divórcio ou casamento eterno?...

2010-12-27

Uma reflexão sobre o NATAL

Aqui vos deixo a minha crónica natalícia desta semana.


A DEUS NUNCA NINGUÉM O VIU
Dei comigo a ver e a pensar que o Natal cada vez me parece menos Natal. Será que o estamos a banalizar como uma qualquer festa, como aliás vamos banalizando tudo? Será porque passamos este tempo, apesar da crise, a gastar balúrdios em prendas inúteis, como se isso fosse sinal seguro da amizade e do amor que temos uns aos outros? Talvez não esteja a acontecer nada disto e seja o meu bilhete de identidade a tornar-me rabujento. Mas, devo confessar, que tive alguma dificuldade em viver por dentro a riqueza e a profunda espiritualidade do Natal. A culpa estará muito mais no meu aburguesamento. Mas o Natal mantém coisas muito lindas, como a reunião da família ou a multiplicação da solidariedade.
Seja como seja, neste Natal choquei mais uma vez com o Prólogo do Evangelho de João. E deste texto lindo e denso saltaram-me as palavras: “A Deus ninguém o viu”. Tantas vezes as li e até estudei com algum cuidado, mas hoje tornaram-se para mim muito actuais e interpelativas.

É evidente que a Deus nunca ninguém o viu nem verá aqui, porque Ele é o Invisível, o Indescritível, o Inimaginável. Ele é pura e simplesmente um Mistério, o Grande Mistério, em que tantas religiões se fundamentam sob os mais diversos nomes e onde os crentes de todos os credos vão buscar força, esperança, sentido de vida e sobretudo amor. Ele representa, seja para quem for, a dimensão transcendental da pessoa, uma dimensão que nos separa dos animais e do resto da natureza, uma ânsia profunda de que não podemos acabar no pó da terra, uma angústia existencial que este mundo é demasiado mesquinho para que seja a nossa morada definitiva, a inaceitável certeza de que este corpo, sem o qual não podemos comunicar com os outros nem receber nem fazer o bem, é tão limitado que não pode ser o sepulcro último de todos os sonhos e utopias que povoam, mesmo sem darmos por isso, o mais profundo de nós.

Mas, felizmente, que “o Filho Unigénito, que está no seio do Pai, O deu a conhecer”. Ao assumir em plenitude a condição humana, Deus irrompeu na história, na gruta de Belém, para nos explicar (“fazer a exegese” diz o original grego) do Pai. E veio mostrar que Ele é Amor, um amor comunicativo: “Amou de tal modo o mundo que enviou o seu Filho … para que o mundo seja salvo” (Jo 3,16-17). Assim nos ensina que ninguém ama sem fazer nada, ninguém ama só com palavras, que o amor exige cuidado, acolhimento, atenção, misericórdia, compaixão, no bom sentido. Assim nos ensina que o amor dá prioridade à pessoa sobre as coisas, sejam elas dinheiro, leis, éticas, doutrinas, normativas religiosas, nem o “sábado”, o símbolo sagrado pró excelência, foge a esta subordinação. Mas nós não queremos compreender ou aceitar isto. Parece-nos demasiado banal para um Deus que deve ser a Suma Transcendência. Mas Ele, por amor, veio mostrar-nos que se preocupa connosco não por sermos pecadores, mas sofredores. Ama-nos porque sofremos, não porque pecamos. Por isso, nos propõe a salvação, a libertação. Até deixou umas dicas aparentemente tão simples, mas tão exigentes que nós preferimos trocá-las pela facilidade de ir a uma missa dominical ou rezar um terço no mês de Maio. Mas Deus “apenas” nos pede que nos amemos como Ele ama, sem condições, de maneira universal, isto é, incluindo os nossos inimigos e sobretudo “aqueles que não merecem”, aqueles que nós pensamos que não merecem. Como se o amor tivesse, como os livros de contabilidade, um deve e um haver que, no final, deviam bater certos. Como se o amor fosse contabilizável. Mas o amor passa para lá da nossa aritmética caseira, pois é sempre a somar, sempre a dividir, sempre a multiplicar, mas nunca a subtrair. Na sua aritmética não existe a subtracção. Mas funciona melhor que todos os teoremas matemáticos, quando é praticado a sério.

