divórcio ou casamento eterno?...

2011-12-30

ESTOU FURIOSO: “Fora com os Portugueses. Venham os Chineses”

Eu não percebo nada de economia. Mas também não se sinto diminuído por isso.
Mas quando vejo o Governo, por unanimidade (é curioso este conceito de transparência pregado por Passos Coelho, pois, segundo o Expresso da semana passada, Vítor Gaspar discordou), aprovar a venda dos 20% da EDP à China, fiquei muto incomodado e apeteceu-me prender os ministros por crime de lesa pátria.
Já vou enumerar as minhas razões para atitude tão drástica. Mas antes tenho de recordar outro aspecto. O governo tomou esta decisão apenas a pensar no dinheiro. Esta ganância cega que faz com que qualquer proposta com mais uns milhões de euros é melhor para o país só pode significar uma tacanhez de espírito que eu não imaginava em pessoas de elite. Claro, todos sabemos que um percurso universitário mesmo que chegue a catedrático dá (supostamente) saberes mas não dá sabedoria, a sabedoria da vida. Eu sei que nos falta dinheiro, muto dinheiro, mas vender a alma por mais uns milhões, pode dar-nos um alívio passageiro, mas também pode tirar-nos algo de estruturante como povo.
Mas vamos à questão de fundo. Porque é que eu sou contra? Antes impõe-se perguntar quem sou eu. Eu sou apenas um cidadão português, que tem muito orgulho em sê-lo, que se orgulha da sua identidade portuguesa, que admira a nossa história mesmo nos seus fracassos. Sou só isto. De contas sei algumas que aprendi numas cadeiras em Matemática há quase 50 anos e pouco mais. Mas sei que o dinheiro, o deus tirano que todos adoram, não resolve, antes pelo contrário, problemas imateriais. Só os esconde, danifica e torna insignificantes.
Eu sou visceralmente contra esta negociata, que considero um gravíssimo erro geoestratégico. por três razões principais:
1) Porque uma proposta que dê mais dinheiro ou promessas dele não é necessariamente a melhor solução para os (nossos) problemas. Além de que ninguém sabe se as promessas dos chineses não são como as dos nossos políticos: mãos cheias de nada, quando estão em causa os interesses próprios. Aliás para este aspecto vigarista dos chineses logo alertou a Amnistia Internacional portuguesa. E quanto a direitos humanos temos a ampla praça de Tiananmen, sempre que for necessário repor a ordem social.
2) Porque a China não dá todo aquele dinheiro pelos nossos “lindos olhos ”. Eles não estão nada preocupados com Portugal, um grão de areia comparado com o Everest. E podia até dar dez ou vinte mais que não os afectava nada.
3) Mas pior que todo, porque abrimos a porta a uma cultura que nada tem a ver connosco, a um país que pacientemente vai tecendo as malhas de um domínio mundial e tem uma subtileza maquiavélica que pode pôr em causa, a prazo, a nossa identidade. É que ser “peão” assumido, como aliás, mais cedo ou mais tarde, todos iremos ser na EU (mesmo a Alemanha com a senhora Merkell ou sem ela perceberá que só podemos ser Europa em conjunto, isto, todos sendo “peões” uns dos outros ou então desaparecemos do mapa da história), “apenas” nos vai retirar (alguma) soberania. Mas isso está já a acontecer de qualquer modo num mundo globalizado. Mas meter aí a China, ser “peão” da China, vai, a mais curto prazo que imaginamos, violentar, se não mesmo destroçar, a nossa identidade. Começam com uma empresa, depois vão indo, indo (sempre escorrendo com euros que esbulham os olhos dos nossos governantes e de muitos compatriotas) e qualquer dia somos uma península chinesa, sem qualquer poder, mais um Chinjiang qualquer, onde valores, ancestrais e muito dignos sem dúvida, acabarão por se impor aos nossos valores menos ancestrais e muito diferentes mas também muito dignos que são os nossos, herdados dos três grandes pilares – Atenas, Jerusalém e Roma – e enriquecidos por outros contributos que foram sendo integrados e miscigenados mas com coerência e não subtilmente e sem darmos por isso.
Abrir uma fresta aos Chineses permite-lhes ocupar pacificamente o nosso território nacional, sem derramar uma gota de sangue. Que o cidadão comum não veja isso, não é de admirar, pois vivemos em tal défice de cidadania que não enxergamos para lá do vão da nossa porta. Mas que os governantes, primeiros defensores do bem comum e da identidade nacional, não o vejam é muito, muito grave.
Parei aqui para acalmar e aproveitei para dar uma vista de olhos ao Expresso. E mais furioso fiquei quando li um comentário de João Vieira Pereira de que respigo três frases:
“É verdade que estamos a precisar muto de dinheiro mas quando um ativo estratégico como este é vendido temos de olhar para lá da carteira. É curioso que Vítor Gaspar, o ministro que mas precisa de dinheiro, tenha sido o único a não preferir o maior encaixe fnanceiro”. Quer dizer, VG é o único ministro com perpetivas a longo prazo, com algum projecto para Portugal; aos outros basta-lhes “dê-me uma esmolinha!” Que tristeza!
“Há quem diga que demos uma lição aos alemães pois ao vender aos chineses mostrámos que não nos subjugamos aos interesses germânicos. Pois não, preferimos os interesses chineses, baseados num partido comunista com uma agenda escondida. Os investimentos chineses são preteridos em todo o mundo (…), mas em Portugal recebemo-los de braços abertos”. Atenção: nós somos uns verdadeiros machões latinos comme il faut.
“A EDP tem duas das suas maiores forças de crescimento no Brasil e nos EUA. A entrada da China Three Gorges Corporation irá afetar estes investimentos já que a EDP não mais vai ser vista como uma empresa portuguesa, não acham srs. ministros? A E.On tinha como estratégia tornar a EDP a maior empresa de renováveis no mundo. A China Three Gorges tem como objetivo tornar-se ela mesma a maior empresa de renováveis no mundo. Uma pequena diferença, não concordam, srs. ministros?

Em contraste, com este chamamento dos chineses, estamos a mandar embora os portugueses. Emigrem, diz Passos Coelho. E lá vem o eco de outros governantes: Emigreeem! Emigreeeeem! Isto chama-se acreditar no nosso país e na sua viabilidade milenar!!!! Se o primeiro-ministro e o seu governo não acreditam nos portugueses, quem vai acreditar? Não é isto o mesmo que afirmar que o país não vale nada, quando a prioridade devia ser mostrar que a vale a pena apostarmos em Portugal?
E eu que penso que a maior riqueza de um povo são as pessoas e tanto mais quanto mais qualificadas elas forem, fico desolado com estas políticas e outras como as do (não) incentivo à produção, sem as quais nenhum deste tremendo esforço, a que estamos mais ou menos obrigados, vai resolver nada! E sem esquecer as políticas ditas sociais enquanto se resumem a iniciativas assistenciais. Todos os países “decentes” procuram criar condições para reter os seus melhores “cérebros”. Porque perceberam que a maior riqueza são as pessoas: “Se outrora o factor decisivo da produção era a terra e mais tarde o capital, visto como o conjunto de maquinaria e de bens instrumentais, hoje o factor decisivo é cada vez mais o próprio homem, isto é, a sua capacidade de conhecimento que se revela no saber científico, a sua capacidade de organização solidária, a sua capacidade de intuir e satisfazer a necessidade do outro” (João Paulo II, CA 32)
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2011-12-26

