divórcio ou casamento eterno?...

2006-07-31

Três euros

Já prestei homenagem à minha mulher, agora vou pedir desculpa aos meus filhos por nem sempre ter sabido estar atento às suas necessidades.
E vou servir-me de uma anedota publicada por uma revista, a Cruzada, que conheci na minha juventude e que muito recentemente voltei a ver em casa amiga.
Então aí vai...

Um menino, com voz tímida e os olhos cheios de admiração, perguntou ao pai, quando chega a casa do trabalho:
- Quanto ganha o pai por hora?
O pai, num gesto severo, respondeu:
- Escuta aqui meu filho, isso que perguntas nem a tua mãe sabe. Não me aborreças... estou cansado.
Mas o filho insiste:
- Mas, pai, por favor, diga-me quanto ganha por hora.
A reacção do pai foi menos severa e acabou por responder:
- Três euros por hora.
- Então poderia emprestar-me um euro?
O pai, cheio de ira, e tratando o filho com brutalidade, respondeu:
- Então, é essa a arazão de quereres saber quanto eu ganho. Vai dormir e não me aborreças mais.
Já era noite, quando o pai começou a pensar no que havia contecido e sentiu-se culpado. Talvez, quem sabe, o filho precisasse de comprar algo importante para ele.
Querendo descarregar a sua consciência dorida, foi até ao quarto do menino e, em voz baixa, perguntou:
- Filho, estás a dormir?
- Não, pai - respondeu o garoto sonolento e choroso.
- Olha, aqui está o dinheiro que me pediste: um euro.
- Muito obrigado, pai! - disse o filho levantando-se e retirando mais dois euros de uma caixinha que estava junto da cama.
- Pai, agora já completei!... Tenho três euros! Poderia vender-me uma hora do seu tempo?

CV(11) O Cireneu

Hoje vou falar-lhes do meu grande colega nesta caminhada.
É um cabide mais alto que eu com 5 sapatas, isto é, rodinhas, que às vezes funcionam como as rodas dos carros do supermercado: querem levar-me para maus caminhos.
A meio tem uma caixa, que não é negra, mas é muito inteligente.
Andou sempre comigo: na cama, no refeitório, na casa de banho, quando tomo banho. Não me larga um bocadinho. Num dos ganchos do cabide costuma andar uma garrafa ou de medicamento ou de soro que vai passando para o meu corpo via catéter. Outro gancho serve, por exemplo, para trazer o meu chapéu, quando não o trago na cabeça, porque nunca se sabe o tempo que vai fazer.
Além de fiel é muito inteligente. Através de um teclado marca-se na dita caixa, que não é negra, a velocidade de escoamento do líquido e depois a caixa controla tudo.
Está um gota de ar no tubo, começa a apitar; o tubo está dobrado, começa a apitar; a bateria que lhe dá autonomia para duas horas fica fraca, começa a apitar; passa por cima de um soalho rugoso, edesequilibra-se, começa a pitar. E apita, apita, apita, de modo insistentemente irritante, até que se carregue na tecla adequada depois de resolvido o problema em questão. Se não ficar resolvido, ela volta a apitar, apitar... O apito, insistente, ouve-se por todo o pavilhão.
Mas o que me deixa mais sossegado é saber que ela apita quando o líquido acaba; não só apita como fecha o circuito evitando o refluxo.
Realmente na primeira vez que andei a levar estas doses, o meu cabide não tinha a tal caixinha mágica. Resultado: quando havia algum problema, sobretudo de escoamento, não havia apitos a avisar. E durante a noite, lá estava eu de olho alerta, entre dois bochecos de sono, não fosse o dito líquido acabar ou deixar de correr.
E nem as palavras calmantes da enfermeira "Durma descansado que nós vamos passando e temos tudo sob controlo" me sossegavam. Não era que eu desconfiasse da enfermeira, longe disso, mas sabe-se lá o que pode acontecer. Se o diabo nem sempre está atrás da porta, às vezes está mesmo.
Esta maquineta cúbica com um palmo de lado é sobretudo a imgem de uma medicina que evoluiu exponencialmente não só nos tratmentos mas também no modo de os administrar.
Ao recordá-la aqui quero prestar homenagem a todos aqueles que se dedicam a estes pequenos pormenores que são tão libertadores para quem já está em sofrimento.

Parabéns

A Fátima e eu fazemos hoje 35 anos de casados.
Foi um tempo bonito fundamentalmente cheio de alegrias, o que nos ajuda a passar melhor esta fase difícil. Se já tivémos tanta coisa boa!...
Para homenagear a mulher que conseguiu aturar-me durante tantos anos (e não esqueçam que casei com quase 30 anos e cheio de vícios de solteirão!) resolvi declarar-me aqui publicamente.