Mas será que não podemos ver Deus? A Bíblia diz que “face a face” não é possível neste mundo. E mesmo o que vejamos é como se fosse num espelho baço. Mas voltemos a S. João, que faz uma acusação violentíssima: “Estava no mundo e o mundo, que foi feito por Ele, não O conheceu” e reforça esta acusação: “Veio para o que era seu e os seus não o receberam”. Está no mundo? Onde? Para os cristãos está na hóstia consagrada, nas Escrituras, nos sacramentos, esses consoladores Montes Tabor, onde é “tão bom estar aqui”. E ficamos tão tranquilos ou tão comodistas, que não o vemos onde Ele também está: na incerteza dos acontecimentos diários, não mistério das pessoas, mas sobretudo na cruz das vítimas da história. Sofre com os que sofrem e que perguntam por que me mandou esta doença: como se Deus quisesse o nosso sofrimento; esquecemos que somos limitados, que o nosso corpo tem peças que vão falhando; não foi Deus que me mandou um cancro, mas a evolução natural das minhas limitações e falta de cuidados saudáveis. Ele chora com os que choram, porque não pode fazer nada a não ser “chorar com”. É que o nosso Deus é um fraco, como tão bem o mostra o presépio, porque nos quis criar livres e não pode, amarrado por essa opção, obrigar-nos a fazer o bem ou a evitar o mal. O nosso Deus é sobretudo um fraco, porque está nos fracos, incarna em todos os que sofrem injustiças, desconsiderações, perseguições, exclusões. Ele está, Ele é todos esses. Não o vemos, porque não queremos. Porque aceitar que Ele está ali obriga-nos a adorá-lo no excluído, isto é, a tudo fazer para o incluir, o integrar, o acolher, no respeito absoluto pela sua dignidade inalienável de pessoa e de filho de Deus. Por isso, a maioria dos católicos O adora na hóstia consagrada mas O esquece, O despreza e até O humilha no necessitado que pede ajuda, no doente que suspira por uma visita, no angustiado que suplica silenciosamente por um ombro onde chorar ou um ouvido que o ouça, no desanimado que anseia por um sinal de esperança.

Afinal a Deus todos o podemos ver. Mas não queremos. E Deus não nos obriga.


PRESÉPIO

E, embora atrasado, aqui vai o Presépio de uma iluminura medieval, na convicção de que, apesar das dificuldades, o próximo ano possa ser vivida em paz, alegria e amor. Para tal, pelo menos todos devemos colaborar e partilhar os bens e os dons. Não basta, mas ajudará muito!

 

2010-12-19

S. JOSÉ, O ESQUECIDO

José é uma das figuras mais discretas da Bíblia. E, contudo, apesar de nunca se lhe ouvir uma palavra, todos os seus gestos são um modelo de vida e de vida em abundância. Ele respeitou Maria numa situação complexa. Ele calcorreou toda a cidade de Beléme em busca de uma hospedaria para encontrar um local digno para o Menino nascer. Ele sofreu dolorosamente o fracasso de não encontrar nada. Ele teve ainda forças para descobrir uma gruta onde a intimidade e privacidade de Maria não fossem violadas. Ele protegeu a sua família quando foi preciso fugir para o Egipto e quando voltaram para Nazaré. Ele alimentou a casa trabalhando como carpinteiro.
Ele não falou. Actuou sempre e só quando foi preciso. No resto remeteu-se ao anonimato de quem cumpre  a vontade de Deus e isso lhe basta.
S. Mateus chama-o “justo” (Mt 1,19).