A BELEZA DESTE NATAL

O Natal, que ontem celebrámos, foi um dos mais bonitos da minha vida.
Bonito por fora, pois tivemos um dia de sol radioso emoldurado por cúpula de azul imaculado. As casas, as paisagens apresentavam um brilho que refrescava a alma. As pessoas, que fui encontrando, respiravam alegria e felicidade.
Mas sobretudo bonito por dentro (de mim). Como há bastantes domingos que não podia ir à uma celebração eucarística, esta teve um encanto especial. Não só por podermos ir em família, o que nem sempre é fácil. Mas por poder manifestar e testemunhar a fé em conjunto. Muitas vezes pensamos muito na “minha fé”. Pois claro, eu tenho de ter a minha fé, a minha relação especial e radical com o Deus em quem acredito. Mas a minha fé não é minha; é a fé da minha comunidade; foi ela que ma transmitiu ao aceitar-me no seu seio. E por isso eu não posso vivê-la em plenitude se não o fizer no seio da comunidade. Mas não é só celebrar a nossa fé. É comungar a nossa comunhão com Cristo e com os irmãos. É dar o abraço da paz, sinal de que estamos de coração limpo para abraçar o Cristo que vamos comungar.
Nestes últimos seis anos, dos quais devo ter passado quase metade no hospital, muitas vezes, pessoas caridosas e carinhosas me “foram levar a comunhão”. Mas, e peço desculpa se escandalizo alguém, não tem nada de semelhante. Mas o Jesus não é o mesmo? É! Mas esse já eu tenho comigo, e ainda mais quando estou amarrado à cama do hospital. Mas para comungar na enfermaria não só não há ambiente físico – a barulheira das visitas (e ainda bem que lá vão visitar os seus familiares ou amigos), a televisão em altos berros com as queridas todas Júlias, Fátimas, Gouchas – como também não consigo – defeito meu – criar espaço e silêncio interior que me abstraiam de tudo aquilo e me permita saborear o nosso Deus que quis fazer-se pão para nos alimentar. Além do mais, mesmo quando em casa comungo, juntamente com a minha mãe que está praticamente imobilizada, em que o ambiente é o melhor possível, em que depois ficamos os dois a meditar e a partilhar o dom da Palavra e o dom do Pão e a interiorizar toda essa força espiritual única; mesmo aí, dizia, não é a mesma coisa do que celebrar com e na comunidade. Aliás sempre tive dificuldade em perceber bem a comunhão fora da celebração eucarística. Parece-me que autonomizamos a hóstia consagrada, como se nada tivesse a ver com a comunidade celebrante e orante. A primeira vez que esta questão se me colocou – e que eu nunca me preocupei muito em aprofundar – foi há muitos anos, quando li uma vida do santo cura de Ars. Num domingo, aconteceu que uma pessoa, que acabara de comungar, por razões que não viriam ao caso, saiu imediatamente da Igreja. Então o nosso santo cura mandou dois acólitos de velas acesas acompanhar aquela pessoa. Até onde, já não sei. Mas, quando ela perguntou a que propósito vinha aquele acompanhamento foi-lhe dito que como levava Nosso Senhor dentro de si devia ser acompanhada por duas velas. Pelo contexto, poderemos inferir que estaria em causa a hóstia que ainda não tivera tempo de ser digerido pelos sucos gástricos. Pois se não for por isso, ficava a minha pergunta: mas Jesus Cristo não está sempre comigo!?

Mas deixemo-nos de altas teologias. Até porque, falando deste tema, estou também a colocar o tema das celebrações dominicais sem Eucaristia, que não substituem a celebração eucarística, o que se torna um problema muito grave já que “a Eucaristia faz a Igreja e a Igreja faz a Eucaristia”. Por isso, o Concílio proclamou que “nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na celebração da santíssima Eucaristia, a partir da qual, portanto, deve começar toda a educação do espírito comunitário. Esta celebração, para ser sincera e plena, deve levar não só às várias obras de caridade e ao auxílio mútuo, mas também à acção missionária, bem como às várias formas de testemunho cristão” (PO 6).

Mas voltando à celebração de domingo senti beleza em toda ela: no ambiente, nos cânticos, na homilia, no abraço da paz. Mas vou aqui recordar a beleza das leituras: cada uma delas no seu registo, todas juntas formavam um caleidoscópio que nos alegra a inteligência e a alma.
Logo na primeira leitura surge aquele cântico de alegria de Isaías:
Que formosos são sobre os montes
os pés do mensageiro que anuncia a paz,
que traz a boa-nova, que apregoa a vitória!
 Que diz a Sião: «O rei é o teu Deus!» 
Ouve: as tuas sentinelas gritam, cantam em coro,
porque vêem cara a cara o Senhor, que regressa a Sião. 
Irrompei a cantar em coro, ruínas de Jerusalém,
que o Senhor consola o seu povo, resgata Jerusalém. (Is. 52,7-9)

Essa alegria repete-se no Salmo, de que destaco a segunda parte:
Aclamai o Senhor, terra inteira, gritai, vitoriai, cantai, tocai:
tangei a cítara para o Senhor,
a cítara juntamente com os outros instrumentos
com clarins e ao som de trombetas aclamai o Rei e Senhor (Sl 4.5-6)

A segunda leitura, tirada dos primeiros versículos da Carta aos Hebreus, lembra que com a entrada de Deus na história humana, como um de nós, ele trouxe consigo a revelação definitiva:
Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Agora, nesta etapa final, falou-nos pelo seu Filho, a quem nomeou herdeiro de todas as coisas, o mesmo que, por ele tinha criado o mundo. (Heb. 1,1-2).

E finalmente vem aquele poema literariamente tão belo e teologicamente tão profundo, que nos deixa extasiados e assustados. Este Prólogo do evangelho de João procura descrever toda a grandeza e profundidade do mistério de Deus mas também dos homens.
            No princípio já existia a Palavra;
                        a Palavra estava com Deus
                        e a Palavra era Deus.
No princípio Ela estava com Deus. 
Por Ela tudo foi feito;
e sem Ela nada foi feito. 
Ela continha a vida
e essa vida era a Luz dos homens;
essa Luz brilha nas trevas,
e as trevas não a compreenderam. 
Apareceu um homem, enviado por Deus, que se chamava João; este vinha como testemunha, para dar testemunho da Luz e por ele todos chegasse à fé. Não era ele a Luz, era apenas testemunho da Luz. A Luz verdadeira, a que ilumina todo o homem, estava chegando ao mundo.
Ela estava no mundo
e, embora o mundo fosse deito por meio dela,
o mundo não a conheceu. 
Veio para a sua casa
mas os seus não a receberam. 
Aos que a receberam,
tornou-os capazes de ser filhos de Deus. 
Aos que lhe dão a sua adesão, estes não nascem da linhagem humana, nem por impulso da carne, nem por vontade de um homem, mas nascem de Deus. 
E a Palavra se fez carne,
armou a tenda entre nós
e contemplámos a sua glória,
a glória de Filho único do Pai,
cheio de amor e fidelidade. 
Dele dava testemunho João quando clamava:
«Este era aquele de quem eu disse: O que vem depois de mim passou-me à frente, porque existia antes de mim».
Porque da sua plenitude
todos nós recebemos
antes de tudo um amor que responde ao seu amor.
Porque a Lei foi dada por Moisés, o amor e a fidelidade tornaram-se realidade em Jesus o Messias. A Deus jamais alguém o viu; é o Filho único, que é Deus e está ao lado do Pai, quem o deu a conhecer. (João 1,1-18)

