divórcio ou casamento eterno?...

2009-09-30

CinV (30) Progresso e Liberdade (nº 17)

Como vimos o progresso é, na sua essência, uma vocação. “Esta visão do desenvolvimento … motiva todas as reflexões de Paulo VI sobre a liberdade, a verdade e a caridade no desenvolvimento” (16).
Em primeiro lugar, qualquer vocação implica sempre a responsabilidade pessoal: “A vocação é um apelo que exige resposta livre e responsável. O desenvolvimento humano integral supõe a liberdade responsável da pessoa e dos povos: nenhuma estrutura pode garantir tal desenvolvimento, prescindindo e sobrepondo-se à responsabilidade humana”.
A responsabilidade humana é analisada neste nº 17 da encíclica em três âmbitos.

Embora indispensáveis, as estruturas da vida social nunca poderão deixar de lado a responsabilidade de cada um: “Os «messianismos fascinantes, mas construtores de ilusões» (PP 11) fundam sempre as próprias propostas na negação da dimensão transcendente do desenvolvimento, seguros de o terem inteiramente à sua disposição. Esta falsa segurança converte-se em fraqueza, porque implica a sujeição do homem, reduzido à categoria de meio para o desenvolvimento, enquanto a humildade de quem acolhe uma vocação se transforma em verdadeira autonomia, porque torna a pessoa livre”. A história passada e sobretudo recente está cheia de exemplos desta redução da pessoa à mera condição de meio. E os resultados foram sempre gravosos para as pessoas, as sociedades e os povos e, no fundo, para a própria humanidade. Já os filósofos mais antigos colocavam o “homem como medida de todas as coisas”. A modernidade enalteceu até ao limite este primado, esquecendo que nada neste mundo é absoluto. A própria Igreja o proclamou no Concílio: “Com efeito, a pessoa humana uma vez que por sua natureza, necessita absolutamente da vida social, é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais” (GS 25). Aliás, outra coisa não seria de esperar de quem tem pôr missão testemunhar a Pessoa e a mensagem de Jesus de Nazaré, que confrontou a sociedade com a escandalosa afirmação de que “o homem não foi feito para o sábado, mas o sábado para o homem” (Mc 2, 27). E o respeito pelo sábado judaico era um crime religioso imperdoável.
João Paulo II desenvolveu detalhadamente este problema das estruturas e a sua ambiguidade, que as transforma em “mecanismos perversos”. Mesmo as melhores iniciativas se podem perverter-se e acabar por produzir um resultado totalmente diferente do pretendido. Daí que estas iniciativas se possam associar ao pecado social. Mas deixaria esta reflexão para o próximo comentário, para não quebrar o ritmo da reflexão de Bento XVI.

A pessoa, seja qual for o contexto, tem de ser sempre a protagonista. Nós somos os agentes e os sujeitos da história. E é porque, por vezes, nos esquecermos disso, que os acontecimentos muitas vezes assumem proporções desumanas e nos empurram para caminhos ínvios. Paulo VI, admitindo embora obstáculos e condicionalismos, não deixava de insistir neste protagonismo: “Cada um, sejam quais forem as influências que sobre ele se exerçam, permanece o artífice principal do seu êxito ou do seu fracasso” (PP 15).

Finalmente, Bento XVI atribui as situações de subdesenvolvimento à responsabilidade das pessoas. Mas atenção não se refere apenas às pessoas e aos povos pobres, mas também aos ricos. É hoje evidente que o subdesenvolvimento de uns é fundamentalmente o reverso do desenvolvimento de outros. Os pobres têm também as suas responsabilidades, mas talvez a maior causa seja a má organização social, tanto a nível nacional como internacional: “Esta liberdade diz respeito não só ao desenvolvimento que usufruímos, mas também às situações de subdesenvolvimento, que não são fruto do acaso nem de uma necessidade histórica, mas dependem da responsabilidade humana. É por isso que «os povos da fome se dirigem hoje, de modo dramático, aos povos da opulência». Também isto é vocação, um apelo que homens livres dirigem a homens livres em ordem a uma assunção comum de responsabilidade”.

2009-09-28

CinV (29) O progresso como vocação (nº 16)

Para Paulo VI, “o progresso é, na sua origem e na sua essência uma vocação” (PP 16), como se depreende da sua afirmação: “Nos desígnios de Deus, cada homem é chamado a desenvolver-se, porque toda a vida é vocação” (PP 15). É também por isso, certamente, que considerava toda a pessoa como criadora: “Deus, que dotou o homem de inteligência, de imaginação e de sensibilidade, deu-lhe assim o meio para completar, de certo modo, a sua obra: ou seja, artista ou artífice, empreendedor, operário ou camponês, todo o trabalhador é um criador” (PP 27). E João Paulo II qualificava o trabalho, qualquer trabalho, antes de mais como uma vocação, já que é “uma peculiar resposta do homem ao dom de Deus (a terra)” (CA 31) e ao mandato originário de Deus de cultivar e guardar o jardim (Gn 2,15). Mais ainda, trata-se mesmo de uma vocação religiosa: «Só o Cristianismo deu um sentido religioso ao trabalho e reconhece o valor espiritual do progresso técnico. Não há vocação mais religiosa que o trabalho» (Discurso aos jovens ingleses; Maio.1982).
Bento XVI explicita toda a força desta definição: “Dizer que o desenvolvimento é vocação equivale a reconhecer, por um lado, que o mesmo nasce de um apelo transcendente e, por outro, que é incapaz por si mesmo de atribuir-se o próprio significado último”.

O desenvolvimento ou progresso são palavras-chave que orientaram sobretudo os países ocidentais ao longo dos últimos séculos. Atribuíram-lhe vários significados, alguns absolutistas e legitimadores de toda a exploração não só das pessoas, como dos povos e até da natureza.
Apresentá-lo como vocação dá-lhe uma carga humanista (e não só) que não se compagina com absolutismos mas que exige a sua subordinação ao bem das pessoas, dos povos, da natureza e da humanidade. Daqui decorrem inclusivamente consequências ecológicas: “O carácter moral do desenvolvimento também não pode prescindir do respeito pelos seres que formam a natureza visível, a que os Gregos, aludindo precisamente à ordem que a caracteriza, chamavam o "cosmos". Também estas realidades exigem respeito, em virtude de três considerações. A primeira refere-se às vantagens de tomar ainda maior consciência de que não pode fazer-se impunemente uso das diversas categorias de seres, vivos ou inanimados - animais, plantas e elementos naturais - como bem lhe parecer, em função das próprias exigências económicas. A segunda consideração funda-se, por sua vez, na convicção, cada vez maior, da limitação dos recursos naturais, alguns dos quais não são renováveis, como se diz. Usá-los como se fossem inexauríveis, com absoluto domínio, põe em perigo seriamente a sua disponibilidade, não só para a geração presente, mas sobretudo para as gerações futuras. A terceira consideração relaciona-se directamente com as consequências que têm um certo tipo de desenvolvimento, quanto à qualidade da vida nas zonas industrializadas” (SRS 34).
É também por isso que João Paulo II condena as concepções iluminista, que supõe um processo rectilíneo, quase automático e de per si ilimitado, e economicista, a da mera acumulação de bens (SRS 27), contrapondo a concepção cristã de desenvolvimento nas suas várias dimensões (ver comentário CinV (8)), e destacando a sua ligação íntima com a obra da Criação e com o mandato divino de a continuar: “A história do género humano delineada pela Sagrada Escritura, mesmo depois da queda no pecado, é uma história de realizações contínuas, que, embora postas sempre em crise e em perigo pelo pecado, se repetem, se enriquecem e se difundem como resposta à vocação divina, assinalada desde o princípio ao homem e à mulher (cf. Gn 1,26-28), e impressa na imagem por eles recebida. É lógico concluir, ao mesmo para os que crêem na Palavra de Deus, que o "desenvolvimento" de hoje deve ser considerado como um momento da história iniciada com a criação e continuamente posta em perigo pela infidelidade à vontade de Criador, sobretudo por causa da tentação da idolatria; mas que corresponde fundamentalmente às premissas iniciais. Não cumpriria a vontade de Deus criador quem quisesse renunciar à tarefa, difícil mas nobilitante, de melhorar a sorte do homem todo e de todos os homens, sob o pretexto do peso da luta e do esforço incessante de superação, ou mesmo pela experiência da derrota e do retorno ao ponto de partida. Quanto a este ponto, na Encíclica Laborem Exercens, fiz referência à vocação do homem para o trabalho, a fim de acentuar o conceito de que é sempre ele o protagonista do desenvolvimento”(SRS 30).