35 anos
é uma eternidade
para quem vive no inferno
é uma hora
para quem vive no céu
ao teu lado
não passaram de
um minuto!

Um beijão para a Fatucha

2006-07-28

CV (10) Um acidente

Era noite alta. O toque de campainha chamou. Alguém entrou de pilha na mão ver o que se passava. O meu irmão da frente lamentava-se: "entornei o urinol!"
Ouvi aquilo e pensei "Coitado do senhor, o que lhe havia de acontecer". Bom, são coisas da vida: distracção, mãos trôpegas, sono, tentava eu justificar o sucedido não sem um ligeiro tom de incompreensão.
Lençóis molhados para o meio do chão, pijama limpo e tudo se concertou e tudo se resolveu. Talvez agora o senhor tivesse mais cuidado depois desta experiência desagradável, ia pensando eu enquanto tentava adormecer.
Daí a meia hora, novo toque de campainha. De novo alguém com uma pilha na mão. "Quem chamou?" perguntou em voz baixa.
E eu do meu cantinho respondi: "Entornei o urinol!".
Somos tão iguais, por que raio nos pomos a olhar os outros com comiseração, ou até como julgadores do alto da nossa superioridade bacoca!

2006-07-27

CV(9) O melhor amigo

Entrou discretamente. Cumprimentou-me: somos velhos conhecidos. Pergntou-me se queria comungar. "Claro!" respondi logo. Ela virou-se para os outros: "Alguém mais quer comungar?" Não foi a resposta dita ou intuída. "Mas já hoje distribui mais de 40 comunhões".
Comunguei, mas tive dificuldade em me concentar e interiorizar a visita do meu maior amigo, Jesus, do qual aliás ainda não falei aqui. Talvez um dia destes... Por isso, me senti algo frustrado. O que se passou? Terá sido o ambiente pouco propício a concentrações? Talvez, mas quem dera que fosse por outras razões. Gostaria que esta desconcentração resultasse do facto de o sentir sempre comigo e de conversarmos muitas vezes, mas também de o sentir em cada uma daquelas camas à minha volta.
Olhando o Evangelho rapidamente percebemos que o pobre é um lugar teológico, é uma das manifestações da presença real de Cristo entre nós. Lemos mas não acreditamos: Cristo está tão presente na hóstia consagrada como no pobre? Isto cheira a heresia para muitos. É inaceitável esta confusão entre Deus e os pobres que nós conhecemos. E, no entanto, já S. João Crisóstomo recordava: o que disse "Isto é o meu corpo" é o mesmo que disse "Tinha fome e deste-me de comer". Mas para acreditar verdadeiramente neste dogma revolucionário ainda não proclamado é preciso ser homem de fé. E nós somos pessoas de religião. Até somos muito religiosos: não falhamos a missa ao domingo, sabemos a doutrina de cor (de cor (coração), não; de memória), cumprimos os rituais prescritos. Somos homens religiosos. Muitas vezes até demasiado fundamentalistas. Mas será que temos fé em Jesus Cristo: acreditamos realmente na sua Pessoa e na sua Palavra?
Este é bem capaz de ser o grande drama de uma Igreja tão rica em regras, rubricas, proibições, mandamentos - muito religiosa - mas, às vezes, tão pobre com uma prática que ignora o comportamento de Jesus: misericórdia (como o bom samaritano), acolhimento (como o pai do filho pródigo), prioridade à pessoa (o sábado e a lei estão ao serviço da pessoa e não o contrário) - com pouca fé - pois está muito mais preocupada com a sua doutrina do que em testemunhar a força libertadora de Jesus Cristo.
E fartos de doutrinas estão as pessoas de hoje. O que querem são testemunhos fortes e libertadores, que uma Igreja (comunidade cristã) receosa (dos perigos deste mundo de hoje), soft (sem entusiasmo nem dedicação) e bonzai (perdida em questões secundárias) não está em condições de dar.

Filhos de Caim

As imagens aí estão a toda a hora. Quinze dias de bombardeamentos. De centenas de mortos. De milhares e milhares de desalojados. De órfãos. De famílias desfeitas.
O conflito no Médio Oriente é "apaixonado": cada um defende a sua dama; ningém consegue ser minimamente imparcial.
Só consigo ver que ali estamos nós, todos nós os humanos, no que temos de mais hediondo, de mais criminoso, de mais insolidário, incapazes de um gesto mínimo de paz e de consciência de que, apesar de todas as diferenças, somos, quer queiramos quer não, irmãos.
Terrível previsão a da Bíblia: Caim matou Abel ainda antes de ele ter tido filhos. Resultado: todos somos filhos de Caim, o assassino.
Novos Auchwitzs aí estão...
Até quando?