2011-12-24

BIBLIA: UM LIVRO FASCINANTE

Convido os leitores a lerem o artigo do António Marujo no Público de hoje, no qual resume as opiniões de vários intelectuais e artistas sobre a Bíblia: Bíblia Sete histórias de uma paixão.
Não resisto a copiar para aqui algumas das muitas interessantes ideias. Porque é bem possível que muitos nunca tenham lido a Bíblia e possivelmente muito poucos a meditem regularmente. Isto, apesar do Concílio, ter insistido muito nessa “obrigação”. Lembra que a Bíblia é a alma da teologia e da pregação: “As Sagradas Escrituras contêm a palavra de Deus, e, pelo facto de serem inspiradas, são verdadeiramente a palavra de Deus; e por isso, o estudo destes sagrados livros deve ser como que a alma da sagrada teologia. Também o ministério da palavra, isto é, a pregação pastoral, a catequese e toda a espécie de instrução cristã, na qual a homilia litúrgica deve ter um lugar principal, com proveito se alimenta e santamente se revigora com a palavra da Escritura.” (DV 24). Depois “exorta com ardor e insistência todos os fiéis, mormente os religiosos, a que aprendam «a sublime ciência de Jesus Cristo» com a leitura frequente das divinas Escrituras, porque «a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo». Debrucem-se, pois, gostosamente sobre o texto sagrado” (DV 25). Finalmente recomenda a sua difusão devidamente preparada: “Façam-se edições da Sagrada Escritura, munidas das convenientes anotações, para uso também dos não cristãos, e adaptadas às suas condições; e tanto os pastores de almas como os cristãos de qualquer estado procuram difundi-las com zelo e prudência.” (DV 25). Note-se a famosa frase de S. Jerónimo: «a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo». É verdade. Talvez por isso, nós os católicos conhecemos tão mal Jesus. E ninguém pode amar quem não conhece. Nem segui-lo na sua proposta de conversão dos corações e de construção de um mundo onde todos sejam amados e respeitados.

Agora, com a devida vénia, volto ao artigo do Marujo.  
Para Luis Miguel Cintra, a Bíblia trata-se de “um texto genial, mesmo do ponto de vista literário; a escrita dos evangelhos é absolutamente deslumbrante”. Para lá desse aspecto formal, impressiona-o a permanente ligação do humano ao divino: “Há, nessa escrita, uma ligação à actividade humana. O que é fundamental no cristianismo é o incarnatus est [Ele incarnou], a ligação do humano com o divino. O evangelho fala do encontro daquele que foi Deus na terra”. E dá vários exemplos – o baptismo de Jesus, a anunciação – e até no AT, que traça “uma espécie de história de um povo em diferentes níveis de compreensão”, com a qual “comovo-me também, porque ligam mais uma vez o divino ao humano”.

Tolentino de Mendonça refere vários livros dos 72 que compõem a Bíblia, mas “penso que à hora da minha morte gostaria que me lessem o Cântico dos Cânticos”, esse “epitalâmio, um canto de admiração trocado por dois enamorados, um sussurro e uma extraordinária meditação acerca do amor”. Trata-se de um poema no qual “o amor está sempre a ser proposto e reproposto: nunca é construção terminada. Há um ritmo incessante de movimentos, quase vertiginoso em alguns momentos. O amor faz destes enamorados nómadas, buscadores e mendigos. Todo o diálogo de amor é uma conversa entre mendigos”, sintetizado na famosa frase: “Grava-me como selo no teu coração, como selo no teu braço, porque forte como a morte é o amor” (Ct 8,6).
Alice Vieira, apesar da sua formação republicana, laica e anticlerical, não resiste à beleza e sabedoria eterna dos Salmos: “Está para lá de tudo, ninguém tem dúvida de que é o grande livro da Bíblia. É grande literatura, onde a palavra é muito bem utilizada. O autor é o maior poeta de todos, consegue chegar até hoje como se escrevesse agora. Estão lá as nossas angústias e medos, o nosso desespero, mas também a nossa felicidade e a nossa esperança”. E faz uma sugestão algo inesperada: “O que acho é que as pessoas deviam ler um bocadinho mais a Bíblia... Quando se está chateado ou a precisar de reflectir sobre qualquer coisa, abre-se a Bíblia ao acaso e encontra-se sempre algo que vem ao nosso encontro.
Levo sempre a Bíblia comigo”.  

Esther Mucznik, da comunidade judaica, destaca as duas vertentes que a encantam: “A Bíblia é absolutamente fascinante: retrata a condição humana com todas as suas imperfeições e violências, mas também com o seu lado sublime. É um testemunho da caminhada espiritual de um povo. Essa caminhada tem uma vertente geográfica, da Mesopotâmia até Canaã, e uma vertente espiritual, do politeísmo ao monoteísmo”. Para lá do livro do Êxodo, o livro fundante do povo judeu, destaca o livro de Job, pela sua universalidade, pelo que “é extremamente moderno”, e do qual se podem fazer duas leituras fundamentais: “A mais comum é a eterna questão do bem e do mal: Job é temente a Deus e Deus castiga-o. Job contesta, argumenta, Deus responde e pergunta-lhe: "Mas quem és tu para contestar os meus desígnios?" Porque os desígnios de Deus são insondáveis ao entendimento humano. A segunda leitura é a que mais me interessa: no final do livro, Job volta à felicidade. Há um final feliz, porque, ao longo de todo o texto, Job nunca aceita a culpa. "Denegrindo-nos, é como se denegríssemos a obra divina", como diz Job”.
Mas a nota que mais destaca é a contínua referência ao diálogo, à interrogação e à dúvida: “O que mais gosto, em Job como também nos profetas, não é que eles dizem "ámen", mas estabelecem um diálogo com Deus, por vezes um diálogo com dúvidas. Ser humano, com todas as capacidades que Deus nos dá, de colaboradores seus, de aperfeiçoamento do mundo, implica também a dúvida. Também Abraão negoceia com Deus, por exemplo na questão da destruição de Sodoma. Mas até me identifico mais com Moisés, que é um homem de dúvida, que discute se a sua escolha para liderar o povo é a melhor. A dúvida leva-nos mais longe, leva-nos a perguntar, a interrogar Deus também”.

Dimas de Almeida, pastor protestante, não destaca nenhum livro porque a Bíblia é “uma polifonia”. Por isso, “prefiro evitar criar um cânone dentro do cânone, gostaria de seguir a pluralidade do cânone, que é tão rico, tão conflitual, que até podemos dizer que há teologias em conflito, o que é extremamente salutar. Prefiro tentar aguentar a tensão inerente à diversidade dos textos e, em vez de eleger um único texto, gostaria antes de ter como minha eleição a pluralidade do cânone”.

Teresa Toldy, teólogo católica, destaca o livro do Êxodo, “é um dos meus fascínios e conta uma história única, que é de toda a humanidade. Tudo o que é o melhor e o pior da humanidade está ali e isso é fascinante. É como se fosse um pano de fundo para os tempos que vivemos agora”. Dos Evangelhos recorda episódios que a fascinam: “a história dos discípulos de Emaús, após a ressurreição de Jesus, reinterpretando o que acontecera, o que eles vêem e não vêem, o que acontece quando eles reconhecem Jesus, tudo isso é espantoso. E o relato de quando Jesus aparece a Maria Madalena, depois de ressuscitar, comove-me profundamente. Tal como o prólogo do Evangelho de S. João, não só do ponto de vista teológico, mas da cadência poética do texto, em qualquer língua em que se leia. Por exemplo, o texto, no original grego, diz que Deus acampou no meio da humanidade. Isso é fascinante.”

Será que a maioria dos católicos se sente assim fascinado pela Bíblia, andam sempre com ela, a ela recorrem nos momentos de alegra e nos de tristeza. É que «a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo».

SANTO NATAL PARA TODOS com muita alegra, muita paz interior e muito amor.





2011-12-22

NATAL e CIDADANIA

Apesar de já ter mandado a mensagem de Natal da Comissão Diocesana Justiça e Paz aos meus amigos, parece-me importante deixá-la aqui no meu blog.