2009-09-24

CinV (28) Contributo da Populorum Progressio (nº 13)

Bento XVI enumera os principais contributos da encíclica Populorum Progressio.

“Reafirmou a exigência imprescindível do Evangelho para a construção da sociedade segundo liberdade e justiça, na perspectiva ideal e histórica de uma civilização animada pelo amor”. Deve-se a Paulo VI não só a expressão “civilização do amor”, como o seu significado: “A sabedoria do amor fraterno, que tem caracterizado, em virtude e por obras, com toda a propriedade qualificadas de cristãs, o caminho da santa Igreja, surgirá com maior fecundidade, com vitoriosa felicidade, com regeneradora solidariedade. A sua dialéctica não será o ódio, a disputa, a avareza, mas o amor, o amor gerador de amor, o amor do homem para com o homem, não por um qualquer interesse provisório ou equívoco ou por alguma amarga e mal tolerada condescendência, mas por amor para contigo: a Ti, ó Cristo, descoberto no sofrimento e na necessidade de todos os nossos semelhantes. A “civilização do amor” prevalecerá no meio da inquietação das implacáveis lutas sociais e dará ao mundo a sonhada transformação da humanidade, finalmente cristã.” (No encerramento do Ano Santo, a 25.Dez.1975).

“Compreendeu claramente como se tinha tornado mundial a questão social”. Aliás como já referi atrás, Bento XVI, faz uma actualização desta “novidade” de Paulo VI: “Paulo VI já tinha reconhecido e indicado o horizonte mundial da questão social. Prosseguindo por esta estrada, é preciso afirmar que hoje a questão social tornou-se radicalmente antropológica, enquanto toca o próprio modo não só de conceber mas também de manipular a vida, colocada cada vez mais nas mãos do homem pelas biotecnologias” (75).

“Viu a correlação entre o impulso à unificação da humanidade e o ideal cristão de uma única família dos povos, solidária na fraternidade comum”. Esta ideia de que a humanidade constitui uma única família é uma ideia muito cara e há muito defendida pela Igreja e talvez a melhor fundamentação tenha sido dada por Pio XII: “Maravilhosa visão que nos faz contemplar o género humano na unidade da sua origem em Deus: "um só Deus e Pai de todos, que está acima de todos, que opera em todos e está em todos" (Ef 4,6); na unidade de natureza, igualmente constituída em todos de corpo material e de alma espiritual e imortal; na unidade do fim imediato e da sua missão no mundo; na unidade de habitação, a terra de cujos bens, por direito natural, todos os homens se podem servir para sustentar e desenvolver a vida; na unidade do fim sobrenatural, o próprio Deus, para quem todos devem tender; e na unidade dos meios para atingir tal fim” (Summi Pontificatus, 16).
Não resisto a citar aqui Amin Maalouf: “O primeiro destes valores é a universalidade, ou seja, que a humanidade é uma. Diversa, mas uma. Por isso, é uma falta imperdoável transigir nos princípios fundamentais com o eterno pretexto de que os outros não estariam prontos para adoptá-los. Não há direitos humanos para a Europa e outros direitos humanos para a África, a Ásia ou para o mundo muçulmano. Nenhum povo da Terra é feito para a escravatura, para a tirania, para o arbitrário, para a ignorância, para o obscurantismo, nem para a submissão das mulheres. Cada vez que negligenciamos esta verdade de base, traímos a humanidade e traímo-nos a nós próprios” (Um mundo sem regras).

Colocou o desenvolvimento, humana e cristãmente entendido, no coração da mensagem social cristã.

“Propôs a caridade cristã como principal força ao serviço do desenvolvimento”. Esta é, aliás, uma prática obrigatória para os cristãos, pois é pelo amor que se conhecem os discípulos de Cristo e é a única resposta capaz de romper a espiral da violência.

2009-09-23

CinV (27) Duas grandes verdades

O capítulo I é dedicado ao contributo da encíclica Populorum Progressio, que tinha “o objectivo de fazer sair os povos da fome, da miséria, das doenças endémicas e do analfabetismo” (21). Bento XVI começa por recordar duas linhas de continuidade com a doutrina dos seus predecessores: “O Concílio aprofundou aquilo que desde sempre pertence à verdade da fé, ou seja, que a Igreja, estando ao serviço de Deus, serve o mundo em termos de amor e verdade. Foi precisamente desta perspectiva que partiu Paulo VI para nos comunicar duas grandes verdades” (11).

“A primeira é que a Igreja inteira, em todo o seu ser e agir, quando anuncia, celebra e actua na caridade, tende a promover o desenvolvimento integral do homem. Ela tem um papel público que não se esgota nas suas actividades de assistência ou de educação, mas revela todas as suas energias ao serviço da promoção do homem e da fraternidade universal quando pode usufruir de um regime de liberdade”. O Papa responde a todos aqueles que consideram que a Igreja não tem o direito de intervir na vida pública e que deve recolher-se na sacristia. Realmente tal posição não é aceitável a nenhum título. A Igreja, independentemente da sua característica religiosa, é uma instituição cultural e, como tal, deve dar o seu contributo “único e insubstituível”, como o de qualquer outra instituição, para a construção de um mundo melhor e de uma sociedade cada vez mais justa e humana. Por outro lado, os cristãos são de pleno direito cidadãos e, como tal, devem participar activamente, como dizia Paulo VI, “a nossa finalidade… é chamar a atenção para algumas questões que, pela sua urgência, pela sua amplitude, pela sua complexidade, devem estar no centro das preocupações dos cristãos, para os anos que vão seguir-se, a fim de que, juntamente com os outros homens, se apliquem a resolver as novas dificuldades que põem em causa o próprio futuro do homem” (OA 7).