2006-07-25

CV(8) O medo dos outros

Um dos primeiros cuidados que médicos e enfermeiros me recomendaram era a atenção que devia ter com a limpeza: cuidado com os alimentos crus, lavar sempre bem as mãos antes de comer, não me envolver onde houvesse grande concentração de pessoas, receber só pessoas que não estivessem constipados ou com outras maleitas.
Todo este quadro era depois cientificamente fundamentado: o tratamento ia atacar a medula, que deixaria (temporariamente, espero eu!) de produzir leucócitos, plaquetas e glóbulos vermelhos e, portanto, as minhas defesas imunológicas iriam ficar muito enfraquecidas.
Não sei como raio interiorizei este discurso que um dia destes deu comigo a limpar cuidadosamente com papel higiénico o botão de descarga do autoclismo e até o puxador da porta da casa de banho.
Quando tomei consciência deste gesto inconsciente fiquei passado (de passa!): será que cheguei ao ponto de recear os meus irmãos humanos? quero mesmo viver numa redoma?
E mais não digo...

CV(7) Pequenas coisas

Depois de oito dias de hospedagem no hospital o médico mandou-me embora com 15 dias de férias.
Agora em casa, vou retomar a minha crónica
Não sei se se lembram daquela barulheira infernal que alimentou as minhas primeiras noites hospitalícias. Apesar de algumas queixas, sobretudo dos recém-chegados nada habituados a tal desperdício sonoro, parecia que não havia nada a fazer: o bloco operatório precisava de estar bem refrigerado e, portanto, não podia desligar-se o ar condicionado.
Mas perante a insistência de alguns doentes, especialmente dos que ali passaram estes últimos meses, foi possíverl sensibilizar alguém que mandou ver o que se passava.
Afinal era um dos suportes que estava mal apertado e as vibrações do motor faziam bater uma anilha cuja pancada ressoava por aí fora.
Três pequenas notas.
1ª A nossa vida é feita sobretudo de pequenas anilhas que quando não estão bem enquadradas dão cabo do juizo ao mais equilibrado.
2ª Perante uma qualquer situação, o mal é deixarmo-nos cair na rotina: afinal aquilo já cá estava quando eu entrei e cá ficará quando eu sair
3ª Mas o pior é ficar de braços cruzados. Muitas vezes, a maior parte das vezes, basta um simples e adequado exercício de cidadania (participação de todos e cada um na construção do bemc omum) para resolver grande parte dos pequenos dissabores que nos traz a nossa vida pessoal e comunitária. O importante é não nos demitirmos.

2006-07-17

CV(6) A primeira noite

Tinha todas as condições para ser uma noite agradável. As primeiras análises estavam mais ou menos normais com excepção dos leucócitos que não aguentaram bem o primeiro embate e o internamento ao fim da tarde de domingo (16.Jul.06) era apenas para hidratar. Só no dia seguinte começaria o novo tratamento.
Contudo… ao fim de hora e meia de dormida, comecei a sentir atrás de mim uma barulheira martelante – tac… tac…tac… - a alta velocidade, que a perspectiva da noite ampliava, ampliava, ampliava. Aguardei, tentando perceber o que se passava: só o meu vizinho do lado estava acordado; todos os outros dormiam aparentemente num sono dos justos.
Como a barulheira parecia continuar a aumentar, toquei a campainha e o enfermeiro veio explicar-me que se tratava do aparelho de ar condicionado do bloco operatório, pelo que não havia nada a fazer. Com uma justificação tão convincente procurei acalmar, fingir que o barulho não existia, mas o silêncio da noite é terrível para multiplicar todas as sensações.
Levantei-me e comecei a passear no corredor. A enfermeira interpelou-me solícita para saber qual o meu problema. Mas o veredicto confirmava-se: não havia nada a fazer. Além disso, o meu passeio pelo corredor não era aconselhável pois poderia incomodar os outros doentes devido ao ligeiro ciciar das rodas do meu suporte do soro. Uma lição importante: os pequenos pormenores podem ser mais importantes que os grandes gestos.
Fui, então, até ao refeitório, longe do foco sonoro, onde procurei dormir um bocadinho numa cadeira. Como a dureza da cama não estimulava o sono, procurei racionalizar a situação. E a chave mais adequada pareceu-me ser a solidariedade. Devia ser solidário com os meus irmãos doentes que na manhã seguinte iriam ser operados. Recordei que a solidariedade não é um qualquer exercício lúdico, que só nos traz alegria e a reconfortante sensação do dever cumprido, mas que se tratava de uma exigência que também pode implicar esforço, sacrifício, sofrimento, desinstalação. Enfim, um discurso muito lógico e muito oportuno não fosse a noite ainda escura e uma carrada de sono a desmontar qualquer argumentação. Mas lá fui insistindo até que cheio de bons propósitos me dirigi resoluto para a minha cama.
Ao cruzar a porta ouvi o meu colega do lado:
- Mas mandam-nos para aqui para nos curar ou para nos matar?
E de repente percebi como uma pergunta tão simples pode ter o efeito de uma enxurrada inutilizando o mais coerente e consistente discurso intelectual sobre a solidariedade.

