto iletrado: acredito que Deus é Pai, é Amor, é o Senhor da história. Acredito porque nos foi revelado por Jesus Cristo, “o Filho único que no-lo deu a conhecer” (Jo 1,18). O problema é que muitas vezes acredito mais com a inteligência do que com o coração. E isso tem a ver com a espiritualidade, para a qual somos tão mal preparados, ou, pelo menos eu, me sinto mal preparado ou iletrado.

E já estou outra vez cansado!!!