“A segunda verdade é que o autêntico desenvolvimento do homem diz respeito unitariamente à totalidade da pessoa em todas as suas dimensões. Sem a perspectiva duma vida eterna, o progresso humano neste mundo fica privado de respiro. Fechado dentro da história, está sujeito ao risco de reduzir-se a simples incremento do ter; deste modo, a humanidade perde a coragem de permanecer disponível para os bens mais altos, para as grandes e altruístas iniciativas solicitadas pela caridade universal”. Efectivamente uma das tentações do homem moderno é considerar-se “o homem prometeico”, o homem que foi (é) capaz de ir ao Olimpo roubar o fogo a Zeus, o homem auto-suficiente, que tudo pode, tudo sabe e que tudo decide até o que é bem e o que é mal. As suas descobertas científicas e técnicas encheram-no de orgulho e de uma convicção profunda de que não precisava de mais ninguém nem sequer de Deus. Esqueceu-se da nossa finitude e da sua irmã gémea a ambiguidade: por cada face boa, há um reverso mau. Por detrás de cada descoberta há sempre dois caminhos: um que conduz a uma melhor qualidade de vida; outro que nos pode arrastar para situações escravizantes ou denegadoras da dignidade humana. E agora começa a perceber-se que é assim mesmo. O homem, “deixado à solta”, nem sempre faz as melhores opções. E ainda bem, para não nos convencermos de que somos infalíveis. Dito isto, quero dizer que recuso frontalmente a clássica afirmação de Dostoiewski: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. Todos sabemos que não são apenas os crentes que se regulam (e às vezes tão mal!) por valores. Por isso não me parece aceitável supor que os não crentes são pessoas sem princípios ou sem ideais ou para quem a vida não tem sentido. Mais, aprecio especialmente aqueles, que não sendo crentes e, portanto, não dispondo de uma fé transcendente, se comprometem com entusiasmo e muita coragem na luta pela justiça e por uma sociedade mais humana. E que, apesar de não acreditarem num Além, não desanimam e parecem até ter mais força e convicção do que muitos dos que se dizem discípulos de Jesus Cristo.

2009-09-22

CinV (26) A “minha” verdade

Há pelo menos duas lições que extraio para meu uso pessoal desta Introdução.

Se amar em verdade implica amar o outro tendo em conta o projecto a que ele está chamado, eu tenho de olhar para ele nessa perspectiva: esta é “uma vocação que nos é dirigida para amarmos os nossos irmãos na verdade do seu projecto” (1). Por exemplo, porque ninguém pode ter como projecto ser pobre, miserável, passar fome, eu não posso olhar para os milhões de deserdados da história como uma “chatice”, uns preguiçosos, esquecendo que a maioria deles é fruto de situações e exclusões de um mundo que nós organizámos de modo injusto e à medida dos (nossos) interesses mais egoístas, criando um conjunto de “estruturas de pecado” que eu ignoro para poder ficar com a consciência (cristã) mais sossegada. Portanto eu nunca posso ou devo ver “no necessitado, que pede ajuda para a sua vida, um importuno ou um fardo, para reconhecerem nele a ocasião de um bem em si, a possibilidade de uma riqueza maior. Só esta consciência dará a coragem para enfrentar o risco e a mudança implícita em toda a tentativa de ir em socorro do outro homem. De facto, não se trata apenas de «dar o supérfluo», mas de ajudar povos inteiros, que dele estão excluídos ou marginalizados, a entrarem no círculo do desenvolvimento económico e humano. Isto será possível não só fazendo uso do supérfluo, que o nosso mundo produz em abundância, mas sobretudo alterando os estilos de vida, os modelos de produção e de consumo, as estruturas consolidadas de poder, que hoje regem as sociedades” (CA 58).

Uma segunda lição tem a ver comigo. Qual é a minha verdade, isto é, qual é o projecto de vida que sou chamado a realizar? Lembro-me que, quando terminei a minha licenciatura e comecei a trabalhar, as duas questões existenciais que se me punham eram duas: 1) ser (viver como) cristão é a mesma coisa que ser (viver como) bom cidadão?; 2) qual é o projecto que Deus tem para mim? Terei eu o coração suficientemente liberto para poder dar espaço ao projecto de Deus, mesmo que ele vá contra os meus legítimos projectos?
A resposta à primeira questão exigiu bastante leitura e meditação mas foi fácil encontrá-la.
Mas quanto à segunda ainda hoje ando à procura e possivelmente nunca acabarei essa busca. Porque Deus não nos fala directamente, a não ser excepcionalmente e mesmo nesses casos que a Bíblia relata, eu não sei se Deus terá sido assim tão explícito. Por exemplo, Moisés fugiu para o deserto onde apascentava os rebanhos do sogro. Mas certamente não conseguia esquecer os seus irmãos hebreus escravizados no Egipto. Foi Deus que lhe falou directamente como relata o Êxodo ou foi ele que na leitura dos acontecimentos descobriu o projecto de Deus? Mesmo S. Paulo: certamente não bastaria cair do cavalo (será que ele caiu mesmo? e será que foi mesmo Deus que o derrubou?); deve ter havido muita reflexão pessoal (ele era especialista na Tora) que o terá levado não só a deixar de perseguir os cristãos como sobretudo a libertar os convertidos da obrigação de passarem pelo judaísmo.
Deus fala-nos na Palavra revelada, mas sobretudo nos acontecimentos do dia a dia. É aí que eu tenho de em cada momento ir descobrindo a melhor maneira de cumprir a minha verdade. Às vezes só vejo pequenos vestígios e fico na dúvida. Mas tenho de continuar essa busca, mesmo e sobretudo correndo o risco de me enganar. Deixando de falar dos outros, o que posso é testemunhar que fui fazendo as minhas opções, tendo em conta a minha “formação” cristã e humana e procurando discernir o que me parecia ser em cada momento o que Deus me indicava através dos acontecimentos. Foi assim quando decidi sair do seminário (e se eu sabia o quanto iria magoar os meus pais especialmente a minha mãe!); quando desisti de namorar ao saber que a “miúda” era filha de um rico industrial; quando decidi não me doutorar; quando deixei a minha actividade profissional apenas com 20 anos de serviço.
Fiz as opções certas? Sei lá. Mas fi-las com a convicção de que era aquilo que Deus me indicava naqueles momentos. Mas os sinais dos tempos não só são ambíguos como vêm muitas vezes mascarados por anti-sinais. Resta-nos a fé e a confiança na Providência (“Não vos preocupeis com o dia do amanhã… Procurai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça e tudo o mais vos será dado por acréscimo”: Mt 6,33s) e amar a vida e os outros de acordo com as exigências desse Reino!

