divórcio ou casamento eterno?...

2010-01-29

TERRENO SAGRADO

Alguns amigos pediram-me que reporduzisse aqui o meu último artigo para o Correio de Coimbra. Faço-o por isso com muito gosto mas também e sobretudo porque ele se insere no contexto do "Ano Europeu da Luta contra a Pobreza e a Exclusão Social"

Fui dos poucos privilegiados que participaram na inauguração de um Gabinete de Apoio a Mulheres Prostituídas e em Risco. Fiquei muito grato pelo convite, porque tenho uma especial admiração por aquelas pessoas, Religiosas, Técnicos e Voluntários, que dedicam a sua vida a mulheres, que consideramos indignas de se sentarem ao nosso lado nos bancos da igreja e muito mais indignas de comungarem o corpo imaculado do Cristo libertador. Admiro estas e estes “samaritanos” que, por amor, passam a vida a “cuidar do outro” a exemplo do Bom Pastor que vai amorosamente procurar a ovelha tresmalhada. “Ovelha tresmalhada”, digo eu (por)que me classifico no grupo dos bem-comportados, esquecendo a lição do fariseu e do publicano.
Admiro estas pessoas, que, animadas umas pela fé num Deus que é Pai de todos, outras pela consciência de que todos somos irmãos, passam, os dias, calcorreando estradas e matas, e, as noites, percorrendo as ruas da Baixa, batendo às casas de alterne e, resistindo a insinuações e equívocos, vão escutar e acolher mulheres cujas trajectórias de vida foram, de um modo geral, via-sacras sem Cireneus. Não vão para converter ninguém, até porque ninguém converte ninguém: cada um só pode converter-se a si próprio. A sua única regra é, nesta “Luta contra a Pobreza e a Exclusão”, o Amor ao “outro”, a qualquer “outro”, especialmente ao que está em maiores dificuldades. Vão dizer-lhes que são amadas, quanto mais não seja pelo Deus que as criou à sua imagem, mesmo que não o conheçam ou não o queiram conhecer.
Um parêntese para dizer que, nesta homenagem, quero envolver tantos samaritanos de outros “tresmalhados”, igualmente ignorados pela sociedade e pela comunidade cristã.
Mas, como lá foi dito, os protagonistas são aquelas mulheres ditas “perdidas”. Delas é que eu devia falar. O problema é que eu não sei falar da sua vida difícil, do sofrimento disfarçado, do prazer simulado, da violência escondida. Só sei que nunca tive a coragem de as procurar para lhes falar de uma esperança possível, de lhes anunciar que a vida não acaba na agonia da sexta-feira santa nem com a crucifixão em tantas cruzes que a humanidade foi inventando. O que me dói é que, considerando-me cristão e crendo que amo seriamente a Jesus Cristo, afinal só O amo na Sua Pessoa, mas não na Pessoa a que Ele se une intimamente; na alegria da hóstia comungada, mas não no irmão esfarrapado à porta da igreja, que olho de lado e com medo de lhe dirigir a palavra ou apertar a mão como os judeus faziam aos leprosos. E ponho-me a pensar que cristão sou eu, que fé é a minha, que caridade é que pratico. Pergunto-me se amo realmente Jesus Cristo ou se não se trata apenas de um amor platónico, um amor fácil que logo esqueço quando Ele me aparece escondido numa prostituta, num sem-abrigo, num cigano ou num drogado. E, cheio de angústia, interrogo-me se não serei um amante infiel que apenas O recordo quando me sinto em dificuldade ou Ele me aparece no aconchego da celebração litúrgica, no quentinho da meditação da sua Palavra, nalgum alienante “monte Tabor” onde “é tão bom ficarmos aqui” longe de todas as dores e sofrimentos do mundo, ou na partilha de algumas palavras escritas ou afirmadas num qualquer colóquio em que participo.
Mas basta de lamentações catárticas, porque o arrependimento sem conversão nada vale. Por isso, vou dar um pouquinho de atenção às verdadeiras protagonistas voltando àquela cerimónia tão simples e rica como profunda e amorosa. O que mais me marcou foi a Palavra de abertura, que descreve o encontro de Moisés com Deus que, do meio da sarça ardente, lhe ordena: “Tira as sandálias, porque o terreno que pisas é sagrado” (Ex 3,5). Este texto quis “apenas” lembrar que aquelas mulheres, ludibriadas por gente sem escrúpulos, violentadas na sua alma, exploradas no seu corpo, profanadas na sua dignidade de pessoa, ignoradas por todos mesmo por aqueles que as usam, são “terreno sagrado”, porque são uma das mais dramáticas versões da sarça ardente. E, se são “terreno sagrado”, devem ser tratadas verdadeiramente com “pés descalços”, com “mãos delicadas”, com a reverência e o cuidado de quem é imagem visível de Jesus pregado na cruz. Só podemos identificar estas mulheres como “terreno sagrado” se as virmos com os olhos da fé, de uma fé radical que nasce do encontro íntimo com Jesus, e se estivermos profundamente convictos de que “no início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (DCE 1).
Gostaria de terminar com duas curtas notas.
A apresentação do projecto à Segurança Social deparou-se com um obstáculo sério: as prostitutas não existem oficialmente e, portanto, não constam de nenhuma das suas várias alíneas. O que valeu para a sua aprovação foi a insistência de quem está no terreno e a compreensão, depois de um longo processo negocial, de que se tratava de um fenómeno de tal dimensão que não podia ser ignorado, mesmo utilizando uma palavra tão “inconveniente” na justificação do projecto. Tão púdicos que nós somos… mas em tão poucas coisas!
Para as comunidades eclesiais, não há pastoral mais marginalizada que a pastoral dos marginalizados. Somos comunidades que lemos e ouvimos ler a Palavra de vida eterna, celebramos com alguma dignidade a nossa fé, praticamos exercícios de caridade, sobretudo com algumas migalhas do nosso supérfluo, mas ignoramos ou desprezamos os mal-comportados, os que “não respeitam a lei de Deus”. Tão puros que nós somos… mas em tão poucas coisas!
E tudo ficaria bem e em paz não fora aquela solene advertência de Jesus: “Em verdade em verdade vos digo: os publicanos e as prostitutas preceder-vos-ão no Reino de Deus” (Mt 21,31). Será que Jesus disse mesmo tal barbaridade!?