Ser Justo
Justo, díkaios (δίκαιος), é uma adjectivação muito forte. Aliás esta palavra aparece já em Homero, que acusa de não serem “sensatos nem justos os príncipes que não cumpriram a palavra” que deram e pede “que Zeus, o deus dos suplicantes, os castigue”, pois “ele observa todos os homens e castiga quem transgride” (Odisseia XIII, 209.212-214). Numa outra passagem a explicitação, feita por contraste, dá uma melhor ideia deste conceito. Quando se aproxima da terra dos Ciclopes, Ulisses vai primeiro averiguar “se são arrogantes e selvagens ou se não são justos / se recebem bem os hóspedes e se são tementes aos deuses” (Odisseia IX, 175-176); assim opõe os arrogantes e selvagens aos justos, que praticam a hospitalidade e são tementes (respeitadores) dos deuses.
No AT, a justiça e o direito são atributos essenciais de Deus. Ao falar do direito do pobre, Carreira das Neves escreve: “Fundamentalmente o que está em causa é o direito que os pobres têm em serem defendidos pelo Deus da justiça. O mishpât (direito, justiça) e a çaddâqâ (justiça) fazem parte ontológica do ser de Deus. Deus não pode ser de outra maneira”. Por isso o rei ideal, que há-de sair da dinastia de David, o Messias (o Ungido, o Cristo), virá instaurar a justiça e a paz (Is 8,23-9,3): “Nesse tempo, o mishpât e a çaddâqâ serão totais e absolutos: ‘Ele não julgará segundo as aparências, / nem se pronunciará segundo o que ouvir dizer. / Julgará com justiça (çaddâqâ) os fracos / e pronunciar-se-á segundo o direito (mishpât) acerca dos pobres (‘anâwîm) do país’ (Is 11, 4)”.

S. Lucas repete esta essencialidade do rei messiânico (fazer justiça aos fracos e pobres) no Magnificat: “derruba os poderosos dos seus tronos e eleva as pessoas que nada são, / sacia os esfomeados e deixa os ricos de mãos vazias” (Lc 1,52).

Modelo do Justo
Voltando a José, percebemos agora a força da palavra “justo”. Aliás Lucas chama justos a Zacarias e a Isabel – “ Ambos eram justos aos olhos de Deus” – porque “cumpriam irrepreensivelmente todos os mandamentos e preceitos do Senhor” (Lc 1,6).
José é, portanto, um homem justo. Mas ele não é justo “apenas” porque cumpre irrepreensivelmente todos os mandamentos, mas sobretudo porque “deixa espaço” a Deus para actuar e “retira-se” confiado na correcção das decisões de Deus.
José tem um dilema. Maria estava grávida e não era dele.
Ou seja, o problema é que ela engravidou depois de já estar comprometida com ele. Neste caso, a solução era fácil. Na prática, era como se Maria incorresse em adultério e José devia repudiá-la publicamente.
Mas como era justo não queria difamá-la publicamente e, por isso, estava a pensar fazê-lo em segredo. Esta demora na tomada de uma decisão, que aparentemente era muito fácil, é que me leva a pensar que José vai esperar para que Deus o ilumine e lhe aponte a solução. Claro que não sabemos se Maria teria dito alguma coisa a José. Mas não seria fácil acreditar: “Olha, estou grávida, mas o responsável é o Espírito Santo”. Portanto, José aguarda, na incerteza, na certeza de que Deus sabe o que faz e que, portanto, deve respeitar essa decisão.

