divórcio ou casamento eterno?...

2011-11-24

A cidadania "enterrada"

Não podemos continuar a lamentar-nos como se nada pudéssemos fazer. Temos de nos assumir como cidadãos, protagonistas da construção possível da nossa sociedade. Dependemos de outros, pois vivemos num mundo globalizado e sem fronteiras, mas também dependemos muito de nós, do nosso querer, da nossa vontade de fazer alguma coisa de útil por uma sociedade que está cada vez mais marcada pela injustiças, pelas desigualdades, pela marginalização e, pior ainda, pelo medo de actuar.
Por isso na crónica que se segue compara a nossa atitude geral à do servo que recebeu um talento e o enterrou em vez de o pôr a render.

O TERCEIRO TALENTO
         A parábola dos talentos não é apenas um texto para crentes. É uma parábola muito actual tendo em conta a crise que vivemos. Aliás, as parábolas e a mensagem de Jesus não são apenas “religiosas”. O seu substrato fundamental é “fazer a vontade do Pai”, é apresentar e pôr em prática os valores do Reino de Deus. E basta ler os Evangelhos para perceber que a tal “vontade do Pai” é um mundo mais justo: não manda fazer igrejas de pedra, mas tornar os homens felizes; não aponta regimes políticos, mas propõe uma sociedade mais justa e mais fraterna.
                Dito isto, deixo duas ou três ideias que me são sugeridas pela parábola (Mt 25,15-29).
                Todos recebem talentos: “chamou os servos” e não “chamou alguns servos”. Todos nós, seres humanos, temos talentos, bens, dons, carismas, o que quer que seja. Já ouvi muita gente queixar-se: “Mas o que hei-de fazer? Eu não sei nada!” Como se os talentos viessem atrelados a um qualquer canudo universitário. Quanta sabedoria de vida tenho encontrado em gente sem habilitações literárias e tanta pulhice de vida em doutores encartados! Esta é a primeira lição: todos temos talentos pelo simples facto de sermos seres humanos e não por sermos doutores.
                Todos temos talentos diferentes: “um, três, cinco”. Cada um possui talentos específicos, que ninguém mais tem, porque cada um de nós é “único e irrepetível”, que o diga o nosso DNA ou as nossas vivências. O que significa que, se eu não partilhar os meus talentos, empobreço toda a humanidade, pois o meu contributo perde-se. Portanto, cada um de nós tem uma obrigação moral com a humanidade: torná-la mais rica dando-lhe o que só ele lhe pode dar.
                Se há vários talentos é porque há várias respostas para os mesmos problemas. Assim, as soluções mais adequadas só podem resultar do diálogo, sempre dialéctico mas indispensável. Este diálogo, esta capacidade de ouvir os outros, deve aprender-se, logo, na família e na escola, e depois multiplicar-se nos vários níveis e âmbitos da sociedade. Ele é o caminho para um futuro novo, que depende de nós, de todos nós. Um futuro mais justo, um desenvolvimento integral e solidário da pessoa e dos povos. Citaria um documento do Sínodo dos Bispos (“A Justiça no Mundo”), que faz 40 anos no próximo dia 30: um texto ostracizado por papas, bispos, padres e leigos que é urgente reler mesmo hoje, neste mundo tão marcado pela injustiça. Talvez o seu esquecimento tenha a ver com a sua afirmação central: “A acção pela justiça e a participação na transformação do mundo aparecem-nos claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho” (6). A luta pela justiça não é exclusiva de ninguém porque exige o contributo de todos os talentos, na sua variedade, multiplicidade e criatividade interactivas. É uma luta contínua, porque a justiça plena nunca será alcançada; é uma luta dolorosa, porque exige sofrimento, mudança de vida, pessoal, grupal e social.