2010-01-28

CinV (88) Espírito empresarial (nº 41)

O espírito empresarial, dada a enorme diversidade de situações organizativas, contextuais e estruturais, “deve assumir, cada vez mais, um significado polivalente”. O Papa não está, com toda a certeza, a falar dos pseudo-empresários que apenas se atribuem tal título por causa dos fundos europeus, como aconteceu com tanta gente em Portugal, onde se nota um significativo défice de cultura empresarial. A sua explicação é outra: “A longa prevalência do binómio mercado-Estado habituou-nos a pensar exclusivamente, por um lado, no empresário privado de tipo capitalista e, por outro, no director estatal. Na realidade, o espírito empresarial há-de ser entendido de modo articulado, como se depreende duma série de motivações meta-económicas”.
Penso que já muitos empresários tomaram consciência de que não conta apenas a dimensão económica e muitos sociólogos da empresa e da gestão têm chamado a atenção para outras dimensões, que o Papa classifica de meta-económicas.

Assim, o espírito empresarial deve satisfazer algumas condições:
- naturalmente, a dimensão profissional, cujas características já referi no último comentário;
- mas ainda “antes de ter significado profissional, possui um significado humano” que João Paulo II explicita muito claramente: “É a sua (do “próprio homem”) inteligência que o leva a descobrir as potencialidades produtivas da terra e as múltiplas modalidades através das quais podem ser satisfeitas as necessidades humanas. É o seu trabalho disciplinado, em colaboração solidária, que permite a criação de comunidades de trabalho cada vez mais amplas e eficientes para operar a transformação do ambiente natural e do próprio ambiente humano” (CA 32);
- a dimensão espiritual, tão ignorada, mesmo pelos cristãos, e que João Paulo II desenvolve, de maneira inovadora e brilhante, no capítulo V da sua encíclica Laborem exercens: “Dado que o trabalho na sua dimensão subjectiva é sempre uma acção pessoal, actus personae, daí se segue que é o homem todo que nele participa, com seu corpo e o seu espírito, independentemente do facto de ser um trabalho manual ou intelectual” (LE 24);
- como resumo e recapitulação, a dimensão criadora de cada pessoa, que tão poucos assumem ou porque não querem ou porque não a sentem ou porque pensam que se trata de algum dom excepcional propriedade exclusiva dos génios (cf. a parábola dos talentos ou, ainda mais clara, a doutrina sobre os carismas de S. Paulo).

Bento XVI explicita melhor esta última socorrendo-se dos seus antecessores:
- recorda parte da frase lapidar de Paulo VI de que “seja artista ou artífice, empreendedor, operário ou camponês, todo o trabalhador é um criador”, afirmação de que Paulo VI tira algumas ilações: “Nos desígnios de Deus, cada homem é chamado a desenvolver-se, porque toda a vida é vocação. É dado a todos, em germe, desde o nascimento, um conjunto de aptidões e de qualidades para as fazer render: desenvolvê-las será fruto da educação recebida do meio ambiente e do esforço pessoal, e permitirá a cada um orientar-se para o destino que lhe propõe o Criador. Dotado de inteligência e de liberdade, é cada um responsável tanto pelo seu crescimento como pela sua salvação. Ajudado, por vezes constrangido, por aqueles que o educam e rodeiam, cada um, sejam quais forem as influências que sobre ele se exerçam, permanece o artífice principal do seu êxito ou do seu fracasso: apenas com o esforço da inteligência e da vontade, pode cada homem crescer em humanidade, valer mais, ser mais” (PP 15);
- avisa que esta capacidade criadora não só não deve ser ignorada, mas ,antes, estimada, “pelo que é bom oferecer a cada trabalhador a possibilidade de prestar a própria contribuição, de tal modo que ele mesmo «saiba trabalhar «por conta própria»”, como explicava João Paulo II: “Entretanto, é necessário frisar bem, desde já, que em geral o homem que trabalha deseja não só receber a remuneração devida pelo seu trabalho, mas deseja também que seja tomada em consideração, no mesmo processo de produção, a possibilidade de que ele, ao trabalhar, ainda que seja numa propriedade comum, esteja consciente de trabalhar «por sua conta»” (LE 15).

Bento XVI poderia ainda acrescentar uma consequência social grave referida pelo seu antecessor: quando não se aproveita ao máximo esta capacidade criadora, a coesão social fica em perigo e pode perder a sua legitimidade ética: “A obrigação de ganhar o pão com o suor do próprio rosto supõe, ao mesmo tempo, um direito. Uma sociedade onde este direito seja sistematicamente negado, onde as medidas de política económica não consintam aos trabalhadores alcançarem níveis satisfatórios de ocupação, não pode conseguir nem a sua legitimação ética nem a paz social” (CA 43).

2010-01-27

CinV (87) Investimento e Empresário (nº 40)

Há neste número uma frase que merece um maior aprofundamento, não da parte do Papa, porque ele remete para a doutrina já existente, mas da minha parte, tentando resumir o que já fora dito antes e faz parte da DSI: “João Paulo II advertia que investir tem sempre um significado moral, para além de económico. Tudo isto — há que reafirmá-lo — é válido também hoje, não obstante o mercado dos capitais tenha sido muito liberalizado e as mentalidades tecnológicas modernas possam induzir a pensar que investir seja apenas um facto técnico, e não humano e ético”.

Investimento
Do próprio ponto de vista humano há uma exigência prévia: a existência de um mínimo de estabilidade económica e política; a DSI acrescenta um outro: o respeito pelo princípio do destino universal dos bens.
Tendo estas exigências como pano de fundo, o Concílio pronunciou-se nestes termos (GS 70):
- que os investimentos têm por objectivos: a criação de postos de trabalho e a satisfação das necessidades das gerações presentes e futuras;
- que “todos os que decidem sobre investimentos e a organização da vida económica - indivíduos, grupos ou poderes públicos - devem
- ter presentes estes fins;
- reconhecer a grave obrigação que têm de vigiar para que asejam assegurados os requisitos necessários a uma vida digna dos indivíduos e de toda a comunidade;
- prever de modo empenhado e dentro do possível a evolução futura;
- garantir um são equilíbrio entre as necessidades do consumo actual, individual e colectivo, e as exigências de investimentos para a geração futura;
-ter em especial atenção as necessidades urgentes das nações ou regiões economicamente menos desenvolvidas.
João Paulo II, dedicou-lhe também particular atenção (CA 36):
- o contexto do investimento pertence ao plano moral e cultural e não meramente do lucro: “A opção de investir num lugar em vez de outro, neste sector produtivo e não naquele, é sempre uma escolha moral e cultural”;
- é particularmente significativa a “sua” definição de investir, que se fosse levada a sério por todos originaria uma revolução quase copernicana no modo como muitos olham para os seus recursos: “oferecer a um povo a ocasião de valorizar o próprio trabalho”;
- alem disso, deve ser “determinado também por uma atitude de solidariedade e pela confiança na Providência divina, que revela a qualidade humana daquele que decide”;
- finalmente, sendo uma atitude com graves repercussões no presente e no futuro, tem de respeitar o ambiente e os recursos naturais: usando, mas não abusando, deles; tomando consciência de que são limitados; evitando a degradação do ambiente e da qualidade de vida (SRS 34).