Natal - Estímulo para uma Cidadania plena

1. Se o Natal existe tal como o temos, é porque este modelo de celebração responde a algum tipo de necessidades humanas. Ora, pesem todas as teorias, e são muitas, necessidades basicamente necessidades, sem cuja satisfação não podemos sequer subsistir, só há duas: de pão e de afeto. Ao pão associamos o conjunto dos bens materiais que nos permite uma existência digna, uma participação social por direito próprio, uma radical igualdade com os demais; ao afeto associamos o conjunto de bens sociais, psicológicos, culturais e espirituais que nos faz sentir desejados, acolhidos, amados, e nos remete sempre para uma indizível plenitude de comunhão com os outros, com a vida, com a criação, com o transcendente, com Deus.
Ora o Natal, na sua génese e história antropológica, religiosa e cultural, reenvia-nos sempre para este mundo do afeto, da comunhão, da plenitude de vida, do Absoluto. É isso que torna o Natal um “tempo especial”, é essa a sua magia.

2. Desde o seu nascimento, Jesus quis viver entre os últimos da sociedade: comeu com os desprezados, tocou os leprosos, participou nas alegrias e sofrimentos dos humildes, denunciou e combateu as injustiças de uma sociedade organizada à medida dos senhores do mundo. Tal como então, também hoje há dois grupos de pessoas bem definidas: de um lado, os pobres, os ignorantes, os desprezados, os «não justos» que esperam uma palavra de amor, de afeto, de esperança e de libertação; do outro, os ricos, os poderosos, os que vivem isolados e distantes dos mais débeis, certos de que já possuem tudo o que precisam para ser felizes e, portanto, não necessitam de nenhum salvador.

3. Enquanto membros da Comissão Diocesana Justiça e Paz percebemos na Incarnação de Deus em Jesus de Nazaré a mais radical de todas as respostas à nossa necessidade de pão e de afeto: Deus e o homem tornaram-se aliados na construção do Reino da justiça e da paz, da fraternidade e da verdade, do bem no tempo presente e da jovialidade por toda a eternidade.
A esta luz, queremos desafiar-nos e desafiar os nossos coetâneos à utopia de um Natal vivido na verdade das relações, na sobriedade que se abre à solidariedade, na gratuidade da presença amiga, junto de familiares, de amigos e dos últimos da sociedade. Em boa verdade é essa a mística do presépio, como tantas vezes no-lo ensinaram os poetas, mesmo aqueles que se confessam agnósticos.

4. Contudo, para responder universalmente e reequilibrar entre si as respostas tanto às necessidades de pão como às necessidades de afeto, não chegam as boas vontades e gestos individuais, nem sequer das várias iniciativas da chamada sociedade civil por mais meritórios que sejam. É preciso que aqueles que gerem “o bem comum”, nos governos, na administração pública e nas empresas, nas escolas e na comunicação social, nos tribunais ou nas forças de segurança, trabalhem ativamente sobre as estruturas concretas que podem facilitar este processo. O Natal obriga-nos, em nome da Incarnação do Senhor Jesus e em nome do homem e da mulher concretos, incarnados, histórica e culturalmente situados, a reclamar dos agentes privilegiados da vida coletiva a luta sem tréguas pelo bem de todos e de cada um.

5. Estamos a viver o Natal num tempo de crise, uma crise real, que mergulha na pobreza e no desespero muitos dos nossos irmãos e transporta consigo uma profunda mudança de paradigma. Esta circunstância obriga-nos a deixar também um desafio às comunidades cristãs, de que fazemos parte. Muitas vezes, sem nos apercebermos disso, somos levados na grande “onda” do modo comum de vida que nos rodeia. A própria fé cristã, mesmo quando se exprime no voluntarismo religioso, tantas vezes se deixa envolver pelo individualismo, pelo hedonismo, pelo consumismo. A solidariedade, a caridade e a comunhão estão longe de ser práticas assimiladas na Igreja, mesmo quando partilhamos generosamente alguns bens. Mas nós acreditamos que no Natal, em Jesus, Deus quis incarnar no meio dos pobres e com eles iniciar a nova humanidade, onde a fraternidade acabasse com a divisão discriminatória e injusta e trouxesse a libertação para todos. E sabemos que, como Povo de Deus, nos compete prolongar as ações amorosas de Jesus, que tornem presente e eficaz na sociedade a força libertadora do Reino de Deus. Assim sendo, de que lado estamos? Somos ricos ou pobres, oprimidos ou opressores, distantes ou próximos, livres ou escravos do consumismo? 

6. Para todos, o Natal é um tempo de forte dinâmica. Os desafios que nos lança, de modo especial aos crentes, não podem ficar-se pela sua dimensão intelectual, nem por gestos pontuais, mas devem atingir as próprias bases em que assenta a nossa sociedade tão globalizada: o Natal ou se torna numa vivência sempre renovada ao jeito de Jesus de Nazaré ou não é Natal.
Esses desafios estão apontados no modo como Deus incarnou na nossa história, no Menino que nasceu em Belém:
- solidariedade máxima - Deus assume a condição daqueles que quer tornar felizes. Deus não nos salva de cima, mas vem construir connosco a nossa própria história de libertação e portanto nós devemos viver a solidariedade não com um sentimento de compaixão vago e pontual mas como estilo de vida permanente e responsável por todos, procurando construir a História a partir dos mais carenciados e em estreita cooperação com eles;
- construção da paz - o Seu nascimento foi acompanhado pelo desejo divino da paz, um bem tão frágil mas tão necessário: “Paz na terra aos homens de boa vontade” e esse Menino, “Príncipe da Paz”, desafia-nos a sermos construtores da paz, na nossa família, com os nossos amigos e inimigos, em todos os âmbitos da nossa sociedade;
- simplicidade - a gruta onde quis nascer desafia-nos à simplicidade, a uma simplicidade de vida que passa pela sobriedade e moderação na utilização dos recursos da natureza, mas também simplicidade interior que supera medos indefinidos, incompreensões mútuas, falta de esperança e de sentido para a vida e que potencia uma sociedade cada vez mais assente na transparência, honestidade, acolhimento do outro, luta pela justiça e respeito pelos direitos fundamentais e pela dignidade inviolável de cada pessoa e de cada povo;
- prioridade aos deserdados deste mundo - nasce pobre, numa noite fria e o Seu nascer como pobre e abandonado numa noite tão fria desafia-nos a dar a prioridade máxima aos deserdados deste mundo, aos marginalizados e excluídos, aos explorados por um sistema que absolutiza o dinheiro nas suas mais variadas formas, secundarizando a pessoa, o trabalho como vocação e realização pessoal, a criatividade de cada um, a igualdade de oportunidades;
- absoluto de vida - Deus encarna, nasce feito carne e cultura humana e o Seu nascimento desafia-nos a construir uma cultura da vida, uma vida em abundância, em todos os seus momentos e circunstâncias, para todos, seja para a geração presente seja para as gerações futuras, que nada mais podem fazer que herdar o mundo que lhe deixarmos e como lho deixarmos.

7. Em resumo, nesta época de solidariedade e amor, somos chamados a testemunhar a responsabilidade, a repartição de bens e dons, a fraternidade e a gratuidade; a desencadear comportamentos individuais e comunitários de honestidade pública e privada no desempenho das funções de cada um; a respeitar a honradez nos compromissos assumidos; a rejeitar qualquer colaboração nas várias formas de economia paralela e a combate-la por todos os meios legais e morais; a estimular o exercício decidido da cidadania, própria e alheia, no respeito pela solidariedade e a subsidiariedade; a dedicar uma especial atenção às velhas e às novas formas de pobreza.