Esta é uma situação pela qual por vezes todos acabamos por passar. São momentos em que, como diz S. João da Cruz, a fé é uma noite escura para o crente. Recentemente lemos um desabafo idêntico da Irmã Teresa de Calcutá. A fé não é um raio luminoso que esclarece todas as nossas dúvidas. Às vezes pode ser. Mas muitas vezes deixa-nos na dúvida, na incerteza, na escuridão. Não sei se viram o filme Des dieux et des hommes (ou vice-versa, já não me recordo). Nele esta questão é posta com toda a crueza: abandonar ou não a aldeia. "Qual a vontade de Deus nesta situação concreta?" é a pergunta que todos os frades fazem nas suas reuniões plenárias, mas sobretudo  no seu interior.
Deus parece-nos, por vezes, muito mauzinho connosco, ou talvez melhor, quase sempre, porque não nos diz claramente o que quer de nós em cada circunstância. Mas não é mauzinho, antes pelo contrário. Ele actua assim, porque fez a opção de nos criar à sua imagem e de nos querer livres. Por isso nos respeita nas nossas decisões boas e nas más. Preferiu dar-nos a capacidade de pensar, de avaliar os acontecimentos, que são as suas verdadeiras manifestações na história, e de decidir.
A dificuldade é que os sinais geralmente andam misturados com anti-sinais. Mas sou eu que tenho de ler os acontecimentos, à luz da Palavra de Deus, dos meus princípios, da minha disponibilidade. E isso é passar sempre pela solidão da decisão. As decisões pessoais são sempre solitárias. Eu posso pedir ajuda aos amigos, mas eu é que tenho de decidir. É por isso que ninguém pode nunca defender-se de uma decisão ou actuação errada desculpando-se com uma ordem recebida. Eu é que sou responsável pelos meus actos. Se, por exemplo, desobedecer a uma ordem, naturalmente que vou sofrer as consequências. Mas eu não posso obedecer cegamente a qualquer ordem. Porque acima das ordens das autoridades civis, militares ou religiosas, está a minha consciência que não posso renegar. Até porque é pela fidelidade à minha consciência que serei julgado. Foi o que deixou claro S. Tomás de Aquino: “Recebida uma ordem encontramo-nos num dilema: se formos contra a nossa consciência, pecamos; se desobedecermos ao nosso superior, também pecamos. Dos dois, o primeiro é pior pois que o ditame da consciência vincula mais que o decreto da autoridade exterior”.

José podia ter obedecido à lei de Deus escrita pelos homens. Seria um homem justo, pela medida humana. Mas, porque era realmente justo, procurou não difamar publicamente Maria. E, na dúvida e na noite escura da fé em Deus, ele esperou, procurou avaliar a situação, acreditou no que Maria lhe disse e deixou-se guiar pela sua consciência, "o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser. Graças à consciência, revela-se de modo admirável aquela lei que se realiza no amor de Deus e do próximo” (Gaudium et Spes, 16). O seu sonho foi o resultado deste processo de fé em Deus, de confiança nos outros e da certeza de que Deus é o Senhor da história.

É, por tudo isto, que José é para nós, crentes e não crentes, um modelo. Porque hoje quase todos nós começamos por condenar os outros e só depois, se houver tempo, vamos ver se temos razão.
Pior ainda, hoje muitos obedecem a leis divinas que são sempre traduzidas, ou melhor, mediadas pela sensibilidade e mundividência de quem as escreve ou as decreta. Em nome de Deus, a História está cheia de actos de crueldade e ulcerada pelas cicatrizes da malvadez humana.
O que é um absurdo, já que Deus, qualquer que seja o seu nome, é sempre AMOR.
Mas não somos todos nós um mistério de que o absurdo também faz parte?

2010-12-18

MITOS E LIÇÕES DE UMA CRISE

Este foi o meu balanço do ano na minha coluna do Correio de Coimbra.