Empresário
Daqui decorre que não é empresário quem quer, mas quem satisfaz a determinadas qualidades.
Umas são qualidades humanas (CA 32):
- a nível pessoal: “a diligência, a laboriosidade, a prudência em assumir riscos razoáveis, a confiança e a fidelidade nas relações interpessoais, a coragem na execução de decisões difíceis e dolorosas mas necessárias”;
- a nível relacional: a capacidade de coordenar “um trabalho disciplinado, em colaboração solidária” e a de transformar o ambiente natural e até o humano;
- a nível social: o Concílio lembra a obrigação grave de se preocupar em prover as necessidades de uma vida digna não só às pessoas mas a toda a comunidade e em prever o futuro e estabelecer um justo equilíbrio entre as necessidades presentes e as das gerações futuras, de um modo especial as mais urgentes das nações e das regiões subdesenvolvidas GS 70).
Para além disso, o empresário católico deverá também, além de fazer do investimento uma opção moral e cultural, assumir uma atitude de solidariedade e acreditar e ter confiança na Providência divina (CA 36).

2010-01-25

Teófilo

O Evangelho do domingo de hoje é uma manta de dois retalhos: a primeira parte é tirada do início do Evangelho de Lucas (1,1-4) e a segunda parte do início da vida pública de Jesus, no momento em que ele define a sua missão, na sinagoga de Nazaré (4, 14-21).

A segunda parte é sempre muito comentada pois na identificação da missão de Jesus estão os sinais e os critérios de entrada no Reino de Deus: anunciar a Boa Nova aos pobres, proclamar a libertação aos cativos, dar vista aos cegos, restituir a liberdade aos oprimidos e proclamar uma “ano” de graça do Senhor.
Estão aqui os sinais do Reino de Deus, porque foram estes “sinais” que Jesus indicou aos discípulos de João Baptista, que estava preso, quando lhe vieram perguntar se era Ele “o que há-de de vir ou deviam esperar outro” (Mt 11,2-5).
Estão aqui os critérios do Reino de Deus, porque é por eles que seremos, todos os povos, julgados para saber da nossa disponibilidade para ocupar um lugar de felicidade eterna (Mt 25,31-46).
Esta é portanto um das passagens mais lida e mais comentada, mas nem por isso a que mais “comove” os cristãos, que continuam, de um modo geral, mais preocupados com os seus projectos humanos do que com a sua missão de cristãos, discípulos de Cristo.

Mas, hoje, o que mais me chamou a atenção foi Lucas dizer que escrevia estas coisas “para ti, ilustre Teófilo, para que tenhas conhecimento seguro do que te foi ensinado”.
E reparei nesta passagem por causa do “ilustre Teófilo”. Teófilo seria certamente alguma pessoa importante ou algum amigo de Lucas. Mas a coincidência de se chamar Teófilo, isto é, “amigo de Deus”, trouxe-me ao pensamento que talvez esse nome não tenha sido escolhido ao acaso por Lucas.
Bem sei que nada percebo de exegese, mas a minha leitura espiritual anima-me a pensar que Lucas quis dizer que tudo o que vai escrever é para fundamentar a fé de todos os que são amigos de Deus. E todos os amigos de Deus são Teófilos.
Eu sinto-me, embora indignamente, Teófilo e estou certo que também tu, leitor que acreditas em Deus, és Teófilo

2010-01-23

A Força do Homem

O terramoto no Haiti matou dezenas, centenas de milhares de pessoas, deixou muitos milhares de órfãos a juntar aos já existentes 200 mil.
É muita brutalidade junta, embora aconteça "só" de vez em quando.

Mas nós, os humanos, todos os dias e não só de vez em quanso, matamos milhares de pessoas não só por causa das guerras, planeadas e executadas por seres humanos e permitidas, por acção ou omissão, por outros seres humanos, mas ainda matamos mais à fome, tão fácil de resolver se nós quiséssemos, com as doenças, tão fáceis de debelar se nós quiséssemos, com o tráfico de pessoas para a prostituição ou para doação de órgãos, mais difícil de resolver, mas que poderia ser muito minimizado se nós quiséssemos.

Afinal a força do Homem é muito mais violenta do que a da Natureza, sobretudo porque acontece a toda a hora, ou para sermos mais excatos, a cada segundo, todos os segundos de cada minuto de cada hora de cada dia em longo de todo o ano, de todos os anos.

Seria tão bom que nós pensássemos e agíssemos coerentemente a respeito dos problemas da fome, da miséria, da marginalização neste Ano de Luta contra a Pobreza e a Exclusão Social. Bastava juntar a nossa força, maior que a da Natureza, para salvar milhares de vida e dar a dignidade e qualidade de vida mínimas a tantos que nunca serão pessoas em plenitude, exclusivamente por nossa culpa.

Somos bem mais brutos que a Natureza e parece que infelizmente bem se aplicam a nós as palavras de Camões:
“A nada disto o bruto se movia” (Os Lusíadas V,28).

2010-01-21

CinV (86) Empresa, Aspectos positivos (40)

É certo que o Papa destaca também de alguns aspectos positivos, que parecem surgir aqui e ali. Alguns desses sinais resultam da consciência que se vai formando sobre alguns dos riscos atrás referidos:
1) Uma generalizada e crescente consciência social: “Mas é verdade também que está a aumentar a consciência sobre a necessidade de uma mais ampla «responsabilidade social» da empresa”;
2) Gestores mais preocupados com as pessoas e os locais onde a empresa está instalada: “Hoje, há também muitos gerentes que, através de análises clarividentes, se dão conta cada vez mais dos profundos laços que a sua empresa tem com o território ou territórios, onde opera”;
3) Uma adequada transferência de capitais:
- “Não há motivo para negar que um certo capital possa ser ocasião de bem, se investido no estrangeiro antes que na pátria; mas devem-se ressalvar os vínculos de justiça, tendo em conta também o modo como aquele capital se formou e os danos que causará às pessoas o seu não investimento nos lugares onde o mesmo foi gerado”;
- desde que seja evitada a especulação, "cedendo à tentação de procurar apenas o lucro a breve prazo sem cuidar igualmente da sustentabilidade da empresa a longo prazo, do seu serviço concreto à economia real e de uma adequada e oportuna promoção de iniciativas económicas também nos países necessitados de desenvolvimento”;
4) A deslocalização, cuja condenação sem mais por sindicatos e trabalhadores pode significar uma falta de solidariedade com outros trabalhadores, às vezes, em situações bem mais precárias: “Também não há motivo para negar que a deslocalização, quando compreende investimentos e formação, possa fazer bem às populações do país que a acolhe — o trabalho e o conhecimento técnico são uma necessidade universal”.