8. O Deus-Menino veio para fazer desaparecer todas as situações de opressão e violência e abrir uma nova era, uma era de paz, justiça e fraternidade. Reconhecido e acolhido pelos “últimos”, foi recusado e condenado pelos poderosos. Para todas as gerações, para todas as sociedades, também para nós, o Menino do presépio será sempre "sinal de contradição" (Lc 2, 34).

Coimbra, 13 de Dezembro de 2011

2011-12-12

DIREITOS HUMANOS


Foi a 10 de Dezembro de 1948 que a ONU adoptou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Abalados pela barbárie recente e com o intuito de construir um mundo sobre novos fundamentos, os governantes das várias nações procuraram chegar a um acordo que se revelou bastante difícil dado que estavam em confronto duas ideologias representadas pelo bloco “ocidental” e pelo bloco comunista. Depois de longos debates foi alcançado um compromisso, cujo primeiro artigo afirma solenemente: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade". 

Congratulamo-nos vivamente com mais esta conquista da humanidade, mas é bom não esquecer outros lutadores pelos direitos humanos, sobretudo na era dos Descobrimentos. Um dos mais famosos foi o dominicano Antonio de Montesinos, que, como um célebre sermão, desencadeou uma verdadeira revolução.

No dia 21 de Dezembro de 1511, quarto domingo do Advento, perante os senhores coloniais, proferiu o chamado “Sermão do Advento”, no qual comentava a passagem bíblica “Eu sou a voz que clama no deserto” (Jo 1,23) que fazia parte das leituras desse dia.
Começou por avisar os presentes da dureza das palavras que iria proferir não a título pessoal mas como voz de Cristo e que, portanto, deviam ser ouvidas com toda a atenção:
«Para vos dar a conhecer (os pecados gravíssimos nos quais com tanta insensibilidade estais continuamente mergulhados e neles morreis) subi a este púlpito, eu que sou voz de Cristo no deserto desta ilha, e, portanto, convém que a ouçais com atenção, não de qualquer maneira, mas com todo o vosso coração e com todos os vossos sentidos. Ela será a mais nova que nunca ouvistes, a mais agreste e dura e a mais espantosa e perigosa que jamais pensastes ouvir”.

E o que tem esta voz a dizer?
Todos vós estais em pecado mortal e nele viveis e nele morrereis, devido à crueldade e tirania que usais com estas gentes inocentes. Dizei-me, com que direito e baseados em que justiça, mantendes em tão cruel e horrível servidão estes índios? Com que autoridade fizestes tão detestáveis guerras a estes povos que estavam nas suas terras mansas e pacíficas e tão numerosas e os consumistes com mortes e destruições inauditas? Como podeis tê-los tão oprimidos e fatigados, sem lhes dar de comer nem os curar nas suas enfermidades, causadas pelos excessivos trabalhos que lhes impondes, que os fazem morrer, ou melhor dizendo, que vós matais para poder arrancar e adquirir ouro cada dia? E que cuidado tendes para que sejam catequizados e conheçam o seu Deus e criador, sejam baptizados, oiçam a missa e guardem as festas e os domingos?  

E depois vem a pergunta que ainda hoje tem infelizmente actualidade, não na letra escrita, mas na prática realizada:
Não são eles acaso homens? Não têm almas racionais? Não sois vós obrigados a amá-los como a vós mesmos? Será que não entendeis isso? Não sentis isto? Como estais adormecidos num sono tão letárgico e profundo? Tende por certo que no estado em que estais não vos podeis salvar mais que os mouros ou turcos que carecem e não querem a fé de Jesus Cristo.

Este sermão foi possivelmente a primeira voz a denunciar a situação de exploração a que estavam submetidos os habitantes daquelas terras da ilha de Hispaniola, uma ilha que está hoje dividida entre o Haiti e a República Dominicana. Um dos primeiros efeitos foi a “conversão” de Bartolomé de las Casas que depois se tornou o grande defensor dos índios.

Mas estas palavras não podiam deixar ninguém sossegado, mesmo a grandes distâncias. Elas abalaram a consciência das autoridades espanholas, que se sentiram obrigadas a promulgar as "Leis de Burgos" (1512) e as "Leis de Valladolid" (1513), para melhorar as condições dos nativos.
Claro que nada disto serviu para atemorizar a ganância de tanto espanhol que continuava a explorar e a escravizar os índios, até porque a Corte espanhola ficava muito distante e eles tinham tempo e liberdade para tudo.

Por isso, também o papa Paulo III teve de tomar posição, pelo menos por duas vezes.
A primeira para afirmar que os índios também têm alma e, portanto, não podem ser reduzidos à escravatura, noBreve  Pastorale officium (29.Maio.1537) dirigido ao Arcebispo de Toledo:
Tivémos conhecimento de que (...) Carlos (V), imperador dos romanos  (...) para reprimir aqueles que, levados pela ambição, desenvolveram uma teoria desumana sobre o género humano, proibiu por edito público todas essas teses para que ninguém presuma que pode reduzir a escravos os Índios ocidentais ou meridionais ou privá-los dos seus bens. Mandamos a esses que atendam a que os Índios, mesmo que vivam fora da Igreja, não podem ser privados nem da sua liberdade nem da posse dos seus bens, visto que são homens capazes (de alcançar) a fé e a salvação, nem devem ser reduzidos à escravatura mas antes convidados para a vida por meio da pregação e do bom exemplo. Além disso, mandamos que reprimas esses crimes tão condenáveis de tais ímpios e que providencies com a tua solicitude, para que (os Índios) não se tornem, levados pelas injúrias e danos, mais resistentes, mas antes mais desejosos da fé de Cristo que devem abraçar.

A segunda, dirigida a toda a Igreja, com a publicação da Bula Sublimis Deus (2.Junho.1537):
O homem é, por sua natureza, capaz de receber a fé em Cristo, e todos os que participam da natureza humana têm aptidão para receber esta mesma fé (...). O inimigo do género humano (...) imaginou um meio desconhecido até agora para impedir que a palavra de Deus seja pregada às nações para a sua salvação.  Incitou alguns dos seus satélites que, no desejo de saciar os seus apetites, tiveram a audácia de afirmar que devem ser reduzidos à escravatura estes índios (...) que foram descobertos na nossa época, sob o pretexto de que são como animais brutos e incapazes de receber a fé católica (...). Carregam-nos com maiores trabalhos que aos animais irracionais que utilizam (...). Considerando que estes índios, que são evidentemente homens verdadeiros, não só são capazes de receber a fé cristã, como acodem a esta fé com presteza, e desejando aplicar a este assunto os remédios oportunos declaramos  (...), em virtude da nossa autoridade apostólica, que estes índios, assim como todos os outros povos que no futuro cheguem ao conhecimento dos cristãos, embora estejam ainda fora da fé cristã, não devem ser privados da sua liberdade nem do uso dos seus bens; que, pelo contrário, devem poder usar desta liberdade e destes bens e gozar livremente deles; e que não devem ser reduzidos à escravatura. Haverá que convidar esses índios e os demais povos a receber a fé cristã pela pregação da Palavra de Deus e pelo exemplo de uma vida virtuosa.

Poderia estar aqui, na opinião dos Dominicanos, o "embrião" da Declaração dos Direitos Humanos.