Num recente artigo, Nicolau Santos apontava cinco mitos sobre a crise, que era preciso desmontar e acabar com eles. Vou recordá-los e comentá-los e acrescentar duas notas.
“A Europa do Norte governa melhor que a do Sul”. Mas a Islândia foi a primeira a falir e a Irlanda o terceiro a pedir ajuda ao Fundo Europeu e ao FMI. Não é altura de acreditarmos mais em nós, de puxar pelas nossas reservas anímicas distraídas com os prazeres do consumismo e juntarmo-nos pondo de lado omnisciências idiotas que só dividem e nos descredibilizam?
“Países como Portugal actuaram tardiamente em relação à crise”. Contudo a Irlanda, mal sentiu o perigo, fez logo cortes draconianos, mas “ajoelhou-se” antes de Portugal, cujo “Governo actuou tarde e a más horas”. Afinal apressar-se não adiantou nada e os que se atrasaram sempre proporcionaram algum tempo de respiro antes dos inevitáveis sacrifícios.
“Recorrer às ajudas externas acalmaria os mercados e deixaria em paz os outros países”. Afinal, mesmo depois da ajuda à Irlanda, os juros da dívida subiram a mais de 9% (Grécia), 7% (Portugal), 5% (Espanha). E não sabemos o que aí vem, pois aos mercados, bestas irracionais, e aos especuladores, bestas racionais, só lhes interessa encher os bolsos. Actuam como os animais da selva: seguem as manadas e separam os animais mais fracos, para os comerem com o mínimo de esforço.
“Se os países em dificuldade tomassem medidas orçamentas duríssimas, os mercados entenderiam a mensagem e deixariam de pressionar”. Mas agora que Portugal e Espanha as tomaram, estão a caminho de ser obrigados a pedir ajuda. É certo que nos pusemos a jeito, mas isso não explica tudo. Com os animais nas jaulas, podemos andar sossegados no Jardim Zoológico. Mas se eles saem e nos pomos à sua frente, comem-nos logo. E mesmo que nos escondamos, vão procurar-nos até nos encontrarem. Deixemo-nos de tretas: sem os animais na jaula, sem os mercados regulados e os vigaristas na cadeia, não há grande protecção. Mas quem não tem cuidados paga mais caro.
“É muito melhor que venha o FMI governar-nos”. Mas o FMI não só agravaria as pesadas medidas já tomadas, como quer muito mais: flexibilização no despedimento individual e com indemnizações mais reduzidas. Serão estas as grandes causas dos nossos problemas? António Saraiva, da CIP, defende que aumentar a competitividade das empresas passa mais pela redução dos custos da energia e transportes do que por estas soluções. Afinal a promessa dos senhores G7, nos inícios da crise, de melhor controlar as instituições financeiras foi fumaça: tudo está já na mesma, a mesma irresponsabilidade, a mesma liberdade de depredação. E nem reparam que os acordos de Bretton Woods, pais destas crianças mimadas, têm quase 60 anos; é muito ano para que não tenham já sido substituídas, seriamente, por outras mais adequadas ao nosso tempo e mais atentas às pessoas e aos povos. Bom… elas foram-se adaptando mas para sobreviverem e defender o seu soberano interesse.

Para lá dos mitos, há lições que podemos e devemos aproveitar.
O aumento do desemprego e dos necessitados de ajuda básica pode ajudar-nos a tomar consciência de que há realmente gente a viver mal em Portugal. Talvez os novos pobres nos ajudem a olhar de outro modo os antigos pobres (dois milhões), que víamos como preguiçosos e parasitas. Talvez comecemos a perceber que muitos deles são fruto de uma sociedade que nós (des)organizámos e alimentamos porque nos sentimos bem assim. Que afinal a crise, para eles, não começou há dois ou três anos, mas é uma crise crónica. Que a pobreza se autoreproduz: pais pobres geram filhos pobres, que geram filhos pobres, que geram filhos pobres. Se estas pessoas fossem cuidadas com dignidade, podiam quebrar essa espiral de pobreza. Mas nós os remediados ou ricos nunca soubemos o que é ser pobre: preconceituámos, ignorámos, calámos, forçámo-los a viver numa crise contínua. Até nos critérios de convergência, a União Europeia só inclui dinheiros. Por que não aparece também a taxa de pobreza? Não sabem? É muito simples: porque o Senhor Dinheiro vale muito mais que o senhor Pessoa. E quase todos estamos de acordo com esta desumana inversão na hierarquia de valores, incluindo a maioria dos cristãos a quem não repugna esta escolha idolátrica entre o dinheiro e o Deus-Amor.
E pode ser também que agora, com as dificuldades, comecemos a gerir melhor o que temos, a dizer NÃO ao “compre agora e pague depois” e outros tipos de imoralidades bancárias e comerciais, a mudar de estilo de vida, a comprar o essencial e a cortar em tantas vaidades.
Por outro lado, pouco a pouco, migalha a migalha, iniciativa a iniciativa, finalmente a sociedade civil percebeu que tem uma responsabilidade indeclinável na resolução dos muitos pequenos problemas locais. Como é bonito ver juntas de freguesias, câmaras, instituições religiosas, grupos de cidadãos assumirem, como seus, os problemas das vítimas da crise. Como é bonito ver a comunicação social começar a dar notícias destas, embora ainda mal passem das letras miudinhas perdidas no meio de grandes títulos. Como é bonito ir exercendo a cidadania.
É ainda pouco, demasiado pouco para as necessidades e para a cidadania solidária. Mas o importante “é partir” (M. Torga), é começar como o fio de água de uma fonte, que depois vai engrossando num ribeiro, num afluente, num Tejo ou até mesmo num Amazonas.
O que é preciso é começar, dentro do coração, e ir transbordando, atraindo outros corações para a fraternidade, a gratuidade e o cuidado do outro! Eh pá, como isto será lindo!