Bento XVI até aqui parece colocar-se na situação de observador procurando discernir também os sinais de esperança, com especial referência à “responsabilidade social” que em muitas empresas e que muitos empresários já vão dando mostras. De qualquer modo, alerta para o facto de nem sempre os motivos serem necessariamente os mais adequados a bem das pessoas e da sociedade: “Apesar de os parâmetros éticos que guiam actualmente o debate sobre a responsabilidade social da empresa não serem, segundo a perspectiva da doutrina social da Igreja, todos aceitáveis, é um facto que se vai difundindo cada vez mais a convicção de que a gestão da empresa não pode ter em conta unicamente os interesses dos proprietários da mesma, mas deve preocupar-se também com as outras diversas categorias de sujeitos que contribuem para a vida da empresa: os trabalhadores, os clientes, os fornecedores dos vários factores de produção, a comunidade de referência”.

Embora no nº seguinte avance algumas considerações sobre a cultura empresarial, esperava-se mais numa área demasiado pobre da DSI. Por exeemplo, como pode uma empresa continuar a ser “uma comunidade de pessoas” quando está “fragmentada” por todo o mundo. Ou, como pergunta Acácio Catarino, “a sua essência está na relação entre o empregador e os trabalhadores, ou na luta ancestral pela subsistência, pela realização pessoal e pelo bem comum? Como conciliar a sua responsabilidade social com o risco de inviabilidade económica?”.

Tem havido várias tentativas de repensar a empresa. Faço apenas duas referências. O facto de já terem alguns anos revela que ou eu não tenho acompanhado o que de bom se vem fazendo neste campo ou (espero que não!) que pouco se tem avançado:
- “uma empresa inteligente”, capaz de mobilizar a capacidade intelectual e criativa da pessoa, de aceitar o pluralismo e encorajar a diversidade de iniciativas individuais e, especialmente, de apostar no desenvolvimento pessoal de cada um dos seus membros (H. Landier);
- uma “empresa virtual”, capaz de adaptar-se a fenómenos como o teletrabalho, ou as redes profissionais e de aproveitar as potencialidades do homo digitalis, do “homem-terminal” numa sociedade ramificada e ligada na qual a fronteira entre a vida privada e a vida profissional se torna cada vez mais fluida (D. Ettighoffer).

2010-01-20

Força da Natureza

Ao olhar os terríveis efeitos do terramoto no Haiti muitos terão pensado nessa força bruta indomável que é a Natureza quando “perde as estribeiras”.
Esta ideia tem de positivo o facto de percebermos que ainda não dominamos a energia do nosso planeta (civilização de tipo I) e que dessa nossa limitação devemos tirar as devidas lições.
E as primeiras perguntas têm a ver com a prevenção. Sabemos que muitos sismólogos procuram formas de detectar atempadamente a erupção de um terramoto. Mas falo mais dos cuidados que deve haver na construção das nossas casa, mas também (ou sobretudo!?), das infraestruturas como hospitais, edifícios de bombeiros, centrais de comunicações, depósitos de água, estradas, pontes. Sobre isto até “basta” legislar e fiscalizar com rigor. E esta é uma das razões porque os sismos fazem muito mais estragos e vítimas em países pouco desenvolvidos do que nos desenvolvidos.
Mas simultaneamente há um trabalho mais difícil, que é educar as pessoas a saber o que fazer nestas circunstâncias, ajudá-las a manter a calma e serem capazes, cada um de nós, de assumir a solidariedade de vizinhança, a primeira e possivelmente única forma de socorro nas primeiras horas.

De qualquer modo, há coisas que não entendo. Todos, pelo menos os governantes sabem que vai haver sismos, embora não saibam quando. De qualquer modo, a nível mundial há zonas muito mais propícias a estes acontecimentos e não é difícil prever que de tempos a tempos, em intervalos relativamente curtos, num qualquer lugar do Terra haverá um sismo. Assim sendo, pergunto-me por que não há, sob coordenação da ONU, uma série de hospitais de campanha bem equipados, um conjunto de corpos de bombeiros e de elementos da protecção civil, serviços militares ou paramilitares para garantirem uma primeira segurança mínima, camiões e combustível com capacidade de resposta rápida em vários locais do planeta, por exemplo oferecidos pelos países que agora mandaram uma ajuda que se foi acumulando no aeroporto do Haiti?
E depois por que não se aplica a estes casos as logísticas e tácticas militares que desbravam terrenos difíceis, chegam a qualquer lado, não só com soldados, mas com alimentação, munições, armas pesadas, combustível, etc? O que se gasta em cada situação destas dava para preparar esta rede de pontos de apoio.

Finalmente não consigo imaginar a angústia da impotência de tantos voluntários que pass(ar)am dias no aeroporto de Port-au-Prince não só porque é difícil chegar aos locais mais atingidos mas sobretudo porque não há quem lhes garantae a segurança.

A Natureza tem muita força, mas os humanos muitas vezes tudo fazem para a potenciar em vez de a contrariar.

2010-01-18

CinV (85) Empresa, Alguns riscos (40)

Devo dizer que comecei a ler este nº da encíclica com especial expectativa. É que este té um dos temas menos bem tratados na DSI, sobretudo considerando, por uma lado, a empresa “deslocalizada”, isto é, que tem os seus componentes distribuídos por várias regiões ou países e, por outro, todas as mudanças profundas introduzidas pela globalização. É urgente, pois, que a Igreja actualize a sua doutrina sobre a empresa. Aliás, Bento XVI é o primeiro a reconhecê-lo: “As actuais dinâmicas económicas internacionais, caracterizadas por graves desvios e disfunções, requerem profundas mudanças inclusivamente no modo de conceber a empresa.” E esta reflexão não se limita a uma mera análise estatística ou uma leitura superficial da realidade: “Antigas modalidades da vida empresarial declinam, mas outras prometedoras se esboçam no horizonte”.

