divórcio ou casamento eterno?...

2008-05-31

“Comer como pão”

Nos meus tempos de seminarista um dos autores que estudei foi o Padre António Vieira, um tratador exímio da arte de escrever. Desse tempo lembro especialmente o Sermão da Sexagésima e o Sermão aos Peixes. E também a obrigatoriedade de decorar um texto – o Estatuário – onde descreve o modo como o artista cria uma estátua, utilizando um conjunto de verbos cirurgicamente aplicados a cada gesto do artista: “ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos; aqui desprega, ali arruga, acolá recama e fica um homem perfeito e talvez um santo que se pode pôr no altar”.
Ainda se estuda o Padre António Vieira, mas mesmo assim parece ter caído em desuso e nem as recentes comemorações despertaram grande interesse no público. Do Sermão aos peixes recorda-se de vez em quando aquela passagem: “Não vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fosse ao contrário era menos mal. Se os pequenos comessem os grandes, bastaria um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande”.
Vem isto a propósito da crónica do Anselmo Borges (DN 31.Maio), onde faz um conjunto de citações deste Sermão, mostrando o que diria hoje o Padre António Vieira a propósito das desigualdades sociais, da aplicação da Justiça, da subida dos preços alimentares ou do comportamento da ASAE. Vale a pena ler esta pequena antologia. Mas a citação que mais me parece adequada aos tempos de hoje é a que passo a citar: “E de que modo (os grandes) devoram e comem? Não como os outros comeres, mas como pão. A diferença que há entre o pão e os outros comeres é que para a carne há dias de carne e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses do ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre continuamente se come: e isto é o que padecem os pobres. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos”.

2008-05-30

ESTA ARTE NOBRE E DIFÍCIL

Numa sondagem ontem conhecida (por mim!) sobre as suas principais preocupações, os israelitas fizeram o seguinte escalonamento: 1º) credibilidade da classe política; 2ª) segurança; 3ª) processo de paz; 4ª) desenvolvimento económico.
Certamente que estarão influenciados pelas notícias que têm colocado em cheque o seu primeiro ministro Olmert. Não sei se todos os outros países diriam, apesar de não terem problemas tão agudos de segurança e de paz como eles.
De qualquer modo, a credibilidade dos políticos, especialmente dos governantes, é hoje um problema que não pode ser tomada do modo ligeiro, na medida em que dele depende a credibilidade e sobretudo a aceitação de decisões e reformas políticas impopulares que, num contexto de forte crise, têm de ser tomadas.
Devo dizer que olho globalmente para os governantes com consideração: eles praticamente deixam de ter vida pessoal e familiar, ficam sem tempos livres, sacrificam projectos pessoais legítimos e tudo isto, com algumas excepções, para se dedicarem ao serviço público.
Estão ainda sujeitos à lei férrea e algo injusta do “em política o que parece é”, sobretudo quando parece existir uma “central de informações” sempre pronta a vasculhar, a maior parte das vezes de modo imoral, a sua vida privada, como se todos nós não tivéssemos no passado pecadilhos que nos condenariam publicamente.
Além disso, sobretudo hoje, com a interdependência e a globalização, a sua capacidade de decisão está muito condicionada por factores que muitas vezes não controlam e por vezes nem sequer conhecem na sua totalidade.
Por tudo isto, repito, aprecio sinceramente a esmagadora maioria dos governantes (já dos deputados e dirigentes partidários deixaria muitos de lado) e não alinho facilmente na campanha da sua demonização, embora não prescinda do meu espírito crítico relativamente às decisões tomadas, que não são necessariamente, pelo facto de eu discordar, sinal de desonestidade dos decisores.
Dito isto, é evidente que, dada a sua exposição pública e dadas as suas responsabilidades na mobilização da sociedade e na criação de dinâmicas de desenvolvimento e de construção de uma sociedade mais justa, deveria haver da parte dos potenciais candidatos uma análise séria das suas qualidades e das suas capacidades para ocuparem lugares cujo desempenho não acarreta apenas consequências pessoais, mas também sociais muito abrangentes e relevantes.
Agora o que é absolutamente inaceitável é que se trate de pessoas, sem o mínimo de qualidades humanas, facilmente abertos à corrupção, nas suas versões mais descaradas ou mais subtis, distribuidores de benesses pela cor partidária ou por nepotismo.
Infelizmente vivemos hoje, no país e no mundo, uma crise que tem muito a ver com uma crise de liderança. A era dos grandes líderes está a passar por um Inverno rigoroso e inclemente. E os que temos, não vão muito para lá da média dos cidadãos comuns, donde aliás são escolhidos. Mas aí a culpa é de todos nós.
Mas ao menos que os governantes, não tendo rasgos excepcionais, se comportem como pessoas honradas, como “viri boni” ou “clarissimi”, como diria Cícero, ou, para agradar a uma amiga minha, “homines boni”.
Isto será o mínimo que os cidadãos têm o direito de exigir.

