divórcio ou casamento eterno?...

2012-01-30

Em que sociedade vivemos?

Uma série de acontecimentos, declarações oficiais, umas ofensivas dos mais pobres, outras subordinadas de tal modo ao dinheiro que esquecem as pessoas mais carenciadas, reformas imoralmente obscenas, nomeações que permitem disfarçadamente que os subsídios de Natal e de férias sejam recebidos, poderes ocultos ou nem tanto, enfim, uma sociedade onde se perdeu o norte, onde os valores da lealdade nacional, do serviço público, da solidariedade e sobretudo da centralidade da pessoa se perderam numa noite de nevoeiro.
Há coisas boas, muito boas, mas que não são contadas, que só os que vive próximo conhecem. Há uma ou outra excepção: apesar de tão pouco destacada é bonito ver o que está a acontecer na Sicasal, que bem poderia ser um exemplo a seguir por todo o país. Mas não é.
Por isso e por outras coisas aqui partilho convosco a minha última crónica.


UMA SOCIEDADE IMORAL

Depois de ter falado da necessidade de um diálogo sério entre todos para construirmos uma sociedade mais justa, passo a uma outra exigência: a da conversão ou mudança do estilo de vida. Eu sei que “imoral” é mais uma das palavras desvalorizadas. E penso que a Igreja católica tem alguma ou até muita responsabilidade: ao reduzir a moralidade apenas, ou quase, à esfera sexual, fez esquecer e não ensinou que se trata de um polvo que infecta todas as áreas da vida e envenena as relações sociais. Exceptuando o sexto e nono mandamentos (já será o Sermão da Montanha o miolo da nossa catequese?), e o quinto, por outras razões, o resto eram pecadilhos quase banais: roubar ou mentir, que importância tinha? E, contudo, o roubo instalou-se nas relações laborais, degradando pessoas, famílias e empresas, e nas fiscais, levando à fuga aos impostos, como se tal fuga fosse o acto mais banal numa sociedade humanamente organizada.
Por isso, quando olho para a nossa vida social hoje, lembro logo as palavras de João Paulo II, escritas num documento, que poucos conhecem (RP 16), e citadas noutro (SRS 36) que muitos (muitos, mesmo!?) terão lido. Quanto à forma, recorda-me o “velho” Estatuário do P.e António Vieira, que decorei nos tempos de menino para aprender como usar de modo adequado os verbos gramaticais para descrever um determinado gesto. Na citação do papa, os verbos também são adequados, dolorosamente adequados, para descrever as inúmeras formas de praticar ou alimentar a imoralidade numa sociedade.
Começa por desmontar a ideia de que a culpa é das estruturas. É certo que há estruturas de pecado, mas foram criadas pelas pessoas. É certo que essas estruturas podem aparentemente autonomizar-se e controlar as pessoas. Mas isso não nos desculpabiliza: “A Igreja, quando fala de situações de pecado ou denuncia como pecados sociais certas situações ou certos comportamentos colectivos ou de grupos sociais, mais ou menos vastos, ou até mesmo de nações inteiras e blocos de nações, sabe e proclama que tais casos de pecado social são o fruto, a acumulação e a concentração de muitos pecados pessoais.
Depois vem a enumeração desses “pecados pessoais” e é quase impossível que nenhum deles não nos encaixe na perfeição. Vou “partir” a citação em várias partes.