João Paulo II apresentava “a empresa como comunidade de homens que, de diverso modo, procuram a satisfação das suas necessidades fundamentais e constituem um grupo especial ao serviço de toda a sociedade. O lucro é um regulador da vida da empresa, mas não o único; a ele se deve associar a consideração de outros factores humanos e morais que, a longo prazo, são igualmente essenciais para a vida da empresa” (CA 35). E num discurso em Barcelona (1982) definiu a “concepção cristã” de empresa: “Ao convidar-vos a reflectir sobre a concepção cristã da empresa, quero ante de mais recordar-vos que, para lá dos seus aspectos técnicos e económicos, há um outro mais profundo: o da sua dimensão moral. Economia e técnica, com efeito, não têm sentido se não são referidas ao homem, a quem devem servir. De facto, o trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho; por conseguinte, também a empresa é para o homem e não o homem para a empresa”.
Bastará olhar para as datas deste Discurso ou da encíclica Centesimus annus (1991) para ver que passaram duas décadas, décadas de transformações radicais no campo da economia e concretamente da empresa.

Bento XVI, na primeira parte deste número, enuncia uma série de factos novos, que chama “riscos”, nomeadamente:
1) Alguma potencial falta de transparência na prestação de contas, já que esta é feita “quase exclusivamente a quem nela investe, acabando assim por reduzir a sua valência social”;
2) A inexistência de um responsável estável pelo curto e longo prazo da empresa: “Devido ao seu crescimento de dimensão e à necessidade de capitais sempre maiores, são cada vez menos as empresas lideradas por um empresário estável que se sinta responsável, não apenas a curto mas a longo prazo da vida e dos resultados da sua empresa”;
3) A fragmentação dos vários componentes da empresa, já que “diminui o número das que dependem de um único território”;
4) A extraordinária mobilidade de capitais para o estrangeiro, porque
- por um lado, resulta do facto de “o mercado internacional dos capitais oferecer, hoje, uma grande liberdade de acção” e, portanto, ser difícil de regulamentar e de controlar;
- por outro, a preocupação pelas “exclusivas vantagens pessoais” podem causar sérios danos às nações que esses capitais deveriam beneficiar;
5) A preocupação quase exclusiva pelos accionistas:
- seja devido “à chamada deslocalização da actividade produtiva que pode atenuar no empresário o sentido da responsabilidade para com os interessados, como os trabalhadores, os fornecedores, os consumidores, o ambiente natural e a sociedade circundante mais ampla, em benefício dos accionistas, que não estão ligados a um espaço específico”;
- seja devida a uma nova classe de gestores: “Nos últimos anos, notou-se o crescimento duma classe cosmopolita de gerentes, que muitas vezes respondem só às indicações dos accionistas da empresa constituídos geralmente por fundos anónimos que estabelecem de facto as suas remunerações”;
6) A deslocalização, quando não respeita certas exigências: “Não é lícito deslocalizar somente para gozar de especiais condições de favor ou, pior ainda, para exploração, sem prestar uma verdadeira contribuição à sociedade local para o nascimento de um robusto sistema produtivo e social, factor imprescindível para um desenvolvimento estável”;
7) A especulação financeira, preocupada apenas com “o lucro a breve prazo“.

2010-01-15

CinV (84) Mercado da gratuidade (nº 39)

Bento XVI, num discurso à Fundação Centesimus Annus (15.Jun.2009), começou por convidar os participantes a repensar os modelos económicos predominantes: “A crise financeira e económica que atingiu os países industrializados, os emergentes e os que estão em vias de desenvolvimento demonstra que há que repensar alguns paradigmas económico-financeiros dominantes nos últimos anos”. E terminou fazendo votos para que “elaborem uma visão da economia moderna respeitadora das necessidades e dos direitos dos frágeis”
Pelo meio lembrou a encíclica Centesimus annus, segundo a qual, a economia de mercado, entendida como “um sistema económico que reconhece o papel fundamental e positivo da empresa, do mercado, da propriedade privada e da consequente responsabilidade pelos meios de produção, da livre criatividade humana no setor da economia” (42), pode ser reconhecida como um caminho de progresso económico e civil apenas se estiver orientada para o bem comum (43). Esta visão, no entanto, deve estar acompanhada também por outra reflexão, segundo a qual a liberdade no sector da economia deve ser enquadrada “num sólido contexto jurídico que a coloque ao serviço da liberdade humana integral e a considere como uma particular dimensão desta liberdade cujo centro seja ético e religioso” (42). Porque “tal como a pessoa se realiza plenamente na livre doação de si própria, assim a propriedade se justifica moralmente na criação, em moldes e tempos devidos, de ocasiões de trabalho e crescimento humano para todos” (n. 43).
Nesta encíclica, Bento XVI vai mais longe ao acusar o “binómio exclusivo mercado-Estado”, que acontece sempre que “a lógica do mercado e a do Estado se põem de acordo entre si para continuar no monopólio dos respectivos âmbitos de influência”, de corroer gravemente a coesão social, porque
- "definha a solidariedade nas relações entre os cidadãos, a participação e a adesão, o serviço gratuito”;
- e proliferam outras realidades bem diferentes: as “do «dar para ter», próprio da lógica da transacção, e do «dar por dever», próprio da lógica dos comportamentos públicos impostos por lei do Estado”.
A solução para garantir a coesão social está “nas formas económicas solidárias, que encontram o seu melhor terreno na sociedade civil sem contudo se reduzirem a ela”. Embora, como referi atrás, o Papa não utilize a expressão “economia solidária”, não deixa de considerar as variadas “formas económicas solidárias” como um caminho indispensável para uma sociedade de rosto mais humano.

João Paulo II já falara do cidadão entalado entre o mercado e o Estado: “O indivíduo é hoje muitas vezes sufocado entre os dois pólos: o Estado e o mercado. Às vezes dá a impressão de que ele existe apenas como produtor e consumidor de mercadorias ou então como objecto da administração do Estado, esquecendo-se de que a convivência entre os homens não se reduz ao mercado nem ao Estado, já que a pessoa possui em si mesma um valor singular, ao qual devem servir o Estado e o mercado” (CA 49).
Bento XVI volta aqui à contraposição entre a lógica mercantilista e a lógica da gratuidade, mas com nova variante. Sem excluir o “dar para ter” da lógica da transacção e o “dar por dever”, imposta pela lei do Estado, numa refrência implícita ao Estado Social, privilegia a lógica da participação desinteressada, do dom e da gratuidade, reconhecendo, no entanto, a sua dificuldade de implementação: “O mercado da gratuidade não existe nem os comportamentos gratuitos podem ser estabelecidos por lei . Contudo, tanto o mercado como a política precisam de pessoas abertas ao dom recíproco”.

Só assim será possível vencer a batalha do subdesenvolvimento: “A vitória sobre o subdesenvolvimento exige que se actue não só sobre a melhoria das transacções fundadas sobre o intercâmbio, nem apenas sobre as transferências das estruturas assistenciais de natureza pública, mas sobretudo sobre a progressiva abertura, em contexto mundial, para formas de actividade económica caracterizadas por quotas de gratuidade e de comunhão".