2011-12-07

JUSTIÇA NO MUNDO

No penúltimo post comecei a falar do documento do Sínodo dos Bispos de 1971. Talvez parecesse estranho a  algum leitor que eu tenha despendido tanto tempo com a doutrina da colegialidade. Mas queria deixar claro como a Cúria romana sabe dar volta aos assuntos que põem em causa o seu poder   milenar.
Este texto tem a particularidade de ser possivelmente o único em que a colegialidade foi vivida na sua pureza original. Não foi a Cúria que fiscalizou o documento. Não foi o Papa que lhe deu os retoques finais nem o escreveu na sua totalidade, depois de um ano de reflexão, como passou a acontecer com todos os Sínodos seguintes. Foram realmente os Bispos reunidos em Sínodo que o debateram, escreveram e aprovaram. E foi assim que foi publicado. 
Uma segunda nota que queria referir tem a ver com o total esquecimento a que foi votado. Não sei se tem alguma coisa a ver com a violência profética do seu conteúdo. Mas é uma hipótese a não descartar. De qualquer modo, parece-me que crónica que se segue é uma boa introdução a este problema e também ao começo da reflexão sobre o documento, que irei fazer fazendo com alguma regularidade durante algum tempo.

ESQUECIMENTO SIGNIFICATIVO 
Fez no passado dia 30 de Novembro, quarenta anos que os bispos, reunidos em Sínodo, publicaram o documento “A Justiça no Mundo”. Aborda não só da justiça no mundo, mas também na Igreja e dá grande relevo às relações da justiça com a evangelização.
Trata-se de um documento em tom profético, muito atento à realidade eclesial e social. E, estranhamente ou não, é um texto que foi ignorado, até me apetecia dizer ostracizado, já que, tanto quanto sei (mas não li tudo!?), nunca o vi citado nem referido nos principais documentos do Magistério nem ouvi falar dele em encontros de formação, homilias e afins. É como se tivesse havido uma conspiração de silêncio e silenciamento contra ele. Será pelo seu conteúdo?
A ideia central é esta: “A acção pela justiça e a participação na transformação do mundo aparecem-nos claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho, que o mesmo é dizer, da missão da Igreja, em prol da redenção e da libertação do género humano de todas as situações opressivas” (6). É uma frase extremamente violenta para o nosso comodismo pastoral e a nossa inércia missionária, mas muito clarinha: não há autêntica evangelização sem a luta pela justiça. Até os próprios bispos da altura se assustaram com a palavra “luta” e a substituíram por “acção”. Uma ou outra reflectem uma força profética que chamaria de subversiva relativamente às nossas formas de evangelização: para muitos, evangelização reduz-se à catequese. Há até secretariados diocesanos que se chamam de “evangelização e catequese”.
Luta pela justiça e evangelização não encaixam bem na mentalidade de muitos cristãos. Ligar a fé à justiça é aceitável, pois podemos ficar pela esfera dos conceitos e sabemos que a justiça plena não é atingível neste mundo. Mas ligar fé e luta pela justiça já é mais complicado. Luta implica compromisso doloroso, potencial perda de regalias legítimas, perseguições: “Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça porque deles é o Reino do Céu” (Mt 5,10). Nem com uma recompensa absoluta estamos muito disponíveis para esta luta, quanto mais para perder a cabeça como João Baptista e tantos profetas antigos e actuais.
Parece-me, pois, muito interessante esta mudança do centro de gravidade: da justiça para a luta pela justiça. De algum modo, o texto confirma esta alteração: “Perante esta situação do mundo hodierno, marcado pelo grande pecado da injustiça, sentimos a nossa responsabilidade nela, ao mesmo tempo que experimentamos a nossa impotência” (30). Há aqui implícita a ideia de que a justiça plena nos escapa, mas lembra a nossa responsabilidade em muitas injustiças. E essas devemos combatê-las e eliminá-las dentro do possível. Amartya Sem, no seu livro “A Ideia de Justiça”, escreve algo semelhante: “O que nos toca, e é razoável que o faça, não é o darmo-nos conta de que o mundo fica aquém de um estado de completa justiça (…) mas o facto de que, à nossa volta, existam injustiças manifestamente remediáveis e que temos vontade de eliminar”. Sem esta percepção, Gandi ou Luther King nunca teriam desafiado impérios. Não se trata, pois, de conseguir um mundo perfeitamente justo, mas de querer remover as injustiças evidentes na medida do possível. Precisamos de identificar e combater a “injustiça superável”. Contudo é mais cómoda a primeira posição, mesmo para teóricos da justiça: “Muitas teorias concentram-se em como chegar a fundar “instituições justas” deixando um papel secundário para os aspectos comportamentais”. Isto é, esquecem-se e nós também esquecemos do mais importante: as pessoas e as suas circunstâncias. Ora centrarmo-nos na vida real das pessoas traz muitas implicações até no que toca à natureza e alcance da própria ideia de justiça.
O “nosso” texto assume a segunda perspectiva: “Apercebemo-nos de que existe no mundo uma série de injustiças que constituem o núcleo dos problemas do nosso tempo e cuja solução exige canseiras e responsabilidades a todos os níveis da sociedade”. Por isso, “a nossa acção deve ter como objectivo, em primeiro lugar, aqueles homens e nações que, devido a formas diversas de opressão e por força da índole própria da sociedade actual, são vítimas silenciosas da injustiça e, mais ainda, vítimas da injustiça sem voz” (20). Muito significativa esta referência às duas situações: vítimas “silenciadas”, porque não as deixamos falar, não lhe damos voz, não cabem nos nossos noticiários, e “silenciosas”, porque não sabem ou não podem falar ou até já desistiram de o fazer perante tanta porta fechada que se lhes deparou. Mas os bispos não ignoram que vivemos numa "injustiça estrutural", na qual têm também grande responsabilidade os "sistemas e mecanismos injustos" (5; 13), verdadeiras "barreiras e círculos viciosos que se opõem à promoção colectiva (e são) obstáculos objectivos à conversão dos corações" (16,34,52), sem a qual não pode haver uma autêntica luta pela justiça.
A luta pela justiça não é inata. Portanto, exige uma educação permanente por parte da família e da sociedade. Mas também da Igreja, através da “Liturgia da Palavra, a catequese e a celebração dos Sacramentos”, especialmente a Eucaristia que “constitui a comunidade e a põe ao serviço dos homens” (59). Mas também pela prática da justiça no seu interior a todos os níveis: “o nosso exame de consciência estende-se ao estilo de vida de todos: bispos, presbíteros, religiosos e religiosas e leigos. Impõe-se perguntar se, entre as populações pobres, o pertencer à Igreja não será um meio de acesso a uma ilha de bem-estar, num contexto de pobreza” (49).
Um documento destes estava obrigatoriamente condenado a ser esquecido tanto pelos responsáveis como pelos irresponsáveis. Não é evidente!?

2011-12-04

TEMPO DE VIGILÂNCIAS

Para os católicos, começou no passado domingo um novo ano litúrgico. No primeiro domingo, a palavra de ordem do Evangelho foi “Vigiai”. O Evangelho refere-se à atenção com que devemos estar atento a uma repentina chegada do Senhor. A história, contudo, já nos ensinou que essa vinda não estará tão iminente como as primeiras comunidades acreditavam. Mas a “ordem” mantém-se. Estar atento aos sinais dos tempos é uma exigência que o Concílio Vaticano II atribui à Igreja: “Para levar a (sua) missão, é dever da Igreja investigar a todo o momento os sinais dos tempos, e interpretá-los à luz do Evangelho; para que assim possa responder, de modo adaptado em cada geração, às eternas perguntas dos homens acerca do sentido da vida presente e da futura, e da relação entre ambas. É, por isso, necessário conhecer e compreender o mundo em que vivemos, as suas esperanças e aspirações, e o seu carácter tantas vezes dramático” (GS 4).