2009-09-21

CinV (25) Verdade e Opiniões

Embora se trate de um assunto marginal, indirectamente ligado à encíclica, gostaria de reflectir um pouco sobre uma realidade de que geralmente não nos damos conta.
Partindo da definição de verdade de cada pessoa como o projecto que a realiza plenamente, teremos que fazer alguma diferenciação entre a verdade de cada um e as suas opiniões “técnicas”. A sua verdade é o seu ser, o seu modo fundador da sua vida, a sua “opção fundamental” na condução do seu modo de viver. Contudo a vida é feita de milhentos tempos de pequenas opções, de escolhas imediatas que, sem ignorar o meu ser, não são uma sua consequência lógica. Por exemplo, não depende da minha condição de crente ou de ateu preferir o novo aeroporto em Alcochete ou na Ota ou considerar que o TGV é necessário ou dispensável para um melhor desenvolvimento do país.
Assim sendo, eu não posso ser apenas avaliado pelas minhas escolhas “secundárias”. Eu SOU mais do que as minhas opiniões. Contudo, penso eu, temos praticamente todos, a começar por mim, tendência para ver eavaliar o outro pelo que ele diz. Ilustraria, para melhor explicitação, esta minha ideia com um exemplo prático. Há algum tempo, numa entrevista televisiva, um ilustre professor de gestores (apesar da sua projecção internacional, não o conhecia nem conheço; só por isso não refiro o seu nome!) contou o que se passara numa reunião de altos responsáveis de uma instituição bancária. A dada altura, um dos participantes fez uma proposta que apoiou em vários argumentos, pedindo a opinião (aprovação?!) dos presentes. O dado professor comentou que tal proposta não passava de um disparate. Resposta pronta do interpelado: “O senhor está a chamar-me burro!”. “Não – tentou explicar – eu apenas estou a analisar a sua proposta e não a sua pessoa. O que é burrice, na minha opinião, é “apenas” a sua proposta não o senhor”.
Esta é a nossa atitude normal. Quando alguém critica a minha opinião, penso logo que ele está a pôr-me em causa, está a desqualificar a minha “verdade”, o meu SER. Não conseguimos distinguir o acidental, as manifestações provisórias, daquilo que é o fundamental, a verdade do meu ser, o meu “modo último” de viver, os fundamentos da minha maneira de ser e estar.
Como referi, a maior parte delas, as que chamei “opiniões técnicas”, não têm a ver directamente com essa minha verdade. No entanto, como é evidente tenho de tomar, ao longo da vida, decisões que estão em íntima dependência da minha verdade. Essas são as opções de fundo que marcam o rumo que quero dar à minha vida. Quando prefiro a cunha, em vez da avaliação honesta, para subir na carreira estou a violentar a minha verdade (e também a dos outros) e esta decisão não é acidental mas essencial, estruturante da minha maneira de viver. Quando prefiro o TER ao SER estou a tomar decisões que afectam a minha verdade e a põem em causa.
Parece-me haver aqui uma ponte para a distinção de João XXIII, que já atrás referi: é preciso saber distinguir entre o erro e a pessoa que erra. E também aqui temos muita dificuldade em praticar esta exigência moral. Já não é só com os que erram. É também com os que não têm a mesma opinião que eu, os que não têm a mesma cor intelectual ou partidária. No fundo, são manifestações de racismo e todos somos racistas, embora teoricamente não o admitamos e juremos a pés juntos a nossa inocência.
É difícil, mas temos que ser capazes de passar para lá das aparências para chegar ao essencial. Olhar para o que está por detrás da fachada, do invólucro. Jesus acusava os fariseus de serem sepulcros caiados. A sociedade burguesa falava de “virtudes públicas e vícios privados”. E esta prática ganhou raízes e continua bem viva. Além disso, hoje vivemos numa sociedade onde “tudo vale”: cada um sente-se livre para fazer o que lhe apetece. “Eu quero” e “Eu gosto” são expressões correntes. Até mesmo o que a lei exige, muitos nos preocupamos em ultrapassar ou contornar naquilo que não é do nosso agrado
Termino, voltando a Bento XVI: “Sem verdade, sem confiança e amor pelo que é verdadeiro, não há consciência e responsabilidade social e a actividade social acaba à mercê de interesses privados e lógicas de poder, com efeitos desagregadores na sociedade, sobretudo numa sociedade em vias de globalização que atravessa momentos difíceis como os actuais” (5).

2009-09-18

CinV (24) Deus existe?

O ateísmo parece ter ganho um fôlego incluindo até campanhas publicitárias em autocarros urbanos em várias cidades europeias. Um dos slogans mais conhecido é talvez o que apareceu em Génova: “A má notícia é que Deus não existe, a boa é que não precisamos dele”. Diz-se que tais campanhas terão sido financiadas por Richard Dawkins, um biólogo evolucionista e um assumido ateu militante, que tem escrito vários livros de sucesso sobre o tema e aproveitado a Internet, dando especial atenção ao problema da (não) existência de Deus.

É certo que sempre houve críticos da existência dos deuses, mas o ateísmo sistemático é tardio.

Por exemplo, Epicuro já colocava o problema: “Deus ou quer eliminar os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente; o que não pode acontecer para ser Deus. Se pode e não quer, é invejoso, o que é igualmente contrário ao ser Deus. Se não quer nem pode, é invejoso e impotente e, portanto, não é Deus. Se quer e pode, atributos só de Deus, donde provém a existência dos males e por que não os elimina?”. Estas questões são hoje retomadas nesta ou numa forma semelhante por muitas pessoas honestas.

Os primeiros cristãos foram acusados de ateus, porque se recusavam a adorar os deuses, sobretudo os Lares (deuses familiares), e o imperador, pilares da civilização romana. S. Justino responde a esta acusação: “Daí que nos chamem ateus. E, se se trata desses supostos deuses, então confessamo-nos ateus, mas não a respeito do Deus verdadeiríssimo, pai da justiça e da castidade e das demais virtudes, em quem não há qualquer mancha de maldade. A Ele, ao Filho, que dele veio e nos ensinou tudo isto… e ao Espírito profético, lhes damos culto e adoramos, honrando-os com razão e verdade e ensinando generosamente a quem quiser sabê-lo tudo aquilo que nós aprendemos” (Apologia I, cap. VI).

O ateísmo sistemático é mais tardio, como se pode ver pelo facto de só com Leibniz (séc. XVII) ter surgido a Teodiceia, “a justificação de Deus”, ao escrever um tratado em que tentou explicar como e por que razão existe (tant)o sofrimento no mundo sabendo-se que Deus é todo poderoso e quer que todos sejamos felizes.

Convém, no entanto, não esquecer que o ateísmo não se reduz ao sistema comunista, ao existencialismo, ao agnosticismo ou ao indiferentismo. Há também um ateísmo prático que muitos crentes alimentam, como já o Concílio criticara: “Porque o ateísmo, considerado no seu conjunto, não é um fenómeno originário, mas antes derivado de várias causas, entre as quais é preciso contar uma reacção crítica perante as religiões e, especialmente em certas regiões, em face da religião cristã. Por isso, nesta génese do ateísmo, os crentes podem ter uma não pequena parte, na medida em que, pela negligência na educação da fé, pela apresentação falsa da doutrina e também pelas deficiências da sua vida religiosa, moral e social, se pode dizer que mais encobriram do que revelaram a autêntica face de Deus e da religião” (GS 19).

Voltando a R. Dawkins: ele não só proclama que a probabilidade do ateísmo é quase absoluta quando analisado a partir da objectividade e da evidência científica, como sugere que do ponto de vista científico a probabilidade da existência de Deus é inferior a 5%. Bom, podia ser pior!

Em resposta a este dogmatismo é interessante ver o número de livros “genéricos” que abordam o tema Deus, mas também revistas e artigos de cientistas que se dizem crentes. Recordaria o inquérito feito a cientistas de todo o mundo pela prestigiada revista Nature, em 1997, que deu o seguinte resultado: 39,3% acreditam num Deus pessoal; 38% acreditam na imortalidade; apenas 9, 9% “desejava que existisse uma outra vida” (L. Sequeiros)

É evidente que há temas que não são fáceis de articular e que exigem um grande esforço de diálogo franco e honesto, pois parece muito difícil, para um crente e até para um humanista, aceitar que o homem é apenas o conjunto do seu património genético; que a consciência e as emoções são apenas uma troca de iões entre os milhares de sinapses, dendrites e neurónios; que acabará por se descobrir (um)a “Teoria do Tudo”, uma teoria única capaz de explicar todos os fenómenos desde o infinitamente grande ao infinitamente pequeno. Mas isto levar-nos-ia por longos caminhos, que não fazem parte deste meu itinerário sobre a encíclica.