2010-01-13

CinV (83) Economia de mercado: Contributo da DSI (nº 39)

Bento XVI compara mais uma vez as condições e as propostas da Populorum Progressio com as circunstâncias actuais. Convém não esquecer que entretanto se passaram quatro décadas. Dada a crescente aceleração da História, as mudanças sofridas, entretanto, foram radicais e complexas.

No seu tempo, Paulo VI fizera vários apelos:

- a configuração de “um modelo de economia de mercado capaz de incluir, pelo menos intencionalmente, todos os povos e não apenas aqueles adequadamente habilitados”;

- o empenhamento “na promoção de um mundo mais humano para todos”, que esteja enraizado, como dizia Paulo VI, “na fraternidade humana e sobrenatural, apresentando-se sob um tríplice aspecto: o do dever de solidariedade, ou seja, o auxílio que as nações ricas devem prestar aos países em via de desenvolvimento; o do dever de justiça social, isto é, a rectificação das relações comerciais defeituosas, entre povos fortes e povos fracos; o do dever de caridade universal, quer dizer, a promoção, para todos, de um mundo mais humano e onde todos tenham qualquer coisa a dar e a receber, sem que o progresso de uns seja obstáculo ao desenvolvimento dos outros” (PP 44);

- o alargamento ao nível planetário de uma ideia permanente da DSI, a “de que a ordem civil, para subsistir, tinha necessidade também da intervenção distributiva do Estado”.

Hoje, devido a tantas mudanças tão complexas e estruturantes, esta perspectiva de PauloVI:
- por um lado, está a “ser posta em crise pelos processos de abertura dos mercados e das sociedades”;
- por outro, “revela-se incompleta para satisfazer as exigências duma economia plenamente humana”.

Estas afirmações do Papa dão conta de uma das características essenciais da DSI, que poderíamos sintetizar numa expressão muito conhecida, “evolução na continuidade”, como explica João Paulo II, que escreveu a encíclica Sollicitudo rei socialis com dois objectivos: prestar homenagem à encíclica Populorum Progressio e "reafirmar a continuidade da doutrina social da Igreja juntamente com a sua renovação constante. Com efeito, continuidade e renovação são prova do valor perene do ensino da Igreja" (cf SRS 3). Há continuidade no seu ensinamento porque a sua base fundante está nas palavras perenes do Evangelho. Mas há também uma evolução, de modo a traduzir para os dias de hoje essa mesma mensagem evangélica e a poder responder, de modo adequado a cada época, aos constantes desafios que vão surgindo.
Por isso mesmo, a DSI continua a ser actual e com ela a Igreja dá o seu contributo específico: “Comungando as melhores aspirações dos homens e sofrendo por os ver insatisfeitos, a Igreja deseja ajudá-los a alcançar o seu desenvolvimento pleno; e, por isso, propõe-lhes o que ela possui como próprio: uma visão global do homem e da humanidade” (PP 13).
Esta é a sua colaboração inestimável para apontar caminhos que, levados à prática, podem ajudar a evitar situações e crises que ponham em causa a dignidade das pessoas e dos povos: “Aquilo que a doutrina social da Igreja, partindo da sua visão do homem e da sociedade, sempre defendeu, é hoje requerido também pelas dinâmicas características da globalização”.

Mas a grande resposta à economia de mercado é o mercado da gratuidade.

2010-01-12

CinV (82) Civilização da Economia (nº 38)

Na parte final deste número, aparecem dois conceitos novos, que naturalmente devem ser enquadrados por tudo o que foi dito, sobretudo neste capítulo III.

A civilização da economia é uma expressão muito forte, sobretudo pela palavra “civilização. E, embora o Papa, nos próximos números, retome a reflexão sobre a economia, não podemos deixar de ter em atenção a primeira palavra “civilização” desta expressão que o Papa entendeu sublinhar com um itálico. E se há discussão sobre o significado de civilização ou as diferenças entre cultura e civilização, o que é certo é que está sempre profundamente implicado um conjunto de critérios e normas éticas mais ou menos universais que regem a organização de várias sociedades e durante um tempo histórico significativo.
Por isso, o facto de o Papa falar de “civilização da economia” não pode passar despercebida. Efectivamente as sociedades foram e continuam a organizar-se em torno de algumas instituições básicas, que vão evoluindo e alternando funções, mas que estão sempre presentes e das quais destacaria como fundamentais, sem as querer sequenciar de forma lógica:
- a família, sede da reprodução e primeiro espaço de humanização e socialização;
- a economia, que, nas suas formas mais simples ou mais elaboradas, procura responder à satisfação das necessidades básicas e cria ou estimula crescentemente novas necessidades que de artificiais se tornam em indispensáveis correndo o risco de promover o “homem unidimensional” (Marcuse);
- a escola, que foi adquirindo crescente papel na socialização e na transmissão de conhecimentos, um conjunto de “produtos” que devem ser transmitidos de geração em geração;
- a religião, que vem responder, por um lado, à dimensão transcendental de todo o ser humano, que cada um interpretará de modo diferente (“Quem sou eu? Donde vim? Para onde vou?), e, por outro, a uma divisão maniqueísta popular entre as dimensões vida: a “profana” do dia a dia e a “sagrada” dos momentos especiais;
- o “jogo” (homo ludens), enquanto dimensão lúdica, que parece “dar sal” à vida, às vezes, de forma “irracional” e “ilógica”.
Pareceu-me importante fazer esta introdução, apesar de certamente ser conhecida pelos leitores, para mostrar a novidade significativa da expressão do Papa. O seu conteúdo, que tem sido definido ao longo deste capítulo e implica as lógicas “novas” do dom, da gratuidade, da fraternidade, pode ser sintetizado numa passagem já citada: “Nas relações comerciais, o princípio de gratuidade e a lógica do dom como expressão da fraternidade podem e devem encontrar lugar dentro da actividade económica normal” (36). Podemos, pois, afirmar que este conjunto de valores define a “civilização da economia”: “Neste caso, caridade na verdade significa que é preciso dar forma e organização àquelas iniciativas económicas que, embora sem negar o lucro, pretendam ir mais além da lógica da troca de equivalentes e do lucro como fim em si mesmo”.