2006-07-15

CV (5) Primeiros arrufos

Terminei sexta-feira a primeira dose do tratamento e senti as primeiras reacções desagradáveis. Talvez por culpa minha, pois não tomei uns comprimidos que me deram à saída do hospital cuja finalidade é limitar os enjoos e consequentes apêndices.
Mas também me serviu para ir antevendo tempos futuros. Devo dizer que não fiquei muito entusiasmado com a experiência. Até porque a minha cunhada, especialista na matéria, me disse no meio do sorriso mais cândido deste mundo e de um pedido de literatura sobre o Perú: "Tem calma! Isto é só o começo". Nem o contexto nem o sorriso me deixaram muito sossegado.
Por outro lado, para lá de algumas revoltas gástricas, continuo a sentir-me bem embora numa análise mais subtil sinta um certa irritação difusa de que por vezes mal me dou conta. Penso que ainda não saltou muito para fora, mas terei de estar muito atento não comece para aí a tratar mal os que já têm tanta paciência para me aturar e ainda têm de lidar com a sua dor.
Segunda-feira serei informado do passo seguinte.

2006-07-13

CV (4) Comentário

Os comentários tão amigos ao CV (3) vêm na sequência dos muitos gestos de solidariedade que tenho recebido nestes últimos tempos.
Já conhecia muitos textos sobre a solidariedade, mas este exercício prático mostrou-me outras facetas da solidariedade.
E dei comigo a pensar que somos (o género humano) um animal muito refinado e complexo, que sente pudor em dizer as coisas bonitas que pensa dos amigos, que receia magoar a modéstia ou ferir a imodéstia do amigo e, portanto, calamos o quanto verdadeiramente gostamos do outro ficando-nos por palavras de circunstâncias.
Talvez as estejamos a guardar para os momentos difíceis, partindo do princípio, que a sabedoria popular imortalizou no "Aí vem lobo": o que é muito repetido desvaloriza-se e perde o seu significado. Talvez... E então a doença grave e a morte aparecem como momentos privilegiados para esta catarse e para darmos vazão a esta necessidade de dizer alto aquilo que antes nos envergonhávamos de fazer. E, muitas vezes, já é tarde demais.
Às vezes lembrava-me disto e lá trazia uma flor à minha mulher. Mas, ainda bem que ela não se lembrou de quantificar o amor que sinto por ela pelo número de flores que lhe dei ao longo da vida... se não já há muito se teria divorciado. E se eu gosto dela!
Quanto ao meu comportamento para com os amigos, a paisagem ainda é mais deprimente.
Talvez esta atitude, queparece tão (des)humana, seja a tradução laica daquela política da Igreja de só canonizar os mortos. Medida prudente, não vá um qualquer santo dar uma cabeçada à Zidane, embora eu preferia santos que usem, mesmo que mal a cabeça, a santos que parecem incapazes de partir um prato!
Mas é também uma "política" da Igreja e da sociedade que é escrava da casuística e não quer reconhecer que a pessoa vale pelo conjunto da sua vida e não por um único acto. E tantas pessoas foram vítimas desta visão redutora.
Gosto muito de vocês todos e também gosto da maneira diferente como cada um gosta de mim e da maneira diferente como o (não) diz.
É mesmo bom ter amigos.