“Vigiai” na Igreja
Um primeiro campo no qual os cristãos devem procurar fazer um adequado discernimento é a Igreja a que pertencem. Vivemos hoje uma profunda crise eclesial, que, não o podemos esquecer, tem muito a ver com a crise da sociedade, desnorteada com a rapidez a que se sucedem mudanças profundas. Mas há também razões internas. Por exemplo, num recente inquérito realizado para descobrir quais as razões que levam os jovens a abandonar a Igreja, o Grupo Barna apontou várias conclusões, das quais destaco apenas uma: a formação que eles recebem não é profunda nem suficiente e, sem bases sólidas, toda essa formação se perde quando chegam aos 20 anos de idade. E esta formação tipo verniz não se pratica só com os jovens mas também com adultos. Seria bom que todos vigiássemos, denunciássemos esta catequese tão superficial e fizéssemos alguma coisa para a ajudar a mudar esta situação estrutural. “Vigiai” para que a formação se torne mais adequadas ao nosso tempo e às características das crianças e dos jovens (e dos adultos) de hoje. É que se não sabem(os) em quem acreditam(os) que rumo podem(os) dar à vida, com que critérios? Claro este é um exemplo. Mas outros podiam ser as estruturas já caducas que entravam o acesso pleno à Eucaristia, sem a qual não há comunidade cristã, ou a falta de liberdade de expressão não só dos teólogos mas nas próprias estruturas de comunhão (aqui pode-se falar mas ninguém ouve!)

“Vigiai” na sociedade
Outro campo que requer a nossa vigilância é a nossa sociedade. A situação é tão gravosa que não podemos ficar dependentes dos nossos políticos, esperando que as soluções nos sejam entregues de mão (mal) beijada. É por isso que me pareceu merecedora de toda a consideração a chamada “greve geral” da semana passada. Eu até nem lhe chamaria greve, já que não teve as características das greves clássicas. Não houve palavras de ordem típicas. Não fez reivindicações de tipo salariais ou de “direitos adquiridos”. Muita gente que participou não tinha a ver com os sindicatos: grupos que se foram juntando à manifestação, reformados, gente anónima, indignados. Aliás achei interessante a justificação de um amigo meu: “Nunca fiz uma greve. Desta vez vou fazer uma greve, mas uma greve de valores”.Por isso digo que não se tratou propriamente de uma greve, mas mais de uma manifestação de protesto, de um grito de vigilância. Bem sei que há muita gente que, dadas as dificuldades que atravessamos, reprovou esta manifestação porque um dia sem trabalhar ainda empobrece mais a nossa situação. Além disso, não vai resolver nenhum problema.
Pesando tudo isto devo dizer que também eu participaria nesta “greve geral” ou melhor nesta “greve de valores” por várias razões, deixando já de lado a falta de cumprimento das promessas eleitorais porque infelizmente acontece em todos os partidos.

1) É inevitável que temos de tomar medidas de grande austeridade. Mas quando o Governo ultrapassa em muito as já violentas medidas da troika, nós temos o direito de “Vigiai”, reclamar, discordar a menos que nos expliquem bem as razões e nos garantam que elas têm uma elevada percentagem de endireitar o país. Pior ainda: se ficarmos só pelos sacrifícios e não criarmos condições para a nossa economia se expandir iremos ficar ainda me piores condições. Ora muitos e de quase todos os quadrantes acham que o Orçamento 2012 vai nesse sentido suicida. “Bom aluno” submetido à senhora Merkel atirando milhares de pessoas para o desemprego, taxando o trabalho mas mal beliscando o capital; castigando os mais frágeis e deixando quase incólume os ricos. Temos de “Vigiar”, reclamar, levantar a voz. Além disso há várias maneiras de cumprir o aprovado com a troika: umas mais monetaristas, outras mais “sociais”. E a mim parece-me que a opção vai muito no primeiro sentido (ver 3)). Acusam-nos, talvez com razão que andámos a gastar acima das nossas possibilidades, mas a verdade é que temos dois milhões de pobres e muitas centenas de milhares que sobrevivem com menos de 750 euros por mês. Por isso devemos “Vigiar” e gritar bem alto estas realidades.

2) Usando uma expressão do Pacheco Pereira, “um país não pode ser administrado como uma empresa porque uma empresa não é democrática, nem tem que ser”. As soluções não podem resumir-se a despedimentos ou a diminuição de salários. A democracia tem como fim último a construção do bem comum e a máxima coesão social procurando que todos possam viver com dignidade e disponham de igualdade de oportunidades. Temos de “Vigiar” e defender com unhas e dentes a construção e a prioridade a dar ao bem comum.

3) Embora tenhamos alguma dificuldade em perceber a real política dos nossos governantes, dadas as flutuações no discurso sincrónico de vários ministros ou diacrónico do mesmo ministro, uma coisa me preocupa, apesar dos meus parcos conhecimentos na matéria. Mas quando temos um ministro das finanças que, diz-se nos jornais, é fã de Milton Friedman, o grande inspirador da destruição das políticas sociais de Reagan e de Tatcher, quando se percebe que pertence a uma escola monetarista, fico com receio que ele esteja a preparar uma espécie de golpe de estado soletradamente mas persistentemente que transforme o Estado de direito num Estado fiscal ou monetarista: o acerto rigoroso dos números torna-se a prioridade primeira. Não duvido que ele acredite convictamente no que está a fazer. Não duvido do enorme esforço e até nd sofrimento pessoal que tudo isto lhe cause. Mas temos de “Vigiar”, porque não podemos deixar que a moeda seja mais importante que as pessoas.

4) Tudo isto exige um permanente “Vigiai”, até como exercício de cidadania: não podemos cair na tentação de por estarmos tão mal devemos estar caladinhos e não baralhar ainda mais em nome da estabilidade social. Não podemos ficar amordaçados pelo receio de que a nossa palavra possa perturbar ainda mais as coisas. Porque ou participamos todos – cada um do modo que pode e sabe – na (re)construção do nosso país ou então a solução será sempre a de meia dúzia de tecnocratas, que podem ter muito saber técnico mas muito pouco saber “humano”. É que a pessoa é a principal riqueza de qualquer sociedade e a sua centralidade tem de faz parte da solução e nunca pode ser atirada para o caixote dos problemas.

“Vigiai” na Europa
Finalmente a vigilância não pode ficar-se dentro das nossas fronteiras. A Europa está a viver uma crise profunda por causa não só dos eternos egoísmos nacionais, mas também porque os “responsáveis europeus agiram muito pouco e demasiado tarde” talvez maniatados por “uma combinação entre a obstinação da visão alemã do controlo monetário e da ausência de visão clara por parte dos outros países” (J. Delors). Quando se tratou da Grécia e depois de Portugal ignoraram a situação como se se tratasse apenas de dois meninos mal comportados. Não tiveram rasgo nem visão para perceber que não se tratava de insignificantes casos pontuais mas que eram pontas de um iceberg profundo que colidia com toda a zona europeia, que se enquadrava na guerra contra o euro, que envolvia e em profundidade todos e toda a gente.
É certo que não temos uma verdadeira consciência europeia. Também é verdade que pouco ou quase nada se tem feito junto dos cidadãos para que a cidadania europeia ganhe raízes. E os (ir)responsáveis não perceberam que a Europa só se pode fazer com os europeus e nunca contra eles e a sua indiferença. Não há democracia sem diálogo. Não há democracia sem que as partes envolvidas se sintam chamadas a participar e a colaborar. Este é mais um campo onde o “Vigiai” se torna também muito urgente por parte dos “cidadãos da Europa”.
Mas também não se percebe por que razão Irlanda, Grécia, Portugal, Espanha e Itália não se tenham juntado seriamente, num forte lobby comum, lutando com determinação para que os outros percebessem que o assunto era de todos. Também não se percebe que 25 governos tenham de se sujeitar, impavidamente, à vontade dois “tiranozitos”. Este é mais um campo onde o “Vigiai” se torna também urgente envolvendo todos os cidadãos, governantes, deputados para transformarmos uma cada vez menos Europa numa cada vez mais Europa. 