Primeira: “Trata-se dos pecados pessoalíssimos de quem gere ou favorece a iniquidade ou dela desfruta”. Portanto, não basta ser autor material da “iniquidade”, também somos responsáveis quando a favorecemos, por acção ou omissão (“tão ladrão é o que vai à vinha como o que fica a guardá-la”) e, ainda pior, dela nos servimos: “desfrutar” do trabalho sujo dos outros, sem precisar de sujar as mãos, é muito mais limpo, deixa a consciência tranquila porque nada fizemos de mal; apenas aproveitámos “sabiamente” a ocasião que vida nos ofereceu.
Segunda: “(Trata-se) de quem, podendo fazer alguma coisa para evitar, eliminar ou, pelo menos, limitar certos males sociais, deixa de o fazer por preguiça, por medo e temerosa conivência, por cumplicidade disfarçada ou por indiferença”. Realmente há muita coisa que podemos fazer, mas não fazemos, para evitar, impedir que o processo se inicie, eliminar, cortar o mal pela raiz, ou, não sendo possível, pelo menos limitar desvios e disfunções sociais, seja como cidadãos comprometidos seja como governantes responsáveis. Mas a acusação tem uma segunda parte terrível: por que acontece toda esta “maldade”? Por muitas razões: preguiça, pois não estou para me incomodar e tenho mais que fazer; medo, que tolhe tanta gente e tanta reacção (posso perder o emprego, não subir na carreira, não garantir o tacho político, …); temerosa conivência, que tem muito a ver com o comodismo, com o estar a bem “com Deus e com o diabo”, mas também com o medo de perder alguma migalha que caia da mesa do poder; cumplicidade disfarçada, fazendo de conta que não notamos o que está a acontecer mas sempre atentos para não perder a oportunidade; indiferença, esta é o “pão nosso de cada dia”, pois “o problema não é meu” (de quem será?) ou “quem vem atrás que feche a porta”.
Terceira: “(Trata-se) de quem procura escusas na pretensa impossibilidade de mudar o mundo”. Esta desculpa é talvez a mais repetida e de modo consciente: afinal que posso eu fazer para alterar esta situação? Quem sou eu para mudar o mundo? Irrita-me este paleio alienante. A pergunta está mal feita. Devia ser: “o que podemos nós, nós todos, fazer para mudar o mundo?”. E depois, realmente ninguém muda nada no mundo, se não começar por se mudar a si próprio: nos seus vícios de estimação, nos seus comodismos, no seu estilo de vida. Isto é, nenhuma sociedade pode mudar se as pessoas não mudarem.
Quarta: “E (trata-se), ainda, de quem pretende esquivar-se ao cansaço e ao sacrifício, aduzindo razões especiosas de ordem superior”. Esta desculpa é mais subtil, pois apela ao meu cansaço (mas se tiver de andar cem quilómetros por semana para tirar um curso que me garanta maior salário, o cansaço desaparece, não!?) e ao meu sacrifício, que é tão doloroso e… para quê? Para ficar tudo igual? Isso é para malucos, não para mim que tenho a vida organizadinha!
Repare-se na quantidade de ditados populares que citei e muitos mais poderia ter referido. Ora quando certas atitudes chegam ao patamar dos provérbios é porque já foram interiorizadas pelas pessoas, já se tornaram banalidades em que ninguém repara, já fazem parte do ambiente e, por isso, nem damos conta da sua gravidade e injustiça. Afinal fazem parte da prata da casa.