2008-05-29

Medo de sermos nós próprios

Tinha pensado partilhar o meu artigo que vai sair hoje no Correio de Coimbra. Mas como ele está muito relacionado com o anterior que não trouxe aqui, pareceu-me melhor recordar este último. É um tema que me preocupa muito. Vivemos num tempo e numa sociedade onde parece imperar o medo e não me refiro tanto às inseguranças de várias ordens, mas aos medos interiores: o medo de tomar posição, o medo de lutar pelo que é justo, sempre com o medo de perder alguma coisa. No fundo, é a minha conclusão, temos medo de sermos nós próprios, de procurar cumprir a vocação e a missão que cada pessoa, como “sujeito livre e consciente" da história, traz adossadas a si. Desde miúdo me interrogava se a vida era a vida a que eu assistia na minha aldeia: as pessoas passavam o ano a trabalhar para terem milho, batatas, hortaliça, para poderem comer, crescer e reproduzir-se e… pelo menos aparentemente não havia mais nada. Tenho a sensação que ainda hoje a maior parte dos cidadãos, apesar de tantas mudanças, continuam ainda na prática a reproduzir este esquema. Certamente estou a ser injusto… mas que sinto qualquer coisa assim é verdade!
Para os mais pacientes aí vai o pastelão do artigo publicado:

DEMOCRACIA QUOTIDIANA
A organização não governamental Demos publicou um estudo em que avaliou a qualidade da democracia nos países da União Europeia. A novidade desta avaliação está em que são considerados não apenas os aspectos formais da democracia (por exemplo, votar), mas introduz mais cinco parâmetros abordando muitos outros aspectos, nomeadamente a democracia laboral (por exemplo, os trabalhadores são consultados quanto às mudanças a introduzir na empresa) e até a democracia familiar (por exemplo, os filhos são ouvidos quanto se decide o local onde passar as férias).
Num universo de 25 países, Portugal ocupa um vigésimo primeiro lugar. É realmente muito pouco e diz bastante mal do nosso espírito democrático, da nossa capacidade de participar na construção do país, da nossa cidadania e da nossa concepção de bem comum. O estudo mostra também que os primeiros lugares são ocupados pelos países nórdicos e que “o índice de cidadania quotidiana” vai diminuindo conforme se desce no mapa e se aproxima dos países latinos. Há também quem acrescente um argumento religioso já antigo. Os protestantes tem um sentido social muito mais empenhado do que os católicos, muitas vezes apenas preocupados com a sua salvação pessoal. Rahner falava até do “egoísmo da salvação”.
Deixando para os historiadores e sociólogos a análise da validade objectiva destes argumentos já clássicos, há outros aspectos que podemos considerar. Ao olharmos para o modo como vivemos, uma realidade demasiado presente parece ser o medo, que se apresenta ou se esconde sob as mais variadas formas.
Há medos, digamos, exteriores. É certo que vivemos numa sociedade complicada, onde se cruzam linhas complexas difíceis de destrinçar e logo aqui sentimos medo do que aí virá, do que nos reserva um futuro, cuja construção parece escapar-nos e do qual só esperamos más notícias. Além de complexa, é também uma sociedade de risco(s): ao lado de tanta coisa boa e de melhorias da qualidade de vida, há doenças novas, perigos tecnológicos inesperados, inseguranças que nos oprimem. Há ainda o medos dos outros, dos de dentro que só pensam nos seus privilégios e regalias; mas também dos de fora, que vêm ocupar os nossos postos de trabalho e trazer as suas ideias diferentes, as suas inseguranças disfarçadas em hábitos que mal conhecemos, o seu desejo de ter uma vida melhor mas à nossa custa, pensamos nós. Este medo tira a lucidez e a falta de lucidez acarreta a valorização do que há de negativo nos outros e a incapacidade de descobrir o muito que têm de bom. Assim mina-se a colaboração entre as pessoas e a participação efectiva na construção de uma sociedade melhor: mais justa, mais solidária, mais humana.
Mas há também medos interiores, talvez mais corrosivos e difíceis de detectar.
Muita gente tem ou parece ter medo de assumir compromissos e de tomar posição de modo consciente. Deixar andar as coisas na esperança que elas mudem ou outros as mudem é a negação do ser pessoa, pois só se pode ser pessoa sendo “sujeito consciente e livre” (ChL 37). Claro que isso acarreta incómodos. Quantos preferem não lutar pelos seus direitos para evitar essas dificuldades. Por exemplo, todos sabemos que há trabalhadores que não exigem os seus direitos porque receiam, e com razão, a perseguição, pois, apesar de terem a lei pelo seu lado, não têm, geralmente, o apoio dos colegas, que poderiam ser suas testemunhas abonatórias, mas que também eles têm medo de serem penalizados por essa sua atitude. Não basta ter a lei do nosso lado; é preciso lutar pelo seu cumprimento. Não basta exigir aos governos que façam cumprir a lei se os cidadãos não se mobilizam para a obrigarem a cumprir.
Há também quem viva angustiado com o que os outros poderão pensar de si. Numa sociedade, onde aparentemente não há regras, onde as pessoas fazem o que querem, não deixa de ser estranho este medo do que os outros poderão dizer de mim. Será a vingança de uma consciência cada vez mais amordaçada?
No fundo, trata-se de um medo mais radical, o medo de “ser eu próprio”. Faz-me lembrar uma história que ouvi, já não sei onde. Um judeu, com o avançar da idade, começou a pensar nas perguntas que Deus lhe iria dirigir quando morresse. Gostaria de se preparar bem para esse momento solene. Ia pensando, mas, apesar da sua crescente preocupação, não conseguia imaginar nada. No dia da sua morte, ao apresentar-se diante de Deus, esperou ansioso pela pergunta que tanto tentara descobrir. Deus virou-se para ele e perguntou-lhe: “Como te chamas?”. Ele respondeu muito admirado (Deus não sabia o seu nome?): “Isaac”. Então Deus, abrindo o livro dos registos, comentou: “Vamos ver se foste realmente Isaac”. Só então ele percebeu o comentário de Deus. Isaac não é apenas uma palavra. É um nome e por detrás de cada nome há uma pessoa e por detrás de cada pessoa há um projecto próprio. Deus queria ver se Isaac tinha sido mesmo Isaac, isto é, tinha sido fiel ao projecto que como pessoa lhe competia.
Parece, pois, que temos medo de sermos nós. Ser Zé Dias é diferente de ser um outro qualquer Zé. Cada um de nós, por detrás de cada nome, está sempre um ser único e irrepetível, na sua dignidade, na sua trajectória, no seu destino, no seu projecto. Sou/somos um projecto único e irrepetível.
Ter medo deste projecto, ter medo de “ser eu próprio” eis o grande drama da nossa (falta de) cidadania.

2008-05-28

Solidariedade com as gerações futuras

Há pouco mais de 20 anos, a Noruega era uma espécie de Portugal quanto ao seu atraso em desenvolvimento económico e social. Por essa altura saiu-lhes a sorte grande com a descoberta de petróleo na sua plataforma continental. Mas não se comportaram como novos-ricos, como Portugal fez com os chorudos subsídios da União Europeia. Não perderam a cabeça com tanta riqueza e calmamente decidiram dividi-la em três partes: uma para o orçamento; outra para investimento e outra para um Fundo de Compensação. Este fundo é intocável e tem como destinatário as gerações futuras. Pertence exclusivamente às gerações futuras.
As recentes declarações da ministra da tutela norueguesa explicam-nos que estas reservas petrolíferas também pertencem às gerações futuras e, portanto, também elas devem beneficiar dos lucros desses recursos. Palavras de um outro mundo e de uma outra mentalidade que nada tem a ver com o nosso tão egoísta e insolidário entre si quanto mais no que se refere a umas hipotéticas gerações futuras.
Que se fale das gerações futuras já há quem fale. Que se pense que as gerações futuras têm direitos, quanto mais não seja a um mundo minimamente habitável, já se vai falando, mas é só paleio barato sem qualquer intenção de passar à concretização prática nem por parte dos particulares nem dos governantes. Só a Noruega assumiu e cumpriu uma acção concreta: criação de um Fundo que neste momento já vai em 300 mil milhões de euros para os que hão-de vir. Um povo destes é com certeza um povo com futuro!
Mesmo àqueles que, entre nós, propuseram e subscreveram abaixo-assinados em defesa dos que aguardam na barriga das mães o direito inalienável de nascer, argumentando que estes eram os mais desprotegidos de todos, nunca lhes ocorrem que há outros ainda mais desprotegidos e esquecidos: são os que ainda nem sequer estão na barriga das mães, as gerações futuras, do próximo ano, da próxima década, do próximo século.