2011-12-01

Documento a não esquecer

Faz hoje (30.Nov) exactamente  40 anos que foi publicado o documento “A Justiça no Mundo”, aprovado no Sínodo dos Bispos de 1971.

Antes de reflectir este texto verdadeiramente profético, gostaria de dar alguns elementos sobre o Sínodo do Bispos. Ele é o primeiro resultado visível da doutrina da colegialidade episcopal, muito discutida no Concílio Vaticano II. E, já agora, aproveito para começar a preparar os 50 anos da abertura do Concílio cuja celebração acontecerá a 11 de Outubro de 2012.
A doutrina da colegialidade é apresentada em dois documentos, mas particularmente no documento sobre a Igreja (Constituição dogmática Lumen Gentium: LG).
Apesar dos longos e calorosos debates e até algumas “manobras”, acabou por ser aprovada com larga maioria. Esta doutrina, muito antiga mas também muito esquecida, afirma que:
- qualquer bispo, pela sua sagração episcopal e comunhão com o papa e com os outros bispos, é constituído membro do colégio episcopal: “E o uso já muito antigo de chamar vários Bispos a participarem na elevação do novo eleito ao ministério do sumo sacerdócio insinua-a já também. É, pois, em virtude da sagração episcopal e pela comunhão hierárquica com a cabeça e os membros do colégio que alguém é constituído membro do corpo episcopal” (22a);
- o colégio episcopal, com a sua cabeça, o papa, e nunca sem ela, é o sujeito do pleno e supremo poder sobre a Igreja universal: “A Ordem (ou Colégio) dos Bispos, que sucede ao colégio dos Apóstolos no magistério e no governo pastoral, e, mais ainda, na qual o corpo apostólico se continua perpetuamente, é também juntamente com o Romano Pontífice, sua cabeça, e nunca sem a cabeça, sujeito do supremo e pleno poder sobre toda a Igreja, poder este que não se pode exercer senão com o consentimento do Romano Pontífice” (22b).
Os principais argumentos podem resumir-se de um modo simplificado nos seguintes:
- Jesus Cristo instituiu não um apóstolo mas um grupo, os Doze, para o representar: “O Senhor Jesus, depois de ter orado ao Pai, chamando a Si os que Ele quis, elegeu doze para estarem com Ele e para os enviar a pregar o Reino de Deus; e a estes Apóstolos constituiu-os em colégio ou grupo estável e deu-lhes como chefe a Pedro, escolhido de entre eles” (19a);
- tal como os apóstolos não eram vigários de Pedro, também os bispos não são meros vigários do Papa, mas governam a Igreja particular (a diocese) com poder próprio, e a Igreja universal através do colégio que formam com o papa e os outros bispos; porque o colégio episcopal sucede ao colégio apostólico: “ A Ordem dos Bispos, que sucede ao colégio dos Apóstolos no magistério e no governo pastoral, e, mais ainda, na qual o corpo apostólico se continua perpetuamente” (22b);
- o episcopado não é uma dignidade, como o cardinalato, mas é a plenitude do sacramento da Ordem: “pela consagração episcopal, se confere a plenitude do sacramento da Ordem, aquela que é chamada sumo sacerdócio e suma do sagrado ministério na tradição litúrgica e nos santos Padres” (21b).

Também no Decreto sobre os Bispos (Christus Dominus), onde se desenvolve a “nova” teologia do Episcopado, se afirma, em consonância com a LG, a doutrina da colegialidade. Qualquer Bispo é responsável não só pela sua diocese mas também deve ter solicitude e responsabilidade pastoral por toda a Igreja universal: “Os Bispos, como legítimos sucessores dos Apóstolos e membros do colégio episcopal, considerem-se unidos sempre entre si e mostrem-se solícitos de todas as igrejas, pois cada um, por instituição divina e por exigência do múnus apostólico, é responsável por toda a Igreja, juntamente com os outros Bispos “ (6).
Daqui resultam consequências jurídico-canónicas: a reorganização e internacionalização da Cúria (9); o direito de qualquer Bispo a participar no Concílio (4); além disso, na sua diocese, o bispo tem o poder necessário para exercer as suas funções pastorais e dispensar de leis gerais se tal sirva o bem espiritual dos fiéis (8).

Foi, pois, com satisfação mas também com alguma expectativa, que os padres conciliares ouviram Paulo VI afirmar no Discurso de Abertura da IV e última Sessão do Concílio Vaticano II (14.Set.1965): “A segunda coisa (que queria dizer-vos) é o anúncio, que Nos alegramos de vos comunicar, da instituição, desejada pelo Concílio, dum Sínodo episcopal que, composto por Bispos nomeados na sua maioria pelas Conferências episcopais, com a Nossa aprovação, será convocado, segundo as necessidades da Igreja, pelo Romano Pontífice para sua consulta e colaboração quando, para o bem geral da Igreja, isso Lhe parecer oportuno”.

Havia ali claras fendas na doutrina da colegialidade: os bispos nomeados careciam da aprovação do Papa; não era permanente, mas apenas quando o Papa achasse oportuno. Para um colégio episcopal, que sucedia ao colégio apostólico e estava chamado a ser responsável pelo pleno governo da Igreja er realmente muito pouco.

No dia seguinte, 15.Set., Paulo VI promulgava o “motu proprio Apostolica Sollicitudo”, no qual justificava a criação do Sínodo dos Bispos: “Portanto, depois de ter considerado bem todas as coisas, pela Nossa estima e reverência para com todos os Bispos católicos e com o fim de lhes dar a possibilidade de participar mais aberta e eficazmente na Nossa solicitude pela Igreja universal, 'motu proprio' e em virtude da Nossa autoridade apostólica, erigimos y constituímos nesta cidade de Roma um conselho estável de Bispos para a Igreja universal, sujeito directa e imediatamente à Nossa autoridade, ao qual designamos com o nome próprio de Sínodo dos Bispos.
Seguem-se depois as regras gerais pelas quais o Sínodo se deve reger de que destaco a primeira: “O Sínodo dos Bispos, por meio do qual os Bispos eleitos das diversas partes do mundo prestam uma ajuda mais eficaz ao Pastor Supremo da Igreja, constitui-se de tal forma que seja: a) um instituto eclesiástico central; b) que represente todo o episcopado católico; c) perpétuo por sua natureza, e d) quanto à estrutura, desempenha a sua função no tempo determinado e segundo as circunstâncias”.
E a terceira também não era muita animadora:
O Sínodo dos Bispos está sujeito directa e imediatamente à autoridade do Romano Pontífice, a quem compete além disso:
1. convocar o Sínodo sempre que o considere conveniente, designando inclusivamente o lugar onde deverão celebrar-se as reuniões;
2. ratificar a eleição dos membros…;
3. determinar as questões de que deverá tratar-se, pelo menos seis meses antes, se for possível, da celebração do Sínodo;
4. determinar o envio da matéria, que deve ser tratada, àqueles que deverão assistir ao debate de tais questões;
5. presidir ao Sínodo por si mismo ou por delegados seus”.

Como se vê tudo ficaria controlado. E o dito colégio episcopal não tinha qualquer parecença com o colégio apostólico.

Mas fiquemo-nos por aqui. O Sínodo foi um pedido do Concílio para aplicar uma verdadeira colegialidade. Mas afinal o Papa (e a Cúria ao seu serviço) é que detinha todo o poder.
No próximo comentário vamos ao nosso Sínodo de 1971 e ao seu Documento Final.