2012-01-17

PROTEGER O MEU PATRIMÓNIO

Estas últimas semanas têm sido pródigas na proclamação pública de frases que, em tempos próximos futuros, poderão vir a fazer parte de uma antologia de sabedoria balofa.
Desse ramalhete, gostaria de reflectir um pouco sobre "preciso de defender o meu património". Não está em causa quem a disse, até porque, nisso, foi mais honesto que os outros que fizeram a mesma coisa pelos mesmos motivos mas acharam que não deviam explicações a ninguém.
Mas eu até acho que deviam. De qualquer modo, esta expressão choca-me como cidadão e como cristão.

O que significa o "meu" naquela expressão?
Primeira pergunta: será que foi o próprio que construiu tudo aquilo que tem sem o apoio de nenhum dos seus colaboradores (para já até deixo de lado os familiares)? Ninguém deu uma lágrima de suor para que alguém construa um património? Será que qualquer empresa, seja ela qual for, é feita apenas com o esforço do empresário? Para nada contam as milhares de horas de serviço, tantas vezes mal remunerado, dos seus operários, dos seus clientes, dos seus fornecedores?

Segunda pergunta: será que aquele património é só dele? Não estão os bens da terra destinados a todos. Agora cito, de cor, dois documentos da Igreja: "Deus criou a terra e tudo o que ela contém para uso de todos" (GS 69), "sem excluir nem privilegiar ninguém"(CA 31). São os primeiros que chegam, só porque chegam primeiro, que adquirem o direito de tomar como seu o que é para bem de todos? Bem sabemos que uns têm mais talentos, mais competências (embora o nosso ministro Crato discorde), mais capacidade para fazer render os talentos que tem. Mas isso torna-o dono dos seus talentos e autoriza-o a utilizá-los unicamente para serviço próprio?

Ligando as duas questões, o que faria um empresário se não utilizasse parte desse património mundial que ao longo de milénios foi desenvolvendo novas tecnologias, novas ideias, que ele não inventou e possivelmente nunca seria capaz de inventar? Vivemos numa ilha deserta, onde cada um vive só com o que tem ou desenvolvemo-nos como pessoas, como trabalhadores, com o contributo solidário de todos? Uns partilharão pouco, outros, muito. Mas é do somatório de todos os contributos que nasceu este património riquíssimo que cada geração recebe, ajuda ou deve ajudar a aumentar de modo a poder passá-lo mais grandioso às gerações futuras e não apenas aos filhos sanguíneos ou aos amigos de peito.

Depois, há um outro aspecto. Ele não ganhou nada por ter nascido neste país, ter aproveitado as estruturas sociais que lhe permitiram fazer desabrochar esses talentos, que outros não têm, mas que precisam de condições para surgirem? Não lhe foi dado um povo? Quantos apátridas gemem por esse mundo fora desejando um espaço para si. Não lhe foi dada uma cultura, que o estimulou a desenvolver-se segundo os padrões locais? Quantos são obrigados a emigrar para longes terras e longes culturas, perdendo-se num emaranhado de códigos e normas que não entendem?
É bem possível que, com a globalização "de serviço", estejamos a perder a consciência destes bens imateriais que formam a nossa identidade, a nossa raiz mais funda.
É bem possível que com esta globalização neoliberal, onde só o dinheiro conta, muitos se percam em perene adoração ao deus dinheiro, pouco importando as vítimas que irão sendo crucificadas em seu nome e para seu sustento.
É bem possível que com a ganância de não perder o "meu património" muitos tratem da sua vida esquecendo que estão a roubar os seus concidadãos que os ajudaram material e espiritualmente a ser eles próprios.

Eu sei que devo ser meio maluco por estar a defender estes pontos de vista.
Mas como podemos construir uma humanidade onde todos, por sermos humanos, temos, os mesmos direitos fundamentais? Por que razão é mais grave a morte de meia dúzia de turistas do cruzeiro nas costas da Itália do que á de milhares de mortos à fome e à sede no Sudão ou na Somália?
Como podemos construir uma Europa - de que um dos valores fundadores era a abertura aos outros e o acolhimento fraterno - se cada um puxa para a sua quinta e só vê os defeitos e os danos causados pelos outros mas nunca vê o que eles trouxeram de positivo para a construção de uma Europa democrática, defensora dos direitos humanos, prenhe de descobertas nos campos científicos e de inovações nas criações artísticas.
Por que será que não olhamos para o outro, mesmo pobre e andrajoso, como nosso irmão, pois talvez tenha sido o nosso estilo de vida que o atirou para esse estado, em vez de o tratarmos como um perigoso à solta do qual é preciso fugir rapidamente.

Que dramática continua a ser a pergunta de Javé a Caim: "Onde está o teu irmão?".
Ou será que com a morte de Abel somos todos descendentes de Caim?
RECUSO-ME A ACEITAR ISSO.
Até porque há milhões de gestos de carinho, de amizade, de partilha, de fraternidade, alguns até desencadeados agora pela crise, que provam o contrário.
O HOMEM SUPERA SEMPRE O HOMEM?
Não sei, mas sei que o Homem vai sempre superar o próprio Homem, pois há nele uma bondade natural que ninguém pode apagar de modo definitivo. Só precisa que lhe sejam criadas condições para que uma flor nasça num charco de entulho.