2006-07-11

CV (3) - Primeiro encontro

Devo confessar que ontem quando fui para o hospital para inciar a quimioterapia ia algo nervoso. Tratava-se de um primeiro encontro depois de algumas conversas preliminares. Ia encontrar-me com uma "companheira" de jornada que eu não conhecia a não ser por terceiros. E dei por mim a pensar no primeiro encontro de dois namorados que mal se conhecem mas que se querem, feitas as devidas adpatações: neste caso, eu não queria, mas não tinha outra solução; não desejava o encontro, mas fora-me imposto; nem amava o encontrado, antes pelo contrário.
Assim estive algum tempo à espera - conversando, lendo, pensando como seria o meu encontro - pautado pelas estações de uma hipotética via sacra, cujas estações principais foram: "Tem de aguardar ainda algum tempo"; "Venha pesar-se e medir a altura"; "O médico está a fazer os cálculos"; "O enfermeiro está a preparar os infusores"; "Venha para aplicarmos o primeiro e ensinar-lhe algumas regras".
E lá fui. À minha frente, quatro infusores. Quatro cilindros com um palmo de comprimento e uma polegada de diâmetro, um flagelo de plástico com uma torneira na ponta e cheios de um líquido de cor laranja-avermelhada (foi o que vi, apesar das minhas tendências daltónicas). Ali estava ela (no feminino, porque se trata de uma solução citostática): amiga, que me vai curar, mesmo à bruta? inimiga, que me vai abater?
Como que a dar-me a resposta, a enfermeira estava a explicar: "Deve usar sempe uma gaze quando mudar os infusores pois pode cair uma gota e como é um líquido muito corrosivo queima-lhe a pele!"
E aqui ando eu com o primeiro infusor preso, mesmo junto ao coração por baixo da camisa, discreto para não assustar os outros... ou a mim?

Zizou

Vi aquela cabeçada à touro. Não ouvi os comentários que a terão desencadeado. Li e ouvi muitos analistas destacarem o fim triste de um grande jogador. Num primeiro momento, também eu alinhei nesse coro de comentaristas bem comportados.
Depois pensando melhor conclui que o que nos magoava a todos era o facto de ele não ser aquele ídolo onde gostávamos de nos rever porque mostra o ideal com que todos sonhamos mas não conseguimos alcançar, porque não é alcançável neste mundo.
Afinal Zidane não era uma máquina sem defeitos: é uma pessoa, capaz de gestos de uma beleza inexcedível e de atitudes violentas. É bom tê-lo entre nós. Com virtudes e defeitos. Certamente que ninguém esquecerá aquela cabeçada, mas também não esqueceremos aqueles passes mágicos com que durante tantos anos nos deliciou. Aquela cabeçada o que fez foi apenas trazê-lo para o meio de nós, os simples mortais. E recordar a nossa finitude, que tanto teimamos em querer ignorar.
Até estou a imaginá-lo daqui a uns anos, ao cruzar-se com Materazzi, dizer-lhe: "Só fiquei com pena de não te ter partido o esterno, quando tu me provocaste daquela maneira!"

2006-07-08

Crónica de uma vitória (2)

Uma das primeiras medidas que tomei foi cortar o cabelo curtinho e fazer a barba.
Foi uma despedida silenciosa, mas desde que tenho barba e que me lembre só a tinha cortado duas vezes: uma a pedido da minha mãe para tirar uma fotografia de família; a outra, a pedido do filho que nunca tinha visto o pai sem barbas.
Também o cabelo comprido, que durante longas décadas cultivara, embora ultimamente o seu comprimento se fosse reduzindo para dimensões mais consentâneas com a nobreza da idade, tinha um significado que agora recordo no momento da tosquia.
Aí pelos meus vinte anos, ouvi um dia um ilustre autarca acusar "esses barbudos e cabeludos que por aí andam" de juventude depravada, sem princípios e outros mimos parecidos. Como, na altura ainda tinha um reputação de menino bem comportado, resolvi por solidariedade para com esses perigosos cabeludos deixar crescer o cabelo.
Só espero que este corte de cabelo não signifique o corte da solidariedade para com todos os injustamente acusados da história e para com os marginalizados de uma sociedade de bem comportados.

Crónica de uma vitória (1)

Resolvi escrever esta crónica neste momento em que vou iniciar um tratamento de quimioterapia.
Gostaria de dar duas justificações.
O título é fácil de justificar. Enquanto eu conseguir escrever, o título é óbvio. Se, porém, o desânimo ou a dinâmica de derrota me vencerem então a crónica, que já não seria de vitória, extingui-se-á naturalmente. Portanto, enquanto existir trata-se, esta é a minha convicção, da crónica de uma vitória. E esta minha convicção baseia-se numa grande esperança: que esta fase da minha vida, feita de pequenas vitórias e derrotas, seja no conjunto uma luta vitoriosa.
A crónica pode justificar-se pelo facto de ser feita a partir de uma circunstância particular: ver a realidade a partir da dor. E a dor é, como dizia alguém, uma daquelas "circunstâncias que podem ser tanto ou mais essenciais do que a essência".
A crónica será alimentada conforme as circunstâncias.