2010-12-08

Cuidar do Outro

Hoje tenho duas histórias verdadeiras para contar.
Há algum tempo, um amigo meu tinha o pai, já velhinho, bastante mal. A idade também já era muita. E, pouco a pouco, a vida ia-se-lhes esvaindo ao ritmo das tardes que caíam. Chegara ao Outono da vida e chegara para ele a época do cair da folha. Um dia, as coisas pioraram e ele dirigiu-se à médica de família, que, por acaso, vivia a cem metros de caminho, na mesma rua, pedir-lhe que viesse ver o que se podia fazer para aliviar s que pareciam os últimos sopros de seu pai. A senhora doutora disse que não naquele momento não podia, que não fazia consultas ao domicílio, e pegando nas palavras do Evangelho, ia desculpando-se “que tinha comprado um campo”, que “ia vender uma junta de bois”. Enfim decididamente não vinha ver um doente seu que agonizava a cem metros de distância da sua casa. Como boa cristã que certamente se sentia, todos os domingos passava à porta do doente para ir para igreja, todos os domingos se cruzava com a esposa do doente durante a celebração litúrgica. Não sei se lhe dava o abraço da paz, se não. Mas nunca lhe perguntou como estava o marido. É bem possível que conheça o Evangelho e que não se lembre do que diz S. Mateus: “Não é o que diz ‘Senhor, Senhor” que entrará no reino dos céus, mas o que faz a vontade de meu pai que está nos céus”. Também não sei nem quero julgar ninguém, o que será para ela o Reino dos céus e como se lá chega; os caminhos são múltiplos mas o mesmo Mateus faz uma seriação: tive fome, tive sede, estava na prisão, estava doente”. Mas nestas coisas, o que conta não é o que se sabe, mas o que faz. A parábola do samaritano é clara: não são os conhecedores das leis e dos ritos para aplacar Deus que são louvados, mas sim o pagão samaritano que não sabe nada de leis divinas nem de ritos religiosos, mas sabe que a um irmão em sofrimento só há uma coisa a fazer comover-se, entrar em simpatia com ele e “cuidar” dele.

Recentemente a viúva, com bastante dificuldade em deslocar-se, teve que ir a uma consulta. Com muita dificuldade lá foram os filhos levá-la de carro até à porta, lá conseguiu andar uma dezena de metros, apanhou o elevador (“e se não há elevador” era a sua grande preocupação!) e foi à consulta. O médico analisou a situação e disse-lhe: “precisa de uma pequena intervenção, mas neste momento não tenho no consultório o aparelho necessário para isso. Terá de cá vir outra vez”. A senhora resignada dispunha-se já a levantar-se, quando o médico olhando para “aquele irmão caído à beira da estrada” e disse: “Mas espere um bocadinho, eu vou a casa buscar o que me falta!”. E lá foi. Passada quase uma hora, parte gasta a arranjar estacionamento, lá voltou o médico. E rapidamente resolveu o problema. À saída, a filha agradeceu ao médico, que lhe respondeu: “também gostaria que alguém fizesse isto pela minha mãe!”.