2012-01-06

2012 - Ano para viver mais intensamente

A revista Ecclesia pediu-me um comentário sobre 2012. Estive para recusar, pois não sou bruxo. Mas acabei por aceitar porque acredito que o futuro somos também nós que o construímos, mas para isso temos de estar atentos a mecanismos e dinâmicas que têm o péssimo hábito de, aproveitando-se da nossa ignorância, descuido ou comodismo, nos (quererem) controlar se os deixarmos à solta. Também sei que é muito difícil resistir a estas forças mais ou menos ocultas, mas essa é mais uma razão para estarmos mais  mais atentos e ser mos mais proactivos (aprendi há uns tempos esta palavra e tenho andado a divulgá-la) na nossa obrigação e missão de construtores de futuros.
Na esperança que algumas das afirmações que faço possam proporcionar algum debate útil aí deixo o texto. 



2012 – O ANO DE TODOS OS CENÁRIOS

Foi-me pedido um comentário quanto à “possibilidade de existirem ondas de indignação ao nível da rua” e se “são meios para resolver os problemas que afetam a sociedade portuguesa?”.
Se nunca foi fácil fazer futurologia, muito menos o é para os próximos, pois todos os cenários são possíveis. Há aspectos que temos garantidos: mais fome, mais famílias “falidas”, mais desempregados, numa palavra, mais sofrimento. Mas, talvez o pior, seja a falta de expectativas, de “futuros credíveis” e “amanhãs que cantam”, de confiança em nós e nos outros, enfim, a falta quase patológica de esperança.
Mas como terei de dizer mais qualquer coisa, começo pelas “manifestações, tumultos”. Não me refiro a manifestações pacíficas, que irão acontecer e multiplicar-se. Mas a um cenário mais negro para o qual podemos aduzir razões de vária ordem. Por um lado, basta olhar o que acontece pelo mundo; por outro, temos as palavras de João Paulo II: “Uma sociedade onde este direito (de ganhar o pão com o suor do próprio rosto) seja sistematicamente negado, as medidas de política económica não consintam aos trabalhadores alcançar níveis satisfatórios de ocupação, não pode conseguir nem a sua legitimação ética nem a paz social” (CA 43).
No entanto, para que tal aconteça não basta haver potenciais razões justificativas. A situação só se tornará incontrolável se atingir o “ponto de não retorno”, isto é, o momento a partir do qual um movimento se torna impossível de travar. O que irá passar-se no próximo futuro vai depender muito de ser ou não atingido este ponto de não retorno, que depende de algumas condições.
À primeira chamaria o “índice de sacrifício” e nada melhor que dar um exemplo para o tornar inteligível. Suponhamos que há um corte de 10% nos salários. Isto significa que quem ganha 800 euros sofre um corte de 80 euros; quem ganha 4000, terá uma redução de 400 euros. È evidente para todos que os 80 euros fazem muito mais falta a quem ganha 800 do que os 400 a quem ganha 4000. Isto é, o grau de sacrifício, que facilmente se transforma em sofrimento, é muito maior no que ganha menos. Apesar da percentagem do corte ser igual, o grau de sacrifício é profundamente desigual. Por isso, há quem afirme que os maiores salários para estabelecer alguma equidade neste índice (que não pode ser “igual” para todos) deveriam ser penalizados em 70%. Este desequilíbrio pode adquirir um peso tal que mobilize mesmo os mais indecisos.
Uma segunda é a do “mínimo vital”, isto é, o mínimo necessário para que cada pessoa possa viver com dignidade. Este mínimo varia muito com as sociedades mas também com condições culturais, familiares, etc.. Mas, maior ou menor, sem ele as pessoas são capazes de tudo, como nos mostram os balseiros, os boat people ou os magrebinos. É tal o seu desespero que se lançam numa aventura suicida pois sabem que correm enormes riscos de morrer. Mas preferem morrer a lutar por uma vida digna do que morrer em casa de braços cruzados, minados pela angústia e a desesperança. O exemplo talvez não tenha grande aplicabilidade entre nós, mas nunca se sabe até onde o desespero pode levar as pessoas, mesmo causticadas pelos azares da vida.