A outra ideia é a da hibridização, que surge da “necessidade de um mercado” que seja um espaço:
- de igualdade de oportunidades: “ no qual possam operar, livremente e em condições de igual oportunidade, empresas que persigam fins institucionais diversos”;
- de multiplicidade de experiências: “Ao lado da empresa privada orientada para o lucro e dos vários tipos de empresa pública, devem poder-se radicar e exprimir as organizações produtivas que perseguem fins mutualistas e sociais”;
- de competição leal e de “recíproco confronto”.
Certamente que olhando ao contexto, poderíamos alargar este conceito. Assim teríamos uma hibridização entre a caridade e a verdade, a caridade e a justiça, a caridade e o bem comum, a caridade interpessoal (“as micro-relações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo”: nº 2) e a caridade institucional, a produção e a redistribuição, a economia e a política, o mercado, o Estado e a sociedade civil, a lógica do contrato e a lógica do dom, a lógica mercantilista e a lógica da gratuidade, tudo isto tendo como cimento a fraternidade.

2010-01-11

CinV (81) Economia da Gratuidade (nº 38)

Particularmente hoje, que vivemos num momento forte da globalização, em que as relações não têm fronteiras, em que todos podemos saber o que se passa em qualquer ponto do mundo e podemos falar, comprar e partilhar tudo o que o espírito e a técnica humanos produzem, há aspectos novos que podemos e devemos explorar a caminho de um mundo mais humano. Sobretudo, sabendo que o caminho se faz caminhando.

A gratuidade é uma dessas “novidades” que tem de assumir uma dimensão ainda maior num mundo onde nada parece gratuito e onde todos querem “cobrar” alguma coisa pelo que fazem pelos outros ou para o bem comum. Perdemos este dom sublime do ser-gratuito como se sempre esperássemos uma recompensa, explícita ou disfarçada. É preciso recuperá-lo, onde já existiu, e fomentá-lo em todos os domínios, especialmente no âmbito económico, onde o culto do dinheiro é mais declarado: “Na época da globalização, a actividade económica não pode prescindir da gratuidade, que difunde e alimenta a solidariedade e a responsabilidade pela justiça e o bem comum em seus diversos sujeitos e actores”.

Bento XVI recorda o seu antecessor para destacar “a necessidade de um sistema com três sujeitos: o mercado, o Estado e a sociedade civil (CA 35). Ele tinha identificado na sociedade civil o âmbito mais apropriado para uma economia da gratuidade e da fraternidade, mas sem pretender negá-la nos outros dois âmbitos”.
Referir três agentes é reconhecer âmbitos diferentes na sua actuação, mas sempre marcados pela gratuidade e a fraternidade:
- o mercado mais virado para as actividades produtivas e onde o lucro desempenha um papel estimulante, mas demasiadas vezes alienador da dignidade humana dos trabalhadores;
- o Estado, a quem compete primariamente a redistribuição, tendo sempre como critério supremo o bem comum;
- a sociedade civil, mais virada, para um alargado leque de actividades e acções solidárias, no respeito pela subsidiariedade, por um lado, e, pela vizinhança de proximidade, por outro.
Apesar desta especificidade, estes três agentes não podem estar em concorrência, mas, antes, em complementaridade, pois o seu fim último é sempre o serviço da pessoa e o bem comum: “Hoje podemos dizer que a vida económica deve ser entendida como uma realidade com várias dimensões: em todas deve estar presente, embora em medida diversa e com modalidades específicas, o aspecto da reciprocidade fraterna”. E mais uma vez, a fraternidade é invocada para ocupar um lugar central, sem ser necessário fundamentá-la de novo, pois o ponto de partida, sempre presente, é que constituímos uma única família.

Também a solidariedade é associada a esta reflexão, num entrançado onde se cruza com a justiça e com a gratuidade. Só sobre esta textura se pode realizar a democracia económica. É muito discutido, mas de modo pouco conclusivo, ou melhor, concretizável, que os países ditos democráticos, para lá de demasiadas vezes a sua democracia (política) ser apenas formal, ainda estarem longe da democracia económica, como se a democracia política assegurasse, por si só, todos os direitos fundamentais. É certo que “nem só de pão vive o homem”, mas “sem pão” nenhum dos direitos políticos pode ser assegurado.
Daí ser importante esta referência explícita à democracia económica: “Trata-se, em última análise, de uma forma concreta e profunda de democracia económica. A solidariedade consiste primariamente em que todos se sintam responsáveis por todos e, por conseguinte, não pode ser delegada só no Estado. Se, no passado, era possível pensar que havia necessidade primeiro de procurar a justiça e que a gratuidade intervinha depois como um complemento, hoje é preciso afirmar que, sem a gratuidade, não se consegue sequer realizar a justiça”.

2010-01-09

CinV (80) “Economia Solidária” (nº 37)

Na encíclica não aparecem as expressóes “economia social”, “economia de comunhão” nem sequer “economia solidária”.
Possivelmente, o Papa não quis utilizar conceitos ainda em maturação e cujos âmbitos não estão bem definidos, pois trata-se de uma realidade multifacetada e que pode ser interpretada de modo redutor, isto é, atendendo apenas a algumas das suas reais facetas.
É certo que a falência de várias formas institucionais de “segurança”, as dificuldades letais do “Estado de bem-estar”, os sucessivos avatares do capitalismo, qual fénix renascendo da suas cinzas “obrigaram” ao aparecimento de outras formas de “solidariedade”, num fenómeno que poderia classificar-se de “hibridização”, conceito que o Papa também utiliza um pouco mais à frente (38), mas preparando-o desde já: “É preciso que, no mercado, se abram espaços para actividades económicas realizadas por sujeitos que livremente escolhem configurar o próprio agir segundo princípios diversos do puro lucro, sem por isso renunciar a produzir valor económico. As numerosas expressões de economia que tiveram origem em iniciativas religiosas e laicas demonstram que isto é concretamente possível”.
O conceito de “economia solidária” tem sido objecto não só de experiências diversificadas, que, como refere o Papa não assentam no “puro lucro”, mas também de vários estudos sociológicos.
Socorro-me de um artigo de J. Portela (A economia ou é solidária ou é fratricida) como fonte de algumas das ideias seguintes.
Ele identifica três tipos de solidariedade – a familial, a associativa e a estatal – que se estendem “desde a esfera microssocial à mesocial e desta ao universo macrossocial”, sem com isto querer excluir outras formas “quiçá a montante ou a anteriori ou, talvez melhor, a par dessas relações unindo-as (e assim unido as pessoas) como um cimento de coesão social, para lá do espaço, do tempo e das circunstâncias sociais ou de grupo”. Seja como seja, uma coisa é certa: trata-se sempre de uma solidariedade “pessoal” ou “altruísta”, enquanto “noção radical de interdependência social e responsabilidade pessoal” face ao outro, uma espécie de traço de união ente duas ou mais pessoas em que cada uma assume a máxima de João Paulo II: “todos (isto é, cada um) somos verdadeiramente responsáveis por todos” (SRS 38).
Assim sendo, e volto a J. Portela, “o paradigma da solidariedade altruísta é «o bom samaritano». Neste vínculo forte manifesta-se atenção, solicitude, acção imediata, cuidado continuado, tudo isto centrado em «um outro», naquele que não é um membro do «nós» da «nossa terra», da «Samaria», mas que é simultaneamente «um igual», nele se depositando confiança… Não há lugar para acepção de pessoas ou mesmo de condutas, nem há margem para cálculos utilitários. Ela está para lá da economia da dádiva, que clama por reciprocidade, mesmo que seja desigual, temporariamente ou não. Como Caillé sugere, aproximamo-nos, então, duma noção imprecisa de dádiva, segundo a qual se estimula o rompimento definitivo com toda a ideia de interesse particular, de contrato, de devolução ou de reciprocidade. Ainda na esteira daquele autor, não estaremos longe da tradição teológica e filosófica que afirma que «a dádiva não pode existir como tal se não for absolutamente pura, isto é, desprovida de qualquer intencionalidade e de qualquer expectativa de retorno. Se dou, explica Derrida, então não dou, pois sabendo que dou, olho-me dando e aproveito ao menos o prazer da minha posição de doador”.
Estamos na pura lógica do dom de que tanto fala Bento XVI e aproximamo-nos muito do “amai- vos uns aos outros como Eu vos amei” de Jesus de Nazaré, que os cristãos deveriam ter como único modelo de via, pois, como diz Bento XVI, “no início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (DCE 1).
Mas infelizmente os católicos, onde me incluo, preferíamos um cristianismo-ética, por muito humanista que ela seja, em vez de assumirmos um cristiamo-encontro-com-a-Pesoa-de-Jesus-Cristo, o que é muito mais complicado e obriga objectivamente a uma permanente conversão (metanóia) do nosso ser e agir, pois é Ele quem “dá à (nossa) vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo”.
Que todo o outro, que é o próprio Cristo (Mt 25, 40.45), nos perdoe!