2008-05-27

Os (ir)responsáveis da Lidl são uns criminosos

Foi com alguma perplexidade que li ontem a notícia de que o Lidl ia racionar a venda de arroz, limitando-a a 10 quilos por cliente, justificando-se com a “excassez de matéria prima”. Olhei para aquilo e não queria acreditar. Num tempo de tanta sensibilidade, onde todo o cuidado é pouco, anunciar um racionamento assim de repente era qualquer coisa de muito grave, qualquer coisa como atirar um fósforo para um fardo de palha. Trata-se manifestamente não só de uma irresponsabilidade inadmissível, mas até de um crime, pois é um potencial gerador de pânico. E uma multidão em pânico é assim como um "estoiro da boiada” nas estepes americanas: esmaga tudo e todos. Não sei se há alguma moldura penal para este crime. Se não há é pena, pois o pânico foi sempre uma reacção irracional e incontrolada, mas é hoje, nas nossas sociedades de risco, uma reacção em cadeia perfeitamente imparável.
Ou.. seria apenas um desastroso e imoral truque publicitário?
Afinal, as notícias hoje vêm confirmar que realmente os responsáveis da Lidl não passam de uns garotos irresponsáveis, que só pensam nos seus lucros. Possivelmente o que eles queriam dizer não era que “só podiam vender 10 quilos a cada cliente”, mas que cada cliente devia levar dez quilos por várias vezes. Eles também sabem das estatísticas, que dizem que o consumo de arroz em Portugal não atinge sequer os 16 quilos por pessoa por ano!!!
Bem fez o Governo “apertá-los” e espera-se que esta atitude governamental se estenda à muita especulação que aí vai aparecer e sobretudo à que já anda por aí em muitos sectores.
É obrigação política e moral dos governantes zelar pelo bem comum e não dar cobertura a meia dúzia de energúmenos que nos querem explorar sem qualquer fundamento, aproveitando-se de situações que gostariam que fossem incontroladas.

2008-05-26

Governo caloteiro

Nestes tempos de crise económica que já estamos a viver e que certamente se irá agudizar por causa das “quatro crises que vieram para ficar” (Nicolau Santos: "acabou a comida barata, a energia barata, os combustíveis baratos e a água barata"), a solução não está, segundo tenho lido e ouvido a vários técnicos (deixo de lado a demagogia de alguns políticos) em baixar o ISP.
Disso não sei. Mas há medidas que podem ser tomadas e algumas já o foram. Mas há uma delas que é indispensável. Segundo números referidos por um deputado, o Estado deve às pequenas e médias empresas qualquer coisa como 3 mil milhões de euros. Esse pagamento seria não só um saudável exercício de justiça que nos ajudaria a olhar para o Estado com “uma pessoa de bem”, mas também, sobretudo neste momento, uma grandeajuda para o desenvolvimento da nossa economia e um balão de oxigénio para muitos milhões de pessoas.

2008-05-24

Tempos de fome

A leitura do Público de ontem era um pouco deprimente, caso a nossa consciência não esteja já entorpecida: a pobreza em Portugal sobre a qual Bruto da Costa apresenta algumas novidades, a sair em livro no próximo mês, um relatório da Comissão Europeia indicando que um milhão de portugueses vive com menos de 10 euros por dia e 230 mil com menos de 5; a pobreza no mundo que vai disparar (“tsunani silencioso” lhe chama o responsável pela alimentação da ONU) por culpa de políticas mais ou menos erráticas de subsídios à agricultura sobretudo à europeia, pelo imoral comportamento dos especuladores, mas também muito por causa dos biocombustíveis…
Todos estes factores colocam problemas éticos porque estão em jogo a vida das pessoas, particularmente o último: é aceitável que para continuarmos a ir de carro tomar a bica ao café do fim da rua e porque a gasolina está cada vez mais cara, desviemos os cereais e afins, alimento básico da humanidade, mesmo nos países desenvolvidos, da boca dos famintos para os depósitos dos nossos carros?
Ao querer manter este nosso estilo de vida, estamos a condenar à morte milhões de irmãos nossos. Daí a actualidade daquelas palavras terríveis de s. João Crisóstomo (séc. IV): “Não dar aos pobres dos próprios bens é cometer com eles um roubo e acometer contra a sua vida”.