Mas esta resposta é muito mais profunda. Porque mãe todos temos ou tivemos. E não é por fazer bem à mãe dos outros que os outros necessariamente farão bem à minha.
Esta resposta é uma resposta de “amor ao outro e ao outro em dificuldade”. É o que falta a muitos dos nossos profissionais e não profissionais, que embarcando na idolatria do dinheiro esquecem que as pessoas se não se alimentam também do amor – o amor que dão e o que recebem – acabarão por mirrar por dentro e ficar como os frutos secos que só têm casca.
É evidente que é preciso competência profissional (intelectual e/ou manual). Mas não basta. Se não envolveremos a “atenção do coração” e nos ficarmos apenas pela “atenção da inteligência”, isto é, se não houver associada uma “competência de coração”, também os competentes se podem transformar em competentes… robôs. E recordo palavras de Bento XVI: “A competência profissional é uma primeira e fundamental necessidade, mas por si só não basta. É que se trata de seres humanos, e estes necessitam sempre de algo mais que um tratamento apenas tecnicamente correcto: têm necessidade de humanidade, precisam da atenção do coração … Por isso, para tais agentes, além da preparação profissional, requer-se também e sobretudo a «formação do coração»” (Deus caritas est, 31).

O mundo bom ou mau somos nós que o fazemos. Mas seria cada vez melhor se cada um de nós fosse acrescentando todos os dias uma migalha de bondade.

Dia da Mãe
Espero que mãe desse médico esteja viva e de saúde e queria desejar-lhe o melhor do mundo para ela e para o filho.
E também para todas as mães, a começar pela minha. É que eu, como denúncia e repúdio por essa chuvada consumista com que a publicidade conspurca o “Dia Mãe” em Maio e, escorado na história, continuo a celebrar no dia de hoje (8 de Dezembro) o “Dia da Mãe”.
Embora, para mim, como para todos certamente, o Dia da Mãe é todos os dias.

Como sei que a minha mãe sempre gostou deste poema de Guerra Junqueiro, aqui lho deixo, embora ela já não consiga ler:

Minha mãe, minha mãe! Ai que saudade imensa,
Do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé de ti.
Caía mansa a noite; e andorinhas aos pares
Cruzavam-se voando em torno dos seus lares,
Suspensos do beiral da casa onde eu nasci.
Era a hora em que já sobre o feno das eiras
Dormia quieto e manso o impávido lebréu.
Vinham-nos da montanha as canções das ceifeiras,
E a Lua branca, além, por entre as oliveiras,
Como a alma dum justo, ia em triunfo ao Céu!
E, mãos postas, ao pé do altar do teu regaço,
Vendo a Lua subir, muda, alumiando o espaço,
Eu balbuciava a minha infantil oração,
Pedindo ao Deus que está no azul do firmamento
Que mandasse um alívio a cada sofrimento,
Que mandasse uma estrela a cada escuridão.
Por todos eu orava e por todos pedia.
Pelos mortos no horror da terra negra e fria,
Por todas as paixões e por todas as mágoas…
Pelos míseros que entre os uivos das procelas
Vão em noite sem Lua e num barco sem velas
Errantes através do turbilhão das águas.
O meu coração puro, imaculado e santo
Ia ao trono de Deus pedir, como inda vai,
Para toda a nudez um pano do seu manto,
Para toda a miséria o orvalho do seu pranto
E para todo o crime o seu perdão de Pai!
A minha mãe faltou-me era eu pequenino,
Mas da sua piedade o fulgor diamantino
Ficou sempre abençoando a minha vida inteira
Como junto dum leão um sorriso divino,
Como sobre uma forca um ramo de oliveira!