Até porque nem sequer sabemos responder a esta pergunta tão “simples” com antiga: “Por que existe alguma coisa e não o nada?”

2009-09-16

CinV (23) Fé e Razão (2)

Parece-me oportuno recordar o esforço que João Paulo II desenvolveu neste campo desde os seus tempos de padre e bispo na Polónia, quando juntava ilustres intelectuais de diferentes sensibilidades em tertúlias que ficaram famosas.
Quando Papa, estimulou o diálogo entre a ciência e a religião sobretudo através da Academia das Ciências do Vaticano. Foi também ele que mandou rever o “processo de Galileu”.
Por ocasião dos 300 anos da publicação do famoso livro de Newton, escreveu numa Carta ao Pe. G. V. Coyne, Director do Observatório Astronómico Vaticano (1.Jun.1988): “A ciência pode purificar a religião do erro e da superstição; a religião pode purificar a ciência da idolatria e dos falsos absolutos. Cada uma pode ajudar a outra a entrar num mundo mais amplo, um mundo no qual possam prosperar em conjunto. A verdade é que a Igreja e a comunidade científica terão de contactar inevitavelmente; as suas opiniões não suportam o isolamento. Os cristãos não poderão deixar de assimilar a ideia predominante de olhar o mundo, ideia que hoje sofre uma profunda influência da ciência. O único problema é se o fazem com sentido crítico e reflectido, com profundidade e equilíbrio, ou com a superficialidade que avilta o Evangelho e que os envergonha perante à história. Os cientistas, como todos os seres humanos, deverão tomar decisões sobre o que, em definitivo, dá sentido e valor à sua vida e ao seu trabalho; fá-lo-ão bem ou mal, ou com aquela profundidade de reflexão que se alcança com a ajuda da sabedoria, ou com uma considerada absolutização das suas conquistas que ultrapassa os seus justos e razoáveis limites”.
Este interesse do Papa estimulou a colaboração do Observatório e do Conselho Pontifício da Cultura com várias universidades, nomeadamente a de Berkeley, do qual saíram cinco volumes tratando os seguintes temas: Cosmologia quântica e leis da natureza (1993); Caos e complexidade (1995); Biologia evolutiva e molecular (1995); Neurociência e pessoa (1999); Mecânica quântica (2001). (Estes elementos recolhi-os de um artigo de L. Sequeiros, na revista Iglesia Viva nº 238).
A 14.Set.1988 publicou uma encíclica totalmente dedicada a este tema: Fides et Ratio. Uma das suas preocupações é a fragmentação do saber, que só o respeito pela tradição poderá superar: “Quero exprimir vigorosamente a convicção de que o homem é capaz de alcançar uma visão unitária e orgânica do saber. Esta é uma das tarefas que o pensamento cristão deverá assumir durante o próximo milénio da era cristã. A subdivisão do saber, enquanto comporta uma visão parcial da verdade com a consequente fragmentação do seu sentido, impede a unidade interior do homem de hoje… Neste sentido, é muito importante que, no contexto actual, alguns filósofos se façam promotores da descoberta do papel determinante que tem a tradição para uma forma correcta de conhecimento. De facto, o recurso à tradição não é uma mera lembrança do passado; mas constitui sobretudo o reconhecimento de um património cultural que pertence a toda a humanidade. Poder-se-ia mesmo dizer que somos nós que pertencemos à tradição, e por isso não podemos dispor dela a nosso bel-prazer. É precisamente este enraizamento na tradição que hoje nos permite poder exprimir um pensamento original, novo e aberto para o futuro. Esta observação é ainda mais pertinente para a teologia, não só porque ela possui a Tradição viva da Igreja como fonte originária, mas também porque ela, em virtude disso mesmo, deve ser capaz de recuperar quer a profunda tradição teológica que marcou as épocas precedentes, quer a tradição perene daquela filosofia que, pela sua real sabedoria, conseguiu superar as fronteiras do espaço e do tempo” (85).
Uma revista da Universidade de Valência resumia em quatro grandes temas o confronto histórico entre ciência e religião: origem do universo, origem e história da terra, origem e evolução dos seres vivos e a emergência e evolução da condição humana.
Pelo meio, foi-se desenrolando já ao longo de várias décadas a “luta” entre criacionistas e evolucionistas, que sobretudo nos Estados Unidos chegou à barra dos tribunais.
Recentemente os avanços da física das partículas vêm colocar novos problemas em torno do princípio antrópico e do “Desenho Inteligente”. Por outro lado, as novas versões da criação do Universo a partir das flutuações quânticas do vazio obriga a aprofundar a ideia teológica da criação ex nihilo (do nada).
Depois de um período de aparente diálogo promissor, surgiu nos primeiros anos deste século uma nova forma de confronto, especialmente sobre a existência de Deus ou a necessidade de Deus.

2009-09-15

CinV (22) Fé e Razão (1)

Na Introdução, Bento XVI utiliza uma expressão que lhe é muito cara: razão e fé: “Só através da caridade, iluminada pela luz da razão e da fé, é possível alcançar objectivos de desenvolvimento dotados de uma valência mais humana e humanizadora” (9). João Paulo II já lhe dedicar especial atenção e não só com a encíclica Fides et Ratio, mas para Bento XVI aeste é um tema fundamental que ele aborda sistematicamente e entende-se facilmente a sua preocupação se tivermos em conta estas suas palavras: “Olhando retrospectivamente, podemos dizer que a força que transformou o cristianismo numa religião mundial consistiu na sua síntese entre razão, fé e vida; este síntese condensou-se precisamente na expressão religio vera. Impõe-se, por isso, cada vez mais a questão: porque é que, hoje, esta síntese já não convence? Porque é que hoje, ao invés, surgem contraditórios e até reciprocamente exclusivos a racionalidade e o cristianismo? Que é que mudou na racionalidade? Que é que mudou no cristianismo?” (Deus existe? Um confronto sobre a verdade, fé e ateísmo da editora Pedra Angular, p. 85).
Como não sou filósofo nem teólogo, este é assunto difícil para mim, mas, como crente e cidadão, não posso ignorá-lo. Mais à frente onde o Papa trata mais detalhadamente o assunto direi mais alguma coisa. Para já queria apenas dar conta das principais referências nesta encíclica, mais um sinal de que a considera uma questão central para o cristianismo hoje:
- “A verdade é luz que dá sentido e valor à caridade. Esta luz é simultaneamente a luz da razão e a da fé…” (3);
- “É ao mesmo tempo verdade da fé e da razão, na distinção e, conjuntamente, sinergia destes dois âmbitos cognitivos” (5);
- “A razão, por si só, é capaz de ver a igualdade entre os homens e estabelecer uma convivência cívica entre eles, mas não consegue fundar a fraternidade” (19);
- “As exigências do amor não contradizem as da razão” (30);
- “É indispensável o alargamento do nosso conceito de razão e do uso da mesma” (31);
- “Trata-se de dilatar a razão e torná-la capaz de conhecer e orientar estas novas e imponentes dinâmicas, animando-as na perspectiva daquela «civilização do amor», cuja semente Deus colocou em todo o povo e cultura” (33);
- “A esperança encoraja a razão e dá-lhe a força para orientar a vontade. Já está presente na fé, pela qual aliás é suscitada. Dela se nutre a caridade na verdade e, ao mesmo tempo, manifesta-a” (34);
- “a razão encontra inspiração e orientação na revelação cristã” (53);
- “No laicismo e no fundamentalismo, perde-se a possibilidade de um diálogo fecundo e de uma profícua colaboração entre a razão e a fé religiosa. A razão tem sempre necessidade de ser purificada pela fé; e isto vale também para a razão política, que não se deve crer omnipotente. A religião, por sua vez, precisa sempre de ser purificada pela razão, para mostrar o seu autêntico rosto humano. A ruptura deste diálogo implica um custo muito gravoso para o desenvolvimento da humanidade.” (56);
- “O diálogo fecundo entre fé e razão não pode deixar de tornar mais eficaz a acção da caridade na sociedade e constitui o quadro mais apropriado para incentivar a colaboração fraterna entre crentes e não-crentes na perspectiva comum de trabalhar pela justiça e a paz da humanidade” (57);
- “Face a estes dramáticos problemas, razão e fé ajudam-se mutuamente; e só conjuntamente salvarão o homem” (74);
- “Deus revela o homem ao homem; a razão e a fé colaboram para lhe mostrar o bem, desde que o queira ver” (75).