2010-01-04

CinV (79) Fronteiras da Economia (nº 37)

O Papa retoma, “recicla” introduzindo novas variantes, alguns aspectos já referidos sobre a Economia, temática que está presente em toda a encíclica.

1. Submissão à Ética
Todas as etapas e processos económicos comportam uma dimensão ética, porque implicam sempre consequências morais: “A angariação dos recursos, os financiamentos, a produção, o consumo e todas as outras fases do ciclo económico têm inevitavelmente implicações morais. Deste modo cada decisão económica tem consequências de carácter moral”. A dimensão ética não pode ser ignorada porque, também na actividade económica, o que está em causa são as pessoas, como disse João Paulo II num discurso na FAO: “A Igreja está convencida que as relações económicas não podem estar divorciadas dos interesses morais e éticos, dado que a pessoa é o verdadeiro coração de toda a actividade e esforços humanos” (1987). Dito por outras palavras, para a DSI, a pessoa é sempre anterior a todos os sistemas e instituições socioeconómicos em que participa.
Bento XVI recorda que não se trata de uma questão “religiosa” ou apenas da DSI, pois também o confirmam tanto as ciências sociais como as tendências da economia actual. Daí o apelo de João Paulo II na Polónia: “A economia deve submeter-se à cultura! Deve obedecer à ética! Inclusivamente por consideração consigo própria. Porque tudo está fundado unitariamente numa mesma subjectividade: a da pessoa e a da sociedade” (1987).

2. Respeito pela justiça
Este tema fundamental nesta encíclica é retomado agora com novas variações.

A justiça diz respeito a todo o processo e sempre pela mesma razão, o facto de nele estar implicado o ser humano na sua totalidade: “A doutrina social da Igreja sempre defendeu que a justiça diz respeito a todas as fases da actividade económica, porque esta sempre tem a ver com o homem e com as suas exigências”.

Por isso, a justiça deve estar implicada no próprio processo e não aparecer apenas marginalmente: “Os cânones da justiça devem ser respeitados desde o início enquanto se desenrola o processo económico, e não depois ou marginalmente”. A explicação é reforçada pela própria evolução história: “Outrora talvez se pudesse pensar, primeiro, em confiar à economia a produção de riqueza para, depois, atribuir à política a tarefa de a distribuir; hoje tudo isto se apresenta mais difícil, porque, enquanto as actividades económicas deixaram de estar circunscritas no âmbito dos limites territoriais, a autoridade dos governos continua a ser sobretudo local”.

Quanto ao contrato, ninguém o põe em causa porque é indispensável; a questão é que não é suficiente: “A vida económica tem, sem dúvida, necessidade do contrato, para regular as relações de transacção entre valores equivalentes; mas precisa igualmente de leis justas e de formas de redistribuição guiadas pela política, para além de obras que tragam impresso o espírito do dom. A economia globalizada parece privilegiar a primeira lógica, ou seja, a da transacção contratual, mas directa ou indirectamente dá provas de necessitar também das outras duas: a lógica política e a lógica do dom sem contrapartidas”.

E de novo voltámos à lógica do dom sem contrapartidas. Ao fazê-lo, o Papa lança a ponte para uma economia mais abrangente, que alguns chamarão “economia social”, expressão que não aparece na encíclica.

2010-01-01

Fraternidade - a magia do tempo

Dedico aos que aqui venham espreitar este belíssimo poema de Drumonde de Andrade, que me foi enviado pelo meu irmão Manel e de que gostei tanto que sinto necessidade de o partilhar. Espero que vos agrade e vos ajude a preparar o Ano que agora começa.

Reinauguração

Entre o gasto dezembro e o florido janeiro,
entre a desmistificação e a expectativa,
tornamos a acreditar, a ser bons meninos,
e como bons meninos reclamamos
a graça dos presentes coloridos.

Nossa idade - velho ou moço - pouco importa.
Importa é nos sentirmos vivos
e alvoroçados mais uma vez, e revestidos de beleza,
a exata beleza que vem dos gestos espontâneos
e do profundo instinto de subsistir
enquanto as coisas ao redor se derretem e somem
como nuvens errantes no universo estável.

Prosseguimos. Reinauguramos. Abrimos os olhos gulosos
a um sol diferente que nos acorda para os descobrimentos
Esta é a magia do tempo
Esta é a colheita particular
que se exprime no cálido abraço e no beijo comungante,
no acreditar na vida e na doação de vivê-la
em perpétua procura e perpétua criação.
E já não somos apenas finitos e sós.

Somos uma fraternidade, um território, um país
que começa outra vez no canto do galo de 1º de janeiro
e desenvolve na luz o seu frágil projeto de felicidade.

Carlos Drummond de Andrade