                Uma terceira lição é a do comportamento dos servos, talvez a grande lição da parábola. Dois pegam nos talentos e fazem-nos render. Arriscam perdê-los, mas só assim podiam fazê-los render. Por isso, são louvados e ganharam a confiança do seu senhor. O terceiro só pensou em não perder o talento para poder devolvê-lo íntegro ao seu senhor: enterrou-o para ficar bem guardado. Tão bem guardado que nada fez com ele. Foi considerado “servo mau e preguiçoso”.
                Olhando para a nossa sociedade e para a nossa Igreja nós somos, na generalidade, o terceiro servo. Não fazemos nada. Guardamos. Conservamos. “Enterramos o nosso talento”
                Não arriscamos na procura de novas soluções para uma sociedade em constante mudança. Conservamos os nossos hábitos de vida. Cruzamos os braços em atitude fatalista, acusando culpados passados mas repetindo erros e atitudes. Não pegamos o destino nas nossas mãos, não lutamos, por entre ondas encapeladas, pelo controlo da nossa barca. Mantemos as estruturas e os sistemas injustos, deixamo-nos levar pelo “discurso único”. Viol(ent)amos a cidadania. Esperamos messias que não existem. Ignoramos as nossas forças interiores. Esquecemos que a democracia participativa exige esforço, vontade moral. Enterramos o talento, na esperança de que, metendo a cabeça e o talento na areia, a realidade se alterará por si só no melhor sentido.
                Também, na Igreja, enterramos o talento sob a capa seráfica da “conservação da fé”. Para que nada se perca e a possamos entregar ao Senhor na sua pureza original, guardamo-la tão bem, que de nada serve para transformar a nossa vida, converter os nossos corações, ajudar a construir um mundo mais próximo do Reino de Deus. Uma “fé conservada” pode ser um pecado de omissão: “enterrar” a fé para que nada se perca e mantenha a sua integridade. “Enterrar a fé” é não perceber que o que Deus quer é um mundo novo e não uma “fé conservada”, que nos faz correr o risco de não sairmos dos nossos esquemas desactualizadas, de nos ficarmos pelos nossos problemas internos, de não seduzir ninguém, de não trazer a frescura e a novidade (a “Boa Nova”) proféticas a um mundo carente de salvação e sentido de vida e futuro, perdido num nevoeiro de dúvidas, angústias e medos. Pode ser “religiosamente correcto” mas não traz nada de novo, nada de belo, nada de criativo. E pode até ser um pecado contra o Espírito Santo, que sempre “sopra onde e quando quer” e nos ungiu a todos para o imitar. Uma “fé conservada” pode tornar-se numa falta de fé, que nos faz nem quentes (inflamados e devorados pelo amor de Deus ao mundo) nem frios (disfarçados de crentes que apenas querem ganhar o céu do modo mais simples). Mas a esses o Espírito avisa: “Porque és morno – nem frio nem quente – vou vomitar-te da minha boca” (Ap 3,16).