Um terceiro factor é o que chamaria uma “governação adequada”, englobando neste adjectivo muitos comportamentos. Todos sabemos como a governação é difícil, a nível pessoal (anos sem vida de família e sem amigos, …), mas também político (sucessivos desafios novos e imprevisíveis, a pressão de tomar decisões “sobre o momento”,…). Mas isso não conta na hora de ter confiança nos governantes. Estes, como outros antes e outros depois, não podem tomar medidas violentas sem terem uma palavra pedagógica, uma explicitação convincente e mobilizadora e sem praticarem, com seriedade, um diálogo difícil (é certo) mas um diálogo fictício que não passe de um monólogo impositivo. Os cidadãos têm de ser convencidos de que as medidas tomadas respeitam, razoavelmente, o critério da justiça e da equidade. Os governantes não podem dar razões objectivas que justifiquem slogans como “são sempre os mesmos a pagar a crise”. Não podem cair na imoralidade de olhar só os números e esquecer as pessoas que estão por detrás: a obsessão dos défices tem de ser substituída pela obsessão das pessoas. E não devem tomar medidas pensando apenas nos lucros imediatos que podem, a médio e a longo prazo, tornar-se muito mais danosas do que os danos que pretendiam evitar. Estou a pensar no que me pareceu (mas quem sou eu!?) um erro geoestratégico – a “venda a EDP” à China – tendo com único argumento conhecido o muito dinheiro que supostamente daí advirá. Porque uma proposta que dê mais dinheiro não é necessariamente a melhor solução para os nossos problemas. Porque a China não dá aquele dinheiro pelos nossos “lindos olhos ”. E, pior que tudo, porque abrimos a porta a uma cultura que nada tem a ver connosco, a um país que pacientemente vai tecendo as malhas de um domínio mundial e tem uma subtileza maquiavélica que pode pôr em causa, a prazo, a nossa identidade: ser “peão” da EU (senhora Merkell!)?) vai tirar-nos soberania, ser “peão” da China vai deturpar-nos a identidade.
Perante estas três condições é, pois, muito difícil imaginar o que poderá fazer um povo de brandos costumes. Somos um povo com um profundo défice de cidadania, um olímpico desprezo pelo bem comum, uma preocupação quase única sobre os nossos privilégios e direitos. Quase ninguém, a começar pelos políticos, assume como critério primeiro e estruturante a centralidade da pessoa.
Só uma palavra sobre a questão dos tumultos sociais. Não creio que eles sejam um meio eficaz para resolver os nossos problemas. Porque uma coisa é a contestação dos cidadãos, pensada, crítica, criativa e propositiva, outra são as manifestações do tipo “Maria vai com as outras”. Por outro lado, considero que manifestações pacíficas, grupos activos de opinião, lobbies “não manipulados” sobre a opinião pública, utilização correcta dos meios de comunicação, são um instrumento indispensável para o exercício da sã cidadania e também um meio para os responsáveis despertarem para a o grau de gravidade da situação, tomarem consciência da real realidade e se aperceberem da “distância” a que estamos do tal “ponto de não retorno”.
No entanto, temos de nos confrontar com esta pergunta-chave: são os tempos que são maus ou somos nós que não estamos à altura dos acontecimentos?

2012-01-01

TEMOS DE ENCONTRAR ESPAÇO PARA A ALEGRIA

Como tristezas não pagam dívidas, temos de encontrar, especialmente neste ano, espaços para uma verdadeira alegria. A vida, mesmo nas maiores dificuldades, torna-se mais suportável se for levada com (alguma) alegria. Além disso, não devemos desligar do verdadeiro massacre a que estamos sujeitos por profetas de desgraças que todos os dias nos arranham os tímpanos.
A vida vai ser difícil, já todos o sabemos. Mas não vai ficar melhor se só a olharmos desfeitos pela tristeza e pela angústia. Por isso aqui deixo mais uma das minhas crónicas. Temos de responder SIM, não só com palavras mas sobretudo com a vida à pergunta provocatória do título

AINDA HÁ ESPAÇO PARA A ALEGRIA?