2009-09-11

CinV (21) Desafio para a Igreja

Bento XVI, no nº 9, chama a atenção para duas realidades que a Igreja é chamada a proclamar. Tem consciência de como hoje é especialmente difícil esta proclamação. Por isso fala de “um grande desafio para a Igreja num mundo em crescente e incisiva globalização”.

Em primeiro lugar trata-se da falta de ética nas relações entre as pessoas e os povos sem a qual nenhum desenvolvimento pode ser autêntico: “ O risco do nosso tempo é que, à real interdependência dos homens e dos povos, não corresponda a interacção ética das consciências e das inteligências, da qual possa resultar um desenvolvimento verdadeiramente humano”.
João XXIII já destacara esse “sinal dos tempos”, sem fazer referência à sua valoração moral, ficando-se pela necessidade de estar atento a este facto de modo a que se tirassem consequências em defesa das pessoas e dos povos: “Dada a interdependência cada vez maior entre os povos, não é possível que entre eles reine uma paz durável e fecunda, se o desnível das condições económicas e sociais for excessivo” (MM 156; cf. MM 49; 199).
“Ao mesmo tempo, cresce a interdependência entre as economias nacionais. Estas entrosam-se gradualmente umas nas outras, quase como partes integrantes de uma única economia mundial. O progresso social, a ordem, a segurança e a paz em cada comunidade política estão em relação vital com o progresso social, com a ordem, com a segurança e com a paz de todas as demais comunidades políticas” (PT 129).
Foi João Paulo II quem fez uma avaliação moral desta “crescente consciência da interdependência entre os homens e os povos” considerando-a como “um valor positivo e moral”, porque “o facto de os homens e as mulheres, em várias partes do mundo, sentirem como próprias as injustiças e as violações dos direitos humanos cometidas em países longínquos, que talvez nunca visitem, é mais um sinal de uma realidade interiorizada na consciência, adquirindo assim uma conotação moral”. E, se estamos no campo da moral, a resposta só poderá também vir desse campo: “Quando a interdependência é reconhecida assim, a resposta correlativa, como atitude moral e social e como «virtude», é a solidariedade. Esta, portanto, não é um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos” (SRS 38).

Em segundo lugar, Bento XVI vem repetir uma ideia já muito presente na DSI, a de que o desenvolvimento autêntico não pode ser apenas técnico: “A partilha dos bens e recursos, da qual deriva o autêntico desenvolvimento, não é assegurada pelo simples progresso técnico e por meras relações de conveniência, mas pelo potencial de amor que vence o mal com o bem (cf. Rm 12, 21) e abre à reciprocidade das consciências e das liberdades”.
Finalmente, recorda uma outra ideia muito presente nos últimos documentos do Magistério: “A Igreja não tem soluções técnicas para oferecer e não pretende «de modo algum imiscuir-se na política dos Estados»; mas tem uma missão ao serviço da verdade para cumprir, em todo o tempo e contingência, a favor de uma sociedade à medida do homem, da sua dignidade, da sua vocação”. Em nota de roda-pé, faz referência a vários documentos, nos quais falta o que me parecia o mais importante e que vou citar: “A Igreja não tem soluções técnicas que possa oferecer para o problema do subdesenvolvimento enquanto tal. Com efeito, ela não propõe sistemas ou programas económicos e políticos, nem manifesta preferências por uns ou por outros, contanto que a dignidade do homem seja devidamente respeitada e promovida e a ela própria seja deixado o espaço necessário para desempenhar o seu ministério no mundo” (SRS 41).

2009-09-10

CinV (20) Bem Comum (nº 7)

Esta é uma preocupação que parece ter desaparecido de todo dos comportamentos da maior parte das pessoas. O feroz individualismo, que ataca a grande maioria de nós, faz desaparecer ou tornar insignificante o próprio conceito de bem comum. Quase ninguém interioriza que o bem-estar social, a organização justa de uma sociedade passa pelo empenho decidido de todos e não só de governantes ou meia dúzia de cidadãos de boa vontade. Por isso, os nossos Bispos explicitaram que “o empenhamento de todos, sem egoísmo, é condição essencial para se obter o bem, a que todos são chamados, e a felicidade, a que aspiramos” (Carta de 2003) e Bento XVI, nesta encíclica, afirma que “amar alguém é querer o seu bem e trabalhar eficazmente por ele” não só a nível individual mas também a nível do “bem daquele nós-todos”, que inclui “indivíduos, famílias, grupos intermédios que se unem em comunidade social”.
Não é de agora a atenção da Igreja a este bem fundamental, que define os imperativos da acção política: “A comunidade política existe precisamente em função do bem comum; nele ela encontra a sua completa justificação e significado e dele deriva o seu direito natural e próprio” (GS 74). Dado que se trata de um conceito bastante vago que parece ignorar que vivemos numa sociedade onde há conflito de interesses, é necessário dar uma definição clara, como fez o Concílio, na linha de João XXIII: “O bem comum compreende o conjunto de condições da vida social que permitem tanto aos grupos como a cada membro alcançar mais plena e facilmente a sua própria perfeição” (GS 26). E o Compêndio da DSI é muito explícito: “Nenhuma forma expressiva da sociabilidade – desde a família, passando pelo grupo social intermédio, a associação, a empresa de carácter económico, a cidade, a região, o Estado, até à própria comunidade dos povos e das nações – pode iludir a questão do bem comum, que é constitutivo do seu significado e autêntica razão de ser da sua própria subsistência” (nº 165).
Portanto, trata-se de uma realidade que está subordinada à dignidade da pessoa e aos justos interesses da sociedade; que é mutável, porque deve ser determinada pelas mudanças e contextos históricos; e que tem de ser flexível, porque tem de corresponder ao desenvolvimento específico de cada sociedade.

O bem comum exige caridade e justiça, isto é, “cuidar do outro e valer-se das instituições” jurídicas, civis, políticas e culturais que estruturam, que formam a pólis, a cidade: “Ama-se tanto mais eficazmente o próximo, quanto mais se trabalha em prol de um bem comum que dê resposta também às suas necessidades reais”.
Por isso, o Papa introduz aqui o que poderia chamar-se a “caridade política”: “Este é o caminho institucional — podemos mesmo dizer político — da caridade, não menos qualificado e incisivo do que o é a caridade que vai directamente ao encontro do próximo, fora das mediações institucionais da pólis”.