2011-11-08

ANDAMOS TODOS GREGOS

Quando preparava a minha habitual crónica quinzenal, ainda se falava com muita insistência e barulho sobre o referendo na Grécia. Pessoalmente, como se deduz do último parágrafo da crónica que se segue, fico alguma sensação de perda já que a União Europeia e sobretudo os seus tão mesquinhos líderes certamente sofreriam um tal "coice" que pensariam finalmente se queriam sobreviver como Europa ou ficar cada um na sua quinta de estimação.
Quando acabei soube que afinal o referendo já não se realizaria. É com certeza mais politicamente correcto. Mas assim vai ficar tudo quase na mesma.

                Sempre sonhei com uma Europa a sério. Gosto de ser europeu, cidadão de uma Europa que soube colocar a dignidade humana no centro (teórico, pelo menos), acreditando na pessoa, sujeito livre e responsável pelo seu destino individual mas também pelo futuro da sociedade. Que soube criar sistemas sociais razoavelmente justos, praticar a tolerância apesar das dificuldades de integração, cada vez mais defensivas e menos pró-activas. Que mantém uma consciência, talvez difusa, da sua unidade interna fundada não na satisfação das necessidades económicas mas na vivência de valores espirituais comuns, nascidos das três fontes clássicas – Jerusalém, Atenas e Roma – a que se foram juntando afluentes que engrossaram uma Europa grávida de sabedoria e responsabilidade. Não da Europa que “deu novos mundos ao mundo”, mas duma Europa que se dê aos mundos num diálogo fraterno e respeitador, capaz de partilhar o que tem de melhor e de, com a mesma simplicidade e humildade, aceitar o melhor dos outros, na certeza de que a conjugação destas energias materiais mas sobretudo culturais torna a humanidade mais unida e mais fraterna, menos preocupada com o presente e mais com as gerações não nascidas que apenas herdarão aquilo que lhe deixarmos. Portanto, embora me sinta cidadão do mundo, gosto de ser europeu, enquanto a Europa for capaz de enriquecer o património moral, social e político da humanidade. Gosto muito de ser português e gostaria de ser português europeu, cidadão português que pertence à Europa de pleno direito sem perder as suas especificidades próprias.
                A presente crise pôs a nu uma Europa tão desfigurada que não me atrai e que rejeito. Revolta-me o predomínio dos interesses egoístas dos cidadãos incapazes de viver na solidariedade e de promover o bem comum nacional. Como me revolta igualmente o predomínio dos interesses egoístas das nações e dos seus governantes incapazes de viver na solidariedade e de promover o bem comum internacional. Este aliás foi o pecado original da formação da Europa moderna. Apesar de tantas ideias nobres dos seus fundadores, do clima de paz e desenvolvimento que foi mantido durante várias décadas, não podemos esquecer as palavras certeiras de Pio XII, no Natal de 1954: “No último decénio do pós-guerra, um grande anseio de renovação espiritual animou os espíritos: unificar fortemente a Europa, partindo das condições naturais de vida dos seus povos, em ordem a pôr termo às rivalidades tradicionais entre uns e outros e a assegurar a protecção comum da sua indepen­dência e pacífico desenvolvimento. Esta nobre ideia não era motivo de querelas e desconfiança ao mundo extra-europeu, na medida em que este olhava com bons olhos a Europa. Além disso, havia a persuasão de que a Europa facilmente encontraria em si mesma a ideia animadora da própria unidade. Mas os acontecimentos posteriores e os acordos recentes, que se espera hão-de abrir o caminho à paz fria, já não têm como base o ideal de mais vasta unificação europeia. Julgam muitos, de facto, que a alta política vai regressar ao tipo de Estado nacio­nalístico, fechado em si mesmo, centralizador das forças, irre­quieto na escolha das alianças, e portanto não menos pernicioso do que aquele que teve o seu auge no século passado.”
                É este egoísmo feroz e os interesses eleitoralistas dos governantes europeus que no actual contexto vêm aprofundar ainda mais a crise. “Todos os governantes estão desamparados e paralisados perante o dilema entre, por um lado, os imperativos dos grandes bancos e das grandes agências de notação e, por outro, o seu medo face à perda de legitimação democrática junto das suas populações frustradas” (Habermas). Mas penso que devemos ir mais fundo: a fragmentação política (cada Estado puxa, com a força que tem, para o seu lado) que se vai arrastando na Europa mas sobretudo na “aldeia global” está em “contradição com o crescimento sistémico de uma sociedade global multicultural”. E pelo meio, a agravar a situação está a disparidade entre o poder político, assente numa legitimidade democrática, e o poder económico, tentacular, autárquico, cuja legitimidade democrática ninguém legitimou. Além disso, estes dois poderes vivem em mundos diferentes, com tão bem explicou Bento XVI: “A actividade económica não pode resolver todos os problemas sociais através da simples extensão da lógica mercantil. Esta há-de ter como finalidade a prossecução do bem comum, do qual se deve ocupar também e sobretudo a comunidade política. Por isso, tenha-se presente que é causa de graves desequilíbrios separar o agir económico — ao qual competiria apenas produzir riqueza — do agir político, cuja função seria buscar a justiça através da redistribuição.” (CinV 36).
                Sarkozy tem razão quando diz "se há um problema na Europa não é de excesso de liderança, é de défice de liderança". Só que está enganado na solução pois ela não pode passar por “um líder e meio”. Nem passa por manobras dilatórias dos governantes nem pela rejeição populista do projecto europeu. Não basta irmos para a rua “indignados”. Temos de saber o que queremos. Temos que querer ser europeus, ter vontade de ser europeus, pois há que aceitar inevitáveis limitações de soberania em nome da solidariedade e da subsidiariedade. Temos que acreditar convictamente na Europa, “europeizar a Europa”, como diz J. Fischer mas num sentido mais profundo. E, sobretudo os governantes têm de deixar de “brincar à Europa”.
                Talvez o referendo grego pudesse ter sido a nossa salvação a longo prazo. Porque seria tal o coice (imagine-se só o que fez o seu anúncio) que todos seríamos forçados a trabalhar no essencial – construir a Europa a sério – e a deixar-nos de querelas inúteis, estéreis e autofágicas.