               O ano que agora começa não vai ser propriamente um tempo festivo. Por isso, poderá parecer ao leitor que este tema é uma dolorosa provocação. Mas não é: falo muito a sério. Até porque o terceiro domingo do Advento, altura em que escrevo, nos convida à alegria.
                A alegria é um sentimento sem o qual os humanos não podem viver. Mesmo na noite mais escura, em que a dor, o sofrimento e o choro encharcam a nossa alma, se não encontrarmos um espaçozinho para a verdadeira a alegria, dificilmente suportaremos tal situação.
                É claro que há várias formas de alegria e nem todas produzem esse efeito libertador.
                Há a alegria de aviário, que não tem consistência, usa-se quando a circunstância a exige, mas não tem nada por detrás. É como a carne dos frangos produzidos em série, obrigados a crescer à pressão, com um sabor sem sabor, filhos de hormonas e antibióticos insonsos.
                Há a alegria industrializada, que estrondeia nas vielas da noite, alimentada a combustíveis etílicos ou a passas que não são de uva. É hoje muito estimada por industriais legais de drogas ilegais que se ajavardam na sua distribuição bem lucrativa e muito desejada porque gera euforias momentâneas a quem as usa e dá-lhe bravata para tomar atitudes das quais, em estado sóbrio, se envergonharia se a vergonha anda existisse.
                Há a alegria amarela, que se espelha num sorriso dessa cor, para disfarçar uma desilusão ou vir em socorro da vítima de uma qualquer partida de colegas ou da vida. Por detrás está a frustração que se quer esconder e se possível ignorar.
                Há a alegria “de café” que, na sua ambiguidade, tanto pode ser um acto superficialidade balofa como uma genuína manifestação de contentamento, que reforça as relações interpessoais.
                Há a alegria franca que ressoa na gargalhada cristalina. Brota do fundo da nossa dimensão lúdica e ajuda a suportar com estoicismo angústias e medos que a vida nos põe a cada curva.
                Há a alegria interior que faz “pouco ruído” mas sempre se pode encontrar na limpidez de um olhar tão transparente que chega ao fundo da alma. O olho é o espelho da alma. Quantos doentes, às vezes em estado quase terminal, continuam a irradiar um olhar sereno, a apresentar uma face risonha, a iluminar os que estão á sua volta. Só esta alegria é capaz de ultrapassar as maiores dificuldades. Não se trata de uma alegria exterior que disfarça a amargura nem de uma alegria hipócrita que pensa enganar a dura realidade fugindo ou ignorando-a. É, antes, a alegria dos fortes, que aceitam que a vida é formada de tempos felizes e tempos dolorosos e que uns e outros têm de ser vividos com a serenidade, que evita angústias doentias ou euforias alienantes. Esta alegria nasce do fundo de nós próprios, do facto de estarmos vivos, de acreditarmos em nós próprios, de nos reconhecermos “pessoa”, sujeito livre e consciente da vida e da história
Neste ano vamos precisar muito de aprender a viver e a expressar esta alegria. Sim, é necessário expressá-la para nos ajudar não só a cada um de nós, mas também a contagiar os que vivem perto de nós. Esta pode ser, em tempos de crise, para nós cristãos, uma forma privilegiada de evangelização, de ajuda aos outros. Até porque só temos razões para viver esta alegria, pois sabemos que, em Jesus Cristo, todos e todo o mundo foram salvos do desastre definitivo. Soprem vendavais, brilhe o sol, rujam tempestades, sorria a vida, irrompam crises, fervilhem mudanças, nós acreditamos que tudo isso são acidentes, bons ou maus, do caminho que leva à libertação definitiva. Ou não acreditamos? Há muitos anos li uma frase, cujo autor já esqueci, que me marcou profundamente: “Se os cristãos acreditam que estão salvos, por que (raio) não têm cara disso?” Onde está a alegria de nos sentirmos libertos de modo definitivo?