A maior parte de nós está habituada a considerar a caridade como aquele cuidado e solicitude que devemos ter directamente com a pessoa, com o outro, sobretudo o mais carenciado. Mas há uma outra dimensão, que não se dirigindo directamente à pessoa, procura promover o seu bem através de uma adequada organização das diferentes estruturas e âmbitos sociais. Há quem prefira chamar-lhe promoção da justiça (que abarca, portanto, todos os âmbitos e organização sociais, numa palavra, o compromisso sócio-político) em contraponto com a diaconia da caridade (que engloba sobretudo as instituições mais dirigidas aos mais carenciados, numa palavra, a acção sócio-caritativa). Claro que não se trata de dois compartimentos estanques; na prática, contudo, implicam objectivos diferenciados bem como métodos e meios de intervenção diferentes.
Por isso, me parece muito feliz esta expressão caridade política, até porque “quando o empenho pelo bem comum é animado pela caridade, tem uma valência superior à do empenho simplesmente secular e político. Aquele, como todo o empenho pela justiça, inscreve-se no testemunho da caridade divina que, agindo no tempo, prepara o eterno. A acção do homem sobre a terra, quando é inspirada e sustentada pela caridade, contribui para a edificação daquela cidade universal de Deus que é a meta para onde caminha a história da família humana”, especialmente neste tempo de globalização.

2009-09-06

CinV (19) Caridade e Justiça

A caridade na verdade “ganha forma operativa em critérios orientadores da acção moral”, em particular a justiça e o bem comum.
A caridade e a justiça têm andado muito separadas: uma pertenceria à ordem da esmola, da partilha; outra à esfera do legal e do contratual. Nada mais falso para os cristãos. A DSI sempre defendeu uma articulação inseparável. É que sem justiça, a caridade fica abstracta e desincarnada (DM 12): “a caridade que ama e serve a pessoa nunca poderá estar dissociada da justiça” (ChL 42); mas a justiça, sem caridade, é cega e pode tornar-se desumana. Contudo, devemos entender a justiça não apenas como “dar a cada um o que é seu”, mas como “reconhecimento da dignidade e dos direitos do próximo” (JM 35), ou seja, “como ‘virtude’ para a qual todos devem ser educados e como ‘força’ moral que apoia o empenho em favorecer os direitos e os deveres de todos e de cada um, na base da dignidade pessoal do ser humano” (ChL 42). “Em toda a gama das relações entre os homens, (a justiça) deve passar, por assim dizer, por uma ‘correcção’ notável por meio daquele amor que, como proclama São Paulo, é ‘paciente’ e ‘benigno’ ou, por outras palavras, que comporta as características do amor misericordioso, tão essenciais para o Evangelho e para o Cristianismo” (DM 14).
Bento XVI, na mesma linha afirma que, por um lado, a caridade supera a justiça, mas, por outro, a caridade exige a justiça (6):
- a caridade supera a justiça, porque amar é dar, oferecer ao outro do que é «meu»;
- a caridade nunca pode existir sem a justiça, que induz a dar ao outro o que é «dele», o que lhe pertence em razão do seu ser e do seu agir: não posso «dar» ao outro do que é meu, sem antes lhe ter dado aquilo que lhe compete por justiça. Quem ama os outros com caridade é, antes de mais nada, justo para com eles;
- a justiça é «inseparável da caridade» (PP 22), é-lhe intrínseca e não mero caminho alternativo ou paralelo à caridade: a justiça é o primeiro caminho da caridade;
- a caridade exige a justiça, ou seja, o reconhecimento e o respeito dos legítimos direitos dos indivíduos e dos povos;
- “a caridade supera a justiça e completa-a com a lógica do dom e do perdão. A «cidade do homem» não se move apenas por relações feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade, misericórdia e comunhão”.

O Papa vai voltar mais vezes a esta ideia da lógica do dom em oposição à lógica utilitarista. É uma ideia forte desta encíclica – o confronto das duas lógicas, a egoísta e a solidária – e a ela voltarei.

Há, contudo, um aspecto que gostaria de destacar neste momento.
Uma das tentações em que caímos, muitas vezes inconscientemente, é querer dar ao outro por caridade aquilo que lhe é devido por justiça. Já o Concílio acautelava para este e outros perigos ao definir os critérios autênticos para a prática da caridade: “Para que este exercício da caridade seja e apareça acima de toda a suspeita, considere-se no próximo a imagem de Deus, para o qual foi criado; veja-se nele a Cristo, a quem se oferece tudo o que ao indigente se dá; atenda-se com grande delicadeza à liberdade e dignidade da pessoa que recebe o auxílio; não se deixe manchar a pureza de intenção com qualquer busca do próprio interesse ou desejo de domínio; satisfaçam-se antes de mais as exigências da justiça e não se ofereça como dom da caridade aquilo que já é devido a título de justiça; suprimam-se as causas dos males, e não apenas os seus efeitos; e de tal modo se preste a ajuda que os que a recebem se libertem a pouco e pouco da dependência alheia e se bastem a si mesmos” (AA 8).
O tema da justiça merecerá um maior atenção, mais à frente, dada a sua ligação profunda ao desenvolvimento.

2009-09-03

CinV (18) Caridade na Verdade

Apesar de toda esta argumentação (3-4), o Papa insiste nesta ideia para evitar as deficientes interpretações que a palavra caridade sofre hoje: “Estou ciente dos desvios e esvaziamento de sentido que a caridade não cessa de enfrentar com o risco, daí resultante, de ser mal entendida, de excluí-la da vida ética e, em todo o caso, de impedir a sua correcta valorização. Nos âmbitos social, jurídico, cultural, político e económico, ou seja, nos contextos mais expostos a tal perigo, não é difícil ouvir declarar a sua irrelevância para interpretar e orientar as responsabilidades morais” (2).
E justifica o título da encíclica com um paralelismo com S. Paulo: “Daqui a necessidade de conjugar a caridade com a verdade, não só na direcção assinalada por S. Paulo da «veritas in caritate» (Ef 4, 15), mas também na direcção inversa e complementar da «caritas in veritate». A verdade há-de ser procurada, encontrada e expressa na «economia» da caridade, mas esta por sua vez há-de ser compreendida, avaliada e praticada sob a luz da verdade. Deste modo teremos não apenas prestado um serviço à caridade, iluminada pela verdade, mas também contribuído para acreditar a verdade, mostrando o seu poder de autenticação e persuasão na vida social concreta” (2).

Curiosamente o Papa não faz referência a S. João, particularmente nas suas Cartas, que se aproximam muito do seu pensamento. Somos chamados a amar não só com palavras: “Meus filhinhos, não amemos com palavras nem com a língua, mas por acções e em verdade. Nisto conhecemos que somos da verdade e tranquilizaremos os nossos corações” (1Jo 3,18). Também na curtíssima 2ª Carta, dirigida “à Senhora eleita e seus filhos”, o que simbolicamente designa uma comunidade, podemos ler: “Na verdade e no amor connosco estarão também a graça, a misericórdia e a paz que nos vêm de Deus Pai e de Jesus Cristo, o Filho do Pai” (2Jo 3); “Nisto consiste o amor: em caminharmos segundo os seus mandamentos” (2Jo 6). Portanto, viver cristãmente significa, para João, viver “na verdade e no amor”.

Além disso, Bento XVI, segundo um hábito muito típico dos Papas de fazerem a sua leitura das palavras dos seus antecessores, atribui já a Paulo VI esta afirmação de que o desenvolvimento só pode acontecer com a caridade na verdade. Por isso afirma, a partir da passagem “comovido ainda pelo nosso inesquecível encontro, em Bombaim, com os nossos irmãos não-cristãos, de novo os convidamos a trabalharem, de todo o coração e com toda a sua inteligência, para que todos os filhos dos homens possam levar uma vida digna de filhos de Deus” (PP 82), que Paulo VI “deixou-nos a recomendação de caminhar pela estrada do desenvolvimento com todo o nosso coração e com toda a nossa inteligência, ou seja, com o ardor da caridade e a sapiência da verdade” (8).
O coração e a inteligência mais não são do que a manifestação das qualidades do Deus bíblico “que é conjuntamente “Ágape” e “Logos”, Caridade e Verdade, Amor e Palavra” (3).

2009-09-02

CinV (17) Caridade e verdade

Sem perceber a verdade de cada um dos outros, a nossa caridade pode tornar-se ineficaz.
Penso que vale a pena fazer uma longa citação da encíclica para apreender bem esta relação radical entre caridade e verdade:
“Pela sua estreita ligação com a verdade, a caridade pode ser reconhecida como expressão autêntica de humanidade e como elemento de importância fundamental nas relações humanas, nomeadamente de natureza pública. Só na verdade é que a caridade refulge e pode ser autenticamente vivida. A verdade é luz que dá sentido e valor à caridade. Esta luz é simultaneamente a luz da razão e a da fé, através das quais a inteligência chega à verdade natural e sobrenatural da caridade: identifica o seu significado de doação, acolhimento e comunhão. Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor numa cultura sem verdade; acaba prisioneiro das emoções e opiniões contingentes dos indivíduos, uma palavra abusada e adulterada chegando a significar o oposto do que é realmente. A verdade liberta a caridade dos estrangulamentos do emotivismo, que a despoja de conteúdos relacionais e sociais, e do fideísmo, que a priva de amplitude humana e universal. Na verdade, a caridade reflecte a dimensão simultaneamente pessoal e pública da fé no Deus bíblico, que é conjuntamente «Ágape » e «Lógos»: Caridade e Verdade, Amor e Palavra.
Porque repleta de verdade, a caridade pode ser compreendida pelo homem na sua riqueza de valores, partilhada e comunicada. Com efeito, a verdade é «logos» que cria «dia-logos» e, consequentemente, comunicação e comunhão. A verdade, fazendo sair os homens das opiniões e sensações subjectivas, permite-lhes ultrapassar determinações culturais e históricas para se encontrarem na avaliação do valor e substância das coisas. A verdade abre e une as inteligências no logos do amor: tal é o anúncio e o testemunho cristão da caridade. No actual contexto social e cultural, em que aparece generalizada a tendência de relativizar a verdade, viver a caridade na verdade leva a compreender que a adesão aos valores do cristianismo é um elemento útil e mesmo indispensável para a construção duma boa sociedade e dum verdadeiro desenvolvimento humano integral. Um cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social mas marginais. Deste modo, deixaria de haver verdadeira e propriamente lugar para Deus no mundo. Sem a verdade, a caridade acaba confinada num âmbito restrito e carecido de relações; fica excluída dos projectos e processos de construção dum desenvolvimento humano de alcance universal, no diálogo entre o saber e a realização prática” (3-4).
E conclui: “Sem verdade, cai-se numa visão empirista e céptica da vida, incapaz de se elevar acima da acção porque não está interessada em identificar os valores — às vezes nem sequer os significados — pelos quais julgá-la e orientá-la” (9).
A propósito, não resisto a citar Inês Pedrosa num artigo do Expresso (15.Ag.2009) que tinha por título “Raul. Amigo é alguém que puxa pelo melhor de nós": Raul Solnado “apanhava, num relance, a verdade de cada um”. Talvez, por isso, “toda a sua vida foi um exemplo de amor enquanto prática quotidiana, minimal, persistente”.

2009-09-01

CinV (16) Verdade nas religiões

Não sei se será abusivo aplicar aquela “definição”, que Bento XVI deu sobre a verdade logo no princípio da encíclica, às religiões. O tema é muito complexo, como possivelmente iremos ver ao longo destes comentários, mas foi o Evangelho da liturgia de domingo passado que me “empurrou” para esta reflexão.
De um lado, temos os costumes judaicos, que impõem obrigatoriamente todos aqueles ritos de purificação e pureza exterior: lavar as mãos antes de comer, lavar as roupas depois de um contacto com gente impura ou com os mortos, lavar-se depois do contacto com mulher menstruada e a lista poderia alongar-se.
Do outro, temos as palavras de Jesus, que recusa todo aquele ritualismo que ele indirectamente acusa de vazio, ao proclamar: “Escutai-me e procurai compreender. Não há nada fora do homem que ao entrar nele o possa tornar impuro (que comentários belíssimos se podem fazer a partir desta afirmação!). O que sai do homem é que o torna impuro, porque é do interior do homem que saem as más intenções: imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja, difamação, orgulho, insensatez. Todos estes vícios saem do interior do homem e são eles que o tornam impuro” (Mc7,21-23).
Comparando estas duas posições sou levado a pensar que as verdades do Judaísmo e do Cristianismo são diferentes, apesar de ambas quererem honrar e louvar o mesmo Deus. Aliás, já no Sermão da Montanha, Jesus, apesar de afirmar que não vinha revogar a Lei ou os profetas, mas dar-lhes cumprimento (levá-los à perfeição: plerósai: Mt 5,17), apresenta uma sucessão de antinomias: “Ouvistes o que foi dito… Eu, porém, digo-vos” (Mt 5, 21s;27s; 31s; 33s; 38s; 43s).

E avançando um pouco mais, terei de concluir que estas diferentes “verdades” na apresentação do verdadeiro Deus não se esgotam nestas duas tentativas de dizer o indizível, mas que se deverão estender a todas as formas, mais ou menos imperfeitas de “dizer Deus”. O que coloca a questão tão actual de se haverá uma única religião verdadeira (religio vera é uma expressão usada por Bento XVI). Porque Deus é Mistério, como tão bem explica A. Nolan:
“Deus não é um mistério, ou seja, um de entre muitos mistérios. Deus é o mistério: e não só é o mistério sagrado ou o mistério divino. Isso também o colocaria como um entre muitos mistérios, mesmo sendo um mistério especial. Em certo sentido, Deus é o carácter misterioso de todas as coisas. Tu e eu fazemos parte do mistério. “Parte” não é uma forma muito boa de descrever aquilo que pretendemos dizer neste caso. Para utilizar uma frase negativa, eu não estou fora do mistério de todas as coisas, a olhar para ele como uma espécie de observador. Pelo contrário, devo incluir-me no mistério ao qual chamamos Deus. Como dizia S. Paulo: “É nele, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos” (Act 17,28)”.
Para que ninguém fique escandalizado com esta frase e se ponha a pensar num qualquer panteísmo balofo, para lá da frase paulina, refiro o título o livro – “Jesus Hoje. Uma espiritualidade de liberdade radical” – que recomendo vivamente para quem se preocupa com uma espiritualidade cristã autêntica.
Tão preocupados andamos em saber de cor (de cor, não; de memória ou de inteligência) as palavras, os gestos de Jesus, que nos esquecemos de as sabermos do coração: a espiritualidade de Jesus, o modo como se relacionava com O Mistério que era o